sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

O funâmbulo, o gozo, o além...


                                            O funâmbulo, o gozo, o além...

                                                                                 Rosa Jeni Matz

Nietzsche apresenta o funâmbulo no Prólogo de sua obra Assim falou Zaratustra (Nietzsche 2006). O funâmbulo é um bailarino sobre uma corda, que se equilibra em grande altitude, homem que tenta sobreviver numa profissão de risco, dançando sobre a corda lançada pela “altitude” da metafísica.
O percurso do homem da atualidade reativa o caminho percorrido pelo funâmbulo de Nietzsche. O funâmbulo atual, preso aos valores dominantes, midiáticos, religiosos e econômicos, percorre uma trilha de difícil passagem, tentando se equilibrar numa situação-limite, situação sem nome, experiência que clama por uma palavra. Durante o caminhar do funâmbulo de Nietzsche surge o palhaço, que “passa por cima” do obstáculo, sendo o espírito da gravidade, representante do niilismo. Salta sobre o funâmbulo, que “cai da cena”, perde o equilíbrio, onde tentava sustentar a sua fantasia. Ao alcançar o chão, o funâmbulo se despedaça. Morre nos braços de Zaratustra.
O sujeito enfrenta desafios no novo milênio. Segue, buscando a possibilidade de cortar o além do gozo. Travessia do campo do gozo e a segunda morte.

O funâmbulo de Nietzsche
Após dez anos vivendo sobre a montanha, Zaratustra levanta com a aurora de uma manhã, e decide descer ao encontro dos homens, já que transbordava de sabedoria. Zaratustra, gozo do saber? Mas, a quem falar? Para todos e para ninguém, os universais, pois ao chegar à cidade mais próxima não encontra ouvidos para escutarem a sua grande “nova”, que parte da premissa “Deus morreu”, trazendo para o homem o ensino super-homem, “o homem é algo que deve ser superado”, “o super-homem é o sentido da terra” (Nietzsche 2006, 36). Gozo do homem, sentido da terra. “Sentido da terra” não como fim estabelecido pela metafísica, mas como uma meta, um fito, um destino, onde o homem se torna responsável pela sua vida aqui na terra, onde inventa e cria, alcançando um mar que faz submergir o desprezo do homem. O funâmbulo, após ouvir o discurso de Zaratustra na praça, julga que o discurso se referia a ele, e prepara-se para o trabalho a fazer. Mas, Zaratustra ainda diz ao povo: “O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem – uma corda sobre um abismo” (Nietzsche, 2006, 38). Há o perigo ao transpor o abismo, de vacilar, olhar para trás. O povo ri de Zaratustra, que não é compreendido, representando já este povo o último homem, que interpreta “Deus está morto” como imoralidade, trazendo o tempo do mais desprezível dos homens, tempo que o próprio homem se despreza, este homem que inventou a felicidade, embora piscando o olho.
Então, o funâmbulo sai de uma pequena porta e caminha na corda, que se entende entre duas torres, suspensa sobre o povo. Na metade do seu caminho surge da pequena porta um palhaço, pulando rapidamente atrás do funâmbulo e o pressiona, até que pula por cima dele, soltando um grito diabólico. O funâmbulo assusta-se, cai no vazio, percebendo o triunfo do rival. Cai gravemente ferido, com ossos partidos, mas vivo. Zaratustra se aproxima dele. O funâmbulo diz que desde muito sabia que o Diabo o alcançaria, sendo que Zaratustra retruca negando a existência do Diabo e do inferno (nem o Mal, mas também nem o Bem).
Zaratustra não despreza o funâmbulo, pois este faz do perigo o seu trabalho, e deseja sepultar-lhe com as suas mãos. À noite, Zaratustra parte com o companheiro cadáver, carregando-o às costas, e após alguns desencontros e fome, chega à floresta, adormece, e ao acordar uma nova luz raiava em si, anunciando que precisava de companheiros vivos, para quem possa falar, e não de rebanho, de multidão, de mortos. O seu primeiro companheiro, o funâmbulo, um cadáver, fica enterrado numa árvore oca, protegido contra os lobos. Zaratustra não quer mais se dirigir aos mortos, quer se unir aos criadores, afirmar a vida. Quer afastar o demônio do niilismo, “a causa pela qual todas as coisas caem” (Nietzsche, 2006, 67), o espírito de gravidade. 
O funâmbulo assusta-se, deixa-se se desequilibrar pela arrogância do palhaço, representação remanescente do gênio maligno de Descartes, sendo maligna esta face do mal, que se refere à outra face, a de Deus, apontando para a dualidade Bem e Mal. Metafísica dualista do Bem e do Mal. Nietzsche busca com Zaratustra o para além, o para além do Bem e do Mal, não permanecendo mais na dualidade cartesiana, mente e corpo, e sim, como expressa no discurso Dos desprezadores do corpo “a alma é somente uma palavra para alguma coisa no corpo” (Nietzsche 2006, 60). O para além do Bem e do Mal é uma filosofia que diz: “Eu sou todo corpo e nada além disso” (Nietzsche 2006, 60).

