O funâmbulo, o gozo, o além...
Rosa Jeni Matz
Nietzsche apresenta o funâmbulo no Prólogo de sua obra Assim falou Zaratustra (Nietzsche 2006).
O funâmbulo é um bailarino sobre uma corda, que se equilibra em grande
altitude, homem que tenta sobreviver numa profissão de risco, dançando sobre a
corda lançada pela “altitude” da metafísica.
O percurso do homem da atualidade
reativa o caminho percorrido pelo funâmbulo de Nietzsche. O funâmbulo atual,
preso aos valores dominantes, midiáticos, religiosos e econômicos, percorre uma
trilha de difícil passagem, tentando se equilibrar numa situação-limite,
situação sem nome, experiência que clama por uma palavra. Durante o caminhar do
funâmbulo de Nietzsche surge o palhaço, que “passa por cima” do obstáculo,
sendo o espírito da gravidade, representante do niilismo. Salta sobre o
funâmbulo, que “cai da cena”, perde o equilíbrio, onde tentava sustentar a sua
fantasia. Ao alcançar o chão, o funâmbulo se despedaça. Morre nos braços de
Zaratustra.
O sujeito enfrenta desafios no
novo milênio. Segue, buscando a possibilidade de cortar o além do gozo. Travessia
do campo do gozo e a segunda morte.
O funâmbulo de Nietzsche
Após dez anos vivendo sobre a montanha, Zaratustra levanta com a aurora
de uma manhã, e decide descer ao encontro dos homens, já que transbordava de
sabedoria. Zaratustra, gozo do saber? Mas, a quem falar? Para todos e para
ninguém, os universais, pois ao chegar à cidade mais próxima não encontra
ouvidos para escutarem a sua grande “nova”, que parte da premissa “Deus
morreu”, trazendo para o homem o ensino super-homem, “o homem é algo que
deve ser superado”, “o super-homem é o sentido da terra” (Nietzsche 2006, 36).
Gozo do homem, sentido da terra. “Sentido da terra” não como fim estabelecido
pela metafísica, mas como uma meta, um fito, um destino, onde o homem se torna
responsável pela sua vida aqui na terra, onde inventa e cria, alcançando um mar
que faz submergir o desprezo do homem. O funâmbulo, após ouvir o discurso de
Zaratustra na praça, julga que o discurso se referia a ele, e prepara-se para o
trabalho a fazer. Mas, Zaratustra ainda diz ao povo: “O homem é uma corda
estendida entre o animal e o super-homem – uma corda sobre um abismo”
(Nietzsche, 2006, 38). Há o perigo ao transpor o abismo, de vacilar, olhar para
trás. O povo ri de Zaratustra, que não é compreendido, representando já este
povo o último homem, que interpreta “Deus está morto” como imoralidade,
trazendo o tempo do mais desprezível dos homens, tempo que o próprio homem se
despreza, este homem que inventou a felicidade, embora piscando o olho.
Então, o funâmbulo sai de uma pequena porta e caminha na corda, que se
entende entre duas torres, suspensa sobre o povo. Na metade do seu caminho
surge da pequena porta um palhaço, pulando rapidamente atrás do funâmbulo e o
pressiona, até que pula por cima dele, soltando um grito diabólico. O funâmbulo
assusta-se, cai no vazio, percebendo o triunfo do rival. Cai gravemente ferido,
com ossos partidos, mas vivo. Zaratustra se aproxima dele. O funâmbulo diz que
desde muito sabia que o Diabo o alcançaria, sendo que Zaratustra retruca negando
a existência do Diabo e do inferno (nem o Mal, mas também nem o Bem).
Zaratustra não despreza o
funâmbulo, pois este faz do perigo o seu trabalho, e deseja sepultar-lhe com as
suas mãos. À noite, Zaratustra parte com o companheiro cadáver, carregando-o às
costas, e após alguns desencontros e fome, chega à floresta, adormece, e ao
acordar uma nova luz raiava em si, anunciando que precisava de companheiros
vivos, para quem possa falar, e não de rebanho, de multidão, de mortos. O seu
primeiro companheiro, o funâmbulo, um cadáver, fica enterrado numa árvore oca,
protegido contra os lobos. Zaratustra não quer mais se dirigir aos mortos, quer
se unir aos criadores, afirmar a vida. Quer afastar o demônio do niilismo, “a
causa pela qual todas as coisas caem” (Nietzsche, 2006, 67), o espírito de
gravidade.