O sentido da Terra como gozo
Hoje, o homem vive situações-limite, sendo muitos os funâmbulos. Estamos em outro milênio, mas observamos como o pensamento de Nietzsche através da fala de Zaratustra, é vigoroso. O espírito religioso impera, a globalização apaga as fronteiras. Muitos querem alcançar novos territórios, mas não conseguem transpor suas próprias fronteiras, barreiras, preconceitos, que contêm antigos valores. Estes homens não aprenderam o sentido da terra.
Para muitos, com o avanço da tecnologia, da mídia, a Terra se tornou achatada! Um disco chato! Lacan tentou apreender o Real pela topologia. Considera importante um analista saber usar uma tesoura. Através do cross-cap (gorro cruzado) mostra a relação do sujeito com o objeto, a fantasia, que o sustenta como sujeito desejante. Após um corte topológico no cross-cap surge uma faixa de Moebius, que representa o sujeito, e um disco chato, o objeto a. O sujeito dividido pelo corte, pela linguagem, está encoberto, sofrendo o eclipse da Terra. A Terra, para a tecnologia, é um objeto chato, e como objeto a, é um campo de gozo. O corpo é lugar de gozo, a Terra se torna campo de gozo. O homem está achatado, monótono, o objeto a cobrindo a sua falta, a sua castração. O solo e o homem se “intergozam”. E, ao se identificar imaginariamente com a Terra achatada, o homem se tornou chato, monótono, coisa.
Fomos levados a copiar modelos imperiosos, apontando para a ausência de identificações simbólicas. O homem retorna ao primado da consciência, à mimesis da consciência, às identificações imaginárias (aÛa’), e o significante Nome-do-Pai se torna obscuro. O simbólico torna-se sombra. Como Heidegger afirmava, o ente escondeu o Ser.