O funâmbulo assusta-se, deixa-se se desequilibrar pela arrogância do
palhaço, representação remanescente do gênio maligno de Descartes, sendo
maligna esta face do mal, que se refere à outra face, a de Deus, apontando para
a dualidade Bem e Mal. Metafísica dualista do Bem e do Mal. Nietzsche busca com
Zaratustra o para além, o para além do Bem e do Mal, não permanecendo mais na
dualidade cartesiana, mente e corpo, e sim, como expressa no discurso Dos desprezadores do corpo “a alma é
somente uma palavra para alguma coisa no corpo” (Nietzsche 2006, 60). O para
além do Bem e do Mal é uma filosofia que diz: “Eu sou todo corpo e nada além
disso” (Nietzsche 2006, 60).
O sentido da Terra como gozo
Hoje, o homem vive situações-limite, sendo muitos os
funâmbulos. Estamos em outro milênio, mas observamos como o pensamento de
Nietzsche através da fala de Zaratustra, é vigoroso. O espírito religioso
impera, a globalização apaga as fronteiras. Muitos querem alcançar novos territórios,
mas não conseguem transpor suas próprias fronteiras, barreiras, preconceitos, que
contêm antigos valores. Estes homens não aprenderam o sentido da terra.
Para muitos, com o avanço da tecnologia, da mídia, a Terra se tornou
achatada! Um disco chato! Lacan tentou apreender o Real pela topologia.
Considera importante um analista saber usar uma tesoura. Através do cross-cap
(gorro cruzado) mostra a relação do sujeito com o objeto, a fantasia, que o sustenta como sujeito desejante.
Após um corte topológico no cross-cap surge uma faixa de Moebius, que
representa o sujeito, e um disco chato, o objeto a. O sujeito dividido
pelo corte, pela linguagem, está encoberto, sofrendo o eclipse da Terra. A
Terra, para a tecnologia, é um objeto chato, e como objeto a, é um campo
de gozo. O corpo é lugar de gozo, a Terra se torna campo de gozo. O homem está
achatado, monótono, o objeto a cobrindo a sua falta, a sua castração. O solo e
o homem se “intergozam”. E, ao se identificar imaginariamente com a Terra
achatada, o homem se tornou chato, monótono, coisa.
Fomos levados a copiar modelos imperiosos, apontando para a ausência de
identificações simbólicas. O homem retorna ao primado da consciência, à mimesis
da consciência, às identificações imaginárias (aÛa’), e o
significante Nome-do-Pai se torna obscuro. O simbólico torna-se sombra. Como
Heidegger afirmava, o ente escondeu o Ser.
O funâmbulo e o campo entre as
duas mortes
O funâmbulo da atualidade tenta
atravessar abalado uma corda. Parte de um ponto para atingir um outro ponto. De
que ponto ele parte? Para qual ponto ele segue? O homem atual está
atravessando o campo das duas mortes descritas por Sade, e apresentadas por
Lacan em A ética da Psicanálise (Lacan 1991). Lacan afirma que a segunda
morte é evocada pelos heróis de Sade como “o ponto onde o próprio ciclo das
transformações naturais se aniquila” (Lacan 1991, 301). Não há mais resto
vivo, pois a vida não continua. Sade diz a respeito da Natureza e do crime:
“Seria preciso, para ainda melhor servi-la, poder opor-se à regeneração
resultante do cadáver que enterramos. O assassinato só tira a primeira vida ao
indivíduo que abatemos; seria preciso poder arrancar-lhe a segunda, para ser
ainda mais útil à natureza, pois ela quer o aniquilamento: está fora de nosso
alcance dar aos nossos assassinatos a extensão que ela deseja” (Lacan 1991,
258).
Lacan articula
que surge no enunciado de Sade o ponto de cisão entre o princípio de Nirvana ou
de aniquilamento (retorno a um estado de repouso absoluto) e a pulsão de morte.
A pulsão de morte se situa num âmbito histórico, na dimensão do que é memorável
no sentido freudiano, registrado na cadeia significante, e se articula num
nível só definível em função da cadeia significante, numa referência de ordem
em relação ao funcionamento da natureza.
Lacan em Kant
com Sade diz que a segunda morte “reduplica o desvanecimento do sujeito: do
qual ele faz um símbolo, no anseio de que os elementos decompostos de nosso
corpo, para não voltarem a se reunir, sejam, eles mesmos aniquilados” (Lacan
1998, 788).