O funâmbulo e o campo entre as duas mortes
O funâmbulo da atualidade tenta atravessar abalado uma corda. Parte de um ponto para atingir um outro ponto. De que ponto ele parte? Para qual ponto ele segue? O homem atual está atravessando o campo das duas mortes descritas por Sade, e apresentadas por Lacan em A ética da Psicanálise (Lacan 1991). Lacan afirma que a segunda morte é evocada pelos heróis de Sade como “o ponto onde o próprio ciclo das transformações naturais se aniquila” (Lacan 1991, 301). Não há mais resto vivo, pois a vida não continua. Sade diz a respeito da Natureza e do crime: “Seria preciso, para ainda melhor servi-la, poder opor-se à regeneração resultante do cadáver que enterramos. O assassinato só tira a primeira vida ao indivíduo que abatemos; seria preciso poder arrancar-lhe a segunda, para ser ainda mais útil à natureza, pois ela quer o aniquilamento: está fora de nosso alcance dar aos nossos assassinatos a extensão que ela deseja” (Lacan 1991, 258).
Lacan articula que surge no enunciado de Sade o ponto de cisão entre o princípio de Nirvana ou de aniquilamento (retorno a um estado de repouso absoluto) e a pulsão de morte. A pulsão de morte se situa num âmbito histórico, na dimensão do que é memorável no sentido freudiano, registrado na cadeia significante, e se articula num nível só definível em função da cadeia significante, numa referência de ordem em relação ao funcionamento da natureza.
Lacan em Kant com Sade diz que a segunda morte “reduplica o desvanecimento do sujeito: do qual ele faz um símbolo, no anseio de que os elementos decompostos de nosso corpo, para não voltarem a se reunir, sejam, eles mesmos aniquilados” (Lacan 1998, 788).
Podemos pensar a segunda morte, morte simbólica, como o tempo do Instante: travessia do homem do estado de natureza à entrada na cultura, pelo acesso à Linguagem. Em Totem e Tabu (Freud 1974) Freud narra esta passagem pelo fim da horda patriarcal, que era constituída por um pai violento e ciumento, que guardava todas as fêmeas para si, e expulsou os filhos na medida que cresciam. Certo dia os irmãos retornaram, mataram e devoraram o pai (refeição totêmica), efetivando a identificação com ele, adquirindo cada um dos irmãos parte de sua força. A refeição totêmica é a “comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas coisas: da organização social, das restrições morais e da religião” (Freud 1974, 170).
Estamos num momento histórico em que observamos a queda da palavra, da linguagem, não ocorrendo espaço para o corte do Simbólico. A segunda morte, neste momento, encontra obstáculos para se efetivar. A fim de que o simbólico possa cunhar o indivíduo é necessária a transformação do estado de barbárie. O falo, significante do desejo, funciona como medida, razão, limite, operador de cunhagem da linguagem, estando velado. Como significado na operação da Metáfora Paterna, o falo aguarda a possibilidade de emergência do Nome-do-Pai, para que este possa apontar onde está o desejo na atualidade.
Pensemos a pulsão de morte. A pulsão é um conceito psicanalítico essencialmente fronteiriço. Uma linha de encontro ou “desencontro” entre o somático e psíquico. Nos termos de Freud Trieb é um “conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida de exigência feita à mente no sentido de trabalhar em conseqüência de sua ligação com o corpo” (Freud 1974, 142). Mente e corpo ligados. Sobre o mistério da ligação do corpo e da mente, Freud busca decifrá-lo através da pulsão, enquanto que Descartes atribui este ponto de ligação à glândula pineal.
O Jornal O Globo diz: “A Terra atravessa uma onda de extinção sem precedentes desde o fim dos dinossauros, segundo a ONU. A cada hora desaparecem três espécies de plantas ou de animais; por dia, 150 são extintas. A culpa da perda global de biodiversidade é da Humanidade. Destruição de habitats, caça e aquecimento global estão entre as principais causas” (O Globo 2007). O homem gozou da Terra. Lucrou do seu produto. Agora, ocorre a extinção deste produto. Mas, como na dialética do senhor e do escravo enunciada por Hegel, surge neste momento o alerta, como mediação, que ativa a mudança de posição na dialética da consciência humana. Esta notícia vai de encontro ao pensamento de Lacan sobre o ponto de cisão entre o princípio de Nirvana, ou de aniquilamento, e a pulsão de morte. O princípio de Nirvana aponta para o ponto de um gozo absoluto. Enquanto a pulsão de morte clama por uma simbolização, mesmo impossível, da morte.
Em Freud, a partir de 1920, o princípio de Nirvana surge como uma tendência radical para conduzir a excitação ao nível zero, referência ao princípio de inércia, buscando evitar qualquer fonte de excitação, o que leva o prazer ao aniquilamento. A pulsão de morte se apresenta como uma erótica fundante, como o eterno retorno da fundação e constituição traumática do sujeito. A experiência traumática, concomitantemente ao transbordamento pulsional, gera excesso contínuo de pulsão, sendo que o psiquismo persegue um domínio impossível, já que a descarga total é a meta final. A pulsão de morte se torna reduto indomável da pulsão, tendência do ser vivo a retornar ao “inorgânico”. Assim, ao lado do princípio do prazer surge um outro princípio, a compulsão à repetição, que funciona como um “eterno retorno” do mesmo, retorno a um ponto de partida, de constituição traumática do sujeito, relacionado à perda primordial. A pulsão de morte, em seu movimento em volta do objeto, objeto perdido em busca do tempo perdido da nomeação, anuncia esta tendência de volta ao inanimado como algo impossível, já que não é natural, tendo o trauma como ponto de partida da trilha inconsciente do sujeito. A ilusão de unidade é rompida.

O eterno retorno do mesmo

                      O eterno retorno é o pensamento mais arrebatador de Nietzsche. O devir do mundo transcorre para frente e para trás no tempo infinito. Como algo finito, o devir volta-se ao mesmo tempo sobre si, sendo o devir do mundo constante, eterno. Este devir do mundo como devir finito acontece num tempo infinito, não cessando após o esgotamento de suas possibilidades finitas, precisando se repetir no futuro como um devir constante. A totalidade do mundo é finita nas figuras do devir, logo as possibilidades de variação de seu caráter conjunto são finitas, assim o processo do devir atrai para si tudo o que passou, impelindo a mesma série para frente de si, implicando que todo o processo do devir traz a si mesmo de volta, retornando como os mesmos. “O eterno retorno da totalidade do devir do mundo precisa ser um retorno do mesmo” (Heidegger 2007, 285-286).
Nietzsche apresenta o pensamento do eterno retorno pela primeira vez em A Gaia Ciência (Nietzsche 2001) no aforismo 341: “O maior dos pesos” (O peso mais pesado). É o pensamento da repetição do mesmo, da vida como é e foi, onde o indivíduo pode amaldiçoar “o demônio” que comunica este dizer, ou então, viver um instante imenso, incorporando este pensamento como “o maior dos pesos”, pensamento que o transforma, pois pesa sobre os seus atos.
Ao pensar este pensamento mais pesado Nietzsche diz no aforismo 342 que “a tragédia começa” (Incipit trageodia) através do declínio de Zaratustra. Heidegger afirma que pelo pensamento do eterno retorno do mesmo o trágico se torna caráter fundamental do ente. Nietzsche se coloca contra a interpretação aristotélica de encontrar o trágico em dois afetos depressivos: o pavor (medo) e a compaixão. Zaratustra é um espírito heróico, pois vai ao encontro de seu mais elevado sofrimento pelo seu declínio, trazendo a mais elevada esperança. Ele é o mestre do “super-homem” (além-do-homem). Como diz Heidegger, Zaratustra é o primeiro pensador do “pensamento dos pensamentos”. Para Heidegger esta é a sua essência: o pensador propriamente dito do pensamento do eterno retorno do mesmo (Heidegger 2007, 218). 
Em Assim falou Zaratustra (Nietzsche 2006) Nietzsche insere o espírito trágico no interior do ente. Zaratustra é o pensador trágico, afirma o “sim” mais elevado ao “não” mais elevado. No capítulo “Da visão e do enigma”, Parte III, um enigma surge diante de Zaratustra a ser decifrado, impelindo um salto. Zaratustra narra aos marujos a sua ascensão por uma senda da montanha.  E, por este caminho surge o anão, “espírito do peso” que precisa ser superado. Mas, mesmo puxando para baixo, o espírito da gravidade, o anão, ameaça do niilismo que paralisa, não suporta o pensamento abissal de Zaratustra. Para Heidegger a profundidade cresce nesta ascensão, “o abismo torna-se pela primeira vez abismo... ele ganha as alturas” (Heidegger 2007, 227). Ao pensar o abismo Zaratustra vence o anão: “Alto lá, anão!”, falei. “Ou eu ou tu! Mas eu sou mais forte dos dois; - tu não conheces o meu pensamento abismal!” (Nietzsche 2006, 193).  Zaratustra se vê diante de um portal. O portal “Instante”, que traz a imagem do tempo que corre para trás e para frente até a eternidade. Heidegger diz que o tempo é percebido a partir do “instante”, do “agora”, e “o todo diz: o pensamento do eterno retorno do mesmo é articulado agora com o âmbito do tempo e da eternidade” (Heidegger 2007, 227). O portal é a visão, e a partir daí começa a marcha da decifração.
Este ponto do “instante”, que inclui a eternidade, é momento mítico em Freud, pela fundação do sujeito no mito da horda primitiva, através de sua inserção no campo da linguagem. O instante e a eternidade, tempo da busca incessante do objeto perdido.

Antígona e a segunda morte
O trágico é a repetição do mesmo. Em Antígona, tragédia de Sófocles, observamos a repetição do tema do desejo incestuoso em sua origem, dado pela diretriz do destino trágico de seu pai Édipo, que se repete na sua relação com o irmão Polinices, que Antígona deseja “enterrar”. Não aceita a exclusão do sujeito do desejo, buscando num campo “entre duas mortes” encontrar o sentido do limite da segunda morte, ao nomear a morte do seu irmão, como também a sua própria morte. Tentativa impossível de encontro do objeto para sempre perdido, incessante busca para simbolizar a perda deste objeto, pelo movimento de presença/ausência. Ao ser condenada a ser enterrada viva, Antígona sofre uma morte antecipada, morte que invade a vida, e vida invadindo a morte. Pontos de vida e de morte sem limites especificados. Zona que se abre na terra, um abismo. Até, atas, termo que “designa o limite que a vida humana não poderia transpor por muito tempo” (Lacan 1991, 318). A aliança incestuosa vincula Antígona a seu pai e a seu irmão, o seu Até, desgraça e loucura. Para além da Até se passa um tempo curto. Antígona não suporta mais viver, “sua vida não vale a pena ser vivida” (Lacan 1991, 318), não aceita se submeter à “lei” de Creonte, lei sem laço com o desejo. É uma heroína na posição de “na-finda-linha”, zona limite entre a vida e a morte. Antígona caminha em direção à segunda morte, morte simbólica. Insiste na simbolização do cadáver de seu irmão.
Podemos saltar de Antígona para a tragédia urbana. As balas perdidas em nossas cidades apontam para uma situação-limite entre duas mortes. Balas partem de armas sem alvos determinados, atingindo a população urbana inesperadamente. Morte arrombando vidas, e vidas trancadas em casa invadidas pela morte. Esta é a zona do abismo em que vivemos atualmente. Estas balas são objetos a, balas sem rumos, objetos errantes, sem alvo.
As crianças abandonadas em nossas ruas são “restos errantes” que vendem “balas”. Crianças, que embora amamentadas durante muitos meses por suas mães, como assinala Françoise Dolto, depois são entregues à mãe natureza, que mantém a sobrevivência delas, através de alimentos encontrados no lixo, mas que perverte o sentido afirmativo “do seio-vida” (Dolto 1998, 79).
A pulsão de morte contorna o objeto para sempre perdido, denunciando, ao mesmo tempo, o seu desaparecimento, a primeira morte, como também tenta estabelecer um horizonte, o da segunda morte. O movimento é constante e insistente, busca de simbolização, transformando a Coisa, lugar de gozo incestuoso, num resíduo, o desejo, resultado da subtração da necessidade em relação à demanda.