Podemos pensar a segunda morte, morte simbólica, como o tempo do Instante:
travessia do homem do estado de natureza à entrada na cultura, pelo acesso à
Linguagem. Em Totem e Tabu (Freud 1974) Freud narra esta passagem pelo
fim da horda patriarcal, que era constituída por um pai violento e ciumento,
que guardava todas as fêmeas para si, e expulsou os filhos na medida que
cresciam. Certo dia os irmãos retornaram, mataram e devoraram o pai (refeição
totêmica), efetivando a identificação com ele, adquirindo cada um dos irmãos
parte de sua força. A refeição totêmica é a “comemoração desse ato memorável e
criminoso, que foi o começo de tantas coisas: da organização social, das
restrições morais e da religião” (Freud 1974, 170).
Estamos num momento histórico em
que observamos a queda da palavra, da linguagem, não ocorrendo espaço para o
corte do Simbólico. A segunda morte, neste momento, encontra obstáculos
para se efetivar. A fim de que o simbólico possa cunhar o indivíduo é
necessária a transformação do estado de barbárie. O falo, significante do
desejo, funciona como medida, razão, limite, operador de cunhagem da linguagem,
estando velado. Como significado na operação da Metáfora Paterna, o falo
aguarda a possibilidade de emergência do Nome-do-Pai, para que este possa
apontar onde está o desejo na atualidade.
Pensemos a pulsão de morte. A
pulsão é um conceito psicanalítico essencialmente fronteiriço. Uma linha de
encontro ou “desencontro” entre o somático e psíquico. Nos termos de Freud Trieb
é um “conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como o
representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e
alcançam a mente, como uma medida de exigência feita à mente no sentido de trabalhar
em conseqüência de sua ligação com o corpo” (Freud 1974, 142). Mente e corpo
ligados. Sobre o mistério da ligação do corpo e da mente, Freud busca
decifrá-lo através da pulsão, enquanto que Descartes atribui este ponto de
ligação à glândula pineal.
O Jornal O Globo diz: “A Terra atravessa uma onda de extinção sem
precedentes desde o fim dos dinossauros, segundo a ONU. A cada hora desaparecem
três espécies de plantas ou de animais; por dia, 150 são extintas. A culpa da
perda global de biodiversidade é da Humanidade. Destruição de habitats, caça e
aquecimento global estão entre as principais causas” (O Globo 2007). O homem
gozou da Terra. Lucrou do seu produto. Agora, ocorre a extinção deste produto.
Mas, como na dialética do senhor e do escravo enunciada por Hegel, surge neste
momento o alerta, como mediação, que ativa a mudança de posição na dialética da
consciência humana. Esta notícia vai de encontro ao pensamento de Lacan sobre o
ponto de cisão entre o princípio de Nirvana, ou de aniquilamento, e a pulsão de
morte. O princípio de Nirvana aponta para o ponto de um gozo absoluto. Enquanto
a pulsão de morte clama por uma simbolização, mesmo impossível, da morte.
Em Freud, a partir de 1920, o
princípio de Nirvana surge como uma tendência radical para conduzir a excitação
ao nível zero, referência ao princípio de inércia, buscando evitar qualquer
fonte de excitação, o que leva o prazer ao aniquilamento. A pulsão de morte
se apresenta como uma erótica fundante, como o eterno retorno da fundação e
constituição traumática do sujeito. A experiência traumática,
concomitantemente ao transbordamento pulsional, gera excesso contínuo de
pulsão, sendo que o psiquismo persegue um domínio impossível, já que a descarga
total é a meta final. A pulsão de morte se torna reduto indomável da pulsão,
tendência do ser vivo a retornar ao “inorgânico”. Assim, ao lado do princípio
do prazer surge um outro princípio, a compulsão à repetição, que funciona como
um “eterno retorno” do mesmo, retorno a um ponto de partida, de constituição
traumática do sujeito, relacionado à perda primordial. A pulsão de morte, em
seu movimento em volta do objeto, objeto perdido em busca do tempo perdido da
nomeação, anuncia esta tendência de volta ao inanimado como algo impossível, já
que não é natural, tendo o trauma como ponto de partida da trilha inconsciente
do sujeito. A ilusão de unidade é rompida.
O eterno retorno do mesmo
O eterno retorno do mesmo
O eterno retorno é o pensamento mais
arrebatador de Nietzsche. O devir do mundo transcorre para frente e para trás
no tempo infinito. Como algo finito, o devir volta-se ao mesmo tempo sobre si,
sendo o devir do mundo constante, eterno. Este devir do mundo como devir
finito acontece num tempo infinito, não cessando após o esgotamento de suas
possibilidades finitas, precisando se repetir no futuro como um devir
constante. A totalidade do mundo é finita nas figuras do devir, logo as
possibilidades de variação de seu caráter conjunto são finitas, assim o
processo do devir atrai para si tudo o que passou, impelindo a mesma série para
frente de si, implicando que todo o processo do devir traz a si mesmo de volta,
retornando como os mesmos. “O eterno retorno da totalidade do devir do mundo
precisa ser um retorno do mesmo” (Heidegger 2007, 285-286).
Nietzsche
apresenta o pensamento do eterno retorno pela primeira vez em A Gaia Ciência
(Nietzsche 2001) no aforismo 341: “O maior dos pesos” (O peso mais
pesado). É o pensamento da repetição do mesmo, da vida como é e foi, onde o
indivíduo pode amaldiçoar “o demônio” que comunica este dizer, ou então, viver
um instante imenso, incorporando este pensamento como “o maior dos pesos”,
pensamento que o transforma, pois pesa sobre os seus atos.
Ao pensar este
pensamento mais pesado Nietzsche diz no aforismo 342 que “a tragédia começa” (Incipit
trageodia) através do declínio de Zaratustra. Heidegger afirma que
pelo pensamento do eterno retorno do mesmo o trágico se torna caráter fundamental
do ente. Nietzsche se coloca contra a interpretação aristotélica de encontrar o
trágico em dois afetos depressivos: o pavor (medo) e a compaixão.
Zaratustra é um espírito heróico, pois vai ao encontro de seu mais elevado
sofrimento pelo seu declínio, trazendo a mais elevada esperança. Ele é o mestre
do “super-homem” (além-do-homem). Como diz Heidegger, Zaratustra é o primeiro
pensador do “pensamento dos pensamentos”. Para Heidegger esta é a sua essência:
o pensador propriamente dito do pensamento do eterno retorno do mesmo (Heidegger
2007, 218).
Em Assim
falou Zaratustra (Nietzsche 2006) Nietzsche insere o espírito trágico no
interior do ente. Zaratustra é o pensador trágico, afirma o “sim” mais elevado
ao “não” mais elevado. No capítulo “Da visão e do enigma”, Parte III, um enigma
surge diante de Zaratustra a ser decifrado, impelindo um salto. Zaratustra
narra aos marujos a sua ascensão por uma senda da montanha. E, por este caminho surge o anão, “espírito
do peso” que precisa ser superado. Mas, mesmo puxando para baixo, o espírito da
gravidade, o anão, ameaça do niilismo que paralisa, não suporta o pensamento
abissal de Zaratustra. Para Heidegger a profundidade cresce nesta ascensão, “o
abismo torna-se pela primeira vez abismo... ele ganha as alturas” (Heidegger
2007, 227). Ao pensar o abismo Zaratustra vence o anão: “Alto lá, anão!”,
falei. “Ou eu ou tu! Mas eu sou mais forte dos dois; - tu não conheces o meu
pensamento abismal!” (Nietzsche 2006, 193).
Zaratustra se vê diante de um portal. O portal “Instante”, que traz a
imagem do tempo que corre para trás e para frente até a eternidade. Heidegger
diz que o tempo é percebido a partir do “instante”, do “agora”, e “o todo diz:
o pensamento do eterno retorno do mesmo é articulado agora com o âmbito do
tempo e da eternidade” (Heidegger 2007, 227). O portal é a visão, e a partir
daí começa a marcha da decifração.
Este ponto do
“instante”, que inclui a eternidade, é momento mítico em Freud, pela fundação
do sujeito no mito da horda primitiva, através de sua inserção no campo da
linguagem. O instante e a eternidade, tempo da busca incessante do objeto
perdido.
Antígona e a
segunda morte
O trágico é a
repetição do mesmo. Em Antígona, tragédia de Sófocles, observamos a repetição
do tema do desejo incestuoso em sua origem, dado pela diretriz do destino
trágico de seu pai Édipo, que se repete na sua relação com o irmão Polinices,
que Antígona deseja “enterrar”. Não aceita a exclusão do sujeito do desejo,
buscando num campo “entre duas mortes” encontrar o sentido do limite da segunda
morte, ao nomear a morte do seu irmão, como também a sua própria morte.
Tentativa impossível de encontro do objeto para sempre perdido, incessante
busca para simbolizar a perda deste objeto, pelo movimento de
presença/ausência. Ao ser condenada a ser enterrada viva, Antígona sofre uma
morte antecipada, morte que invade a vida, e vida invadindo a morte. Pontos de
vida e de morte sem limites especificados. Zona que se abre na terra, um
abismo. Até, atas, termo que “designa o limite que a vida humana não
poderia transpor por muito tempo” (Lacan 1991, 318). A aliança incestuosa
vincula Antígona a seu pai e a seu irmão, o seu Até, desgraça e loucura.