Além do gozo
Caminhamos para o além do gozo.
O princípio de Nirvana, o aniquilamento, ameaça atualmente. A ausência do simbólico faz emergir o aquém da pulsão de morte. O homem gozou da Terra. Explorou a Terra, etapa em travessia. Agora, percebe os danos e os ganhos deste gozo. Há um excesso de gozo. Este excesso no devir do gozo caminha para o surgimento de uma outra configuração do devir na existência humana. A voz do eterno retorno do mesmo clama pelo limite. Os movimentos ecologistas clamam pela pulsão de vida da Terra.
Este espaço–tempo além do gozo se apresenta para ser pensado por nós, os psicanalistas. O território se abala. O Real é o impossível, o inapreensível, o indizível, o impensável. Não cessa de não se escrever. Hoje, está se abrindo uma nova fenda no Real, e através do pensamento abissal o corte pode ser efetuado.
O mal-estar contemporâneo, em alguns casos, aparece na clínica através de pacientes que sofrem do gozo do Outro, sujeitos divididos, alvos dos perversos, que reivindicam a posição efetiva de sujeito, onde se possa falar uma fala plena. O setting analítico se torna lugar para o desejo. A fala vazia impera em nossa cultura. O sujeito do enunciado ganha espaço, sendo que o sujeito da enunciação, do desejo, fica exprimido, dando lugar à angústia e produções psicossomáticas. O desamparo não é só familiar, mas da Terra. O inconsciente tem se manifestado na cultura recente por vivências que apontam para o registro do Real, carecendo da dimensão Simbólica. Logo, inconsciente de difícil acesso. Inconsciente, a meu ver, errante, perto de alguma nova fronteira, como extensão de um saber. Como psicanalistas precisamos pescá-lo, buscá-lo em outras terras, seguir trilhas inexploradas, para que no futuro possamos afirmar: “Resistimos” à banalidade da palavra.
A psicanálise tem função de ato, de corte na contemporaneidade, propondo uma teoria e práxis de “resistência” à banalidade da palavra, pretendendo manter o solo fecundo e vivo no planeta Terra, semeando o desejo que se conecta à lei, para que possa florescer, acontecer um feliz encontro do homem com a Terra. 

                       Bibliografia

Dolto, Françoise 1998: Solidão. Trad. I. Benedetti. Martins Fontes, São Paulo.
França, M.I. 1997: Psicanálise, estética e ética do desejo. Perspectiva, São Paulo.
Freud, S. 1974: Totem e Tabu. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Trad. O. Muñiz. Imago, Rio de Janeiro.
Freud, S. 1974: Os instintos e suas vicissitudes. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Trad. Brito, Britto, Oiticica. Imago, Rio de Janeiro.
Globo, O 2007: Três espécies acabam por hora no planeta. Jornal O Globo, Rio de Janeiro.
Héber-Suffrin, Pierre 2003: O “Zaratustra” de Nietzsche. Trad. Lucy Magalhães. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro.
Heidegger, M. 2007: Nietzsche I. Trad. Marco Antonio Casanova.   Forense Universitária, Rio de Janeiro.
Lacan, J. 1991: A ética da Psicanálise. Trad. Antonio Quinet. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro.
Machado, Roberto 1997: Zaratustra, tragédia nietzschiana. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro.
                        Nasio, J.D. 1991: Os olhos de Laura. Trad. P. Ramos. Artes Médicas, Porto Alegre.
Nietzsche, F.W. 2001: A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. Companhia das Letras, São Paulo.
Nietzsche, F.W. 2006: Assim falou Zaratustra. Trad. Mário da Silva.  Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
Rovighi, S.V. 1999: História da Filosofia Moderna. Trad. Bagno, Leite. Edições Loyola, São Paulo.


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