Para além da Até se passa um tempo curto. Antígona não suporta mais
viver, “sua vida não vale a pena ser vivida” (Lacan 1991, 318), não aceita se
submeter à “lei” de Creonte, lei sem laço com o desejo. É uma heroína na
posição de “na-finda-linha”, zona limite entre a vida e a morte. Antígona
caminha em direção à segunda morte, morte simbólica. Insiste na simbolização do
cadáver de seu irmão.
Podemos saltar de Antígona para a tragédia urbana. As balas perdidas em
nossas cidades apontam para uma situação-limite entre duas mortes. Balas partem
de armas sem alvos determinados, atingindo a população urbana inesperadamente.
Morte arrombando vidas, e vidas trancadas em casa invadidas pela morte. Esta é
a zona do abismo em que vivemos atualmente. Estas balas são objetos a,
balas sem rumos, objetos errantes, sem alvo.
As crianças
abandonadas em nossas ruas são “restos errantes” que vendem “balas”. Crianças,
que embora amamentadas durante muitos meses por suas mães, como assinala
Françoise Dolto, depois são entregues à mãe natureza, que mantém a
sobrevivência delas, através de alimentos encontrados no lixo, mas que perverte
o sentido afirmativo “do seio-vida” (Dolto 1998, 79).
A pulsão de
morte contorna o objeto para sempre perdido, denunciando, ao mesmo tempo, o seu
desaparecimento, a primeira morte, como também tenta estabelecer um horizonte,
o da segunda morte. O movimento é constante e insistente, busca de
simbolização, transformando a Coisa, lugar de gozo incestuoso, num resíduo, o
desejo, resultado da subtração da necessidade em relação à demanda.
Além do gozo
Caminhamos para o além do gozo.
O princípio de Nirvana, o aniquilamento, ameaça atualmente. A ausência do
simbólico faz emergir o aquém da pulsão de morte. O homem gozou da Terra.
Explorou a Terra, etapa em travessia. Agora, percebe os danos e os ganhos deste
gozo. Há um excesso de gozo. Este excesso no devir do gozo caminha para
o surgimento de uma outra configuração do devir na existência humana. A voz do
eterno retorno do mesmo clama pelo limite. Os movimentos ecologistas clamam
pela pulsão de vida da Terra.
Este espaço–tempo além do gozo se
apresenta para ser pensado por nós, os psicanalistas. O território se
abala. O Real é o impossível, o inapreensível, o indizível, o impensável. Não
cessa de não se escrever. Hoje, está se abrindo uma nova fenda no Real, e
através do pensamento abissal o corte pode ser efetuado.
O mal-estar
contemporâneo, em alguns casos, aparece na clínica através de pacientes que
sofrem do gozo do Outro, sujeitos divididos, alvos dos perversos, que
reivindicam a posição efetiva de sujeito, onde se possa falar uma fala plena. O
setting analítico se torna lugar para o desejo. A fala vazia impera em
nossa cultura. O sujeito do enunciado ganha espaço, sendo que o sujeito da
enunciação, do desejo, fica exprimido, dando lugar à angústia e produções
psicossomáticas. O desamparo não é só familiar, mas da Terra. O inconsciente
tem se manifestado na cultura recente por vivências que apontam para o registro
do Real, carecendo da dimensão Simbólica. Logo, inconsciente de difícil acesso.
Inconsciente, a meu ver, errante, perto de alguma nova fronteira, como extensão
de um saber. Como psicanalistas precisamos pescá-lo, buscá-lo em outras terras,
seguir trilhas inexploradas, para que no futuro possamos afirmar: “Resistimos”
à banalidade da palavra.
A psicanálise tem função de ato, de corte na contemporaneidade, propondo
uma teoria e práxis de “resistência” à banalidade da palavra, pretendendo
manter o solo fecundo e vivo no planeta Terra, semeando o desejo que se conecta à lei, para que possa florescer, acontecer um feliz encontro do homem com a Terra.
Bibliografia
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Paulo.
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Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Trad. Brito, Britto, Oiticica. Imago,
Rio de Janeiro.
Globo, O 2007: Três espécies acabam por
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Pierre 2003: O “Zaratustra” de Nietzsche. Trad. Lucy Magalhães. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro.
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Casanova. Forense Universitária,
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Machado, Roberto 1997: Zaratustra,
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Nasio, J.D. 1991: Os olhos de
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Nietzsche, F.W. 2006: Assim falou Zaratustra. Trad. Mário da Silva. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
Rovighi, S.V. 1999: História da Filosofia Moderna. Trad. Bagno,
Leite. Edições Loyola, São Paulo.
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