Questões sobre a clínica psicanalítica no final do século XX e início do
século XXI
Rosa Jeni Matz
Este trabalho é uma reflexão sobre a crise da clínica psicanalítica nos
finais do século XX e no início do século XXI. Em nosso país, eficientes
psicanalistas trabalham em seus consultórios, mas por que a demanda clínica
diminuiu?
Podemos tentar responder a questão através da perspectiva econômica. O
Brasil e todas as nações vivem um momento difícil. O dinheiro, a moeda é rara.
O desemprego cresce nas manchetes dos jornais. A vida íntima é escrachada em
programas de televisão, onde a moeda comanda. A psicanálise que era considerada
elitista nos anos 1980, embora ocorresse o funcionamento de algumas clínicas
sociais, se popularizou mais, atendendo a população através de clínicas
sociais, convênios, cooperativas, e até nos consultórios particulares o preço
da consulta, muitas vezes, diminuiu pela baixa demanda. Mas será que o problema
econômico atual é a causa da crise na clínica?
Tem ocorrido uma inversão do
privado e do público. Expor o privado não é mais uma questão de vergonha,
humilhação, mas sim uma forma de se aproximar do poder. Na televisão, o privado
se torna público, e sustenta a atenção do público. Gilles Deleuze, em Conversações,
na entrevista Controle e Devir, afirma: “Talvez a fala, a comunicação estejam
apodrecidas. Estão inteiramente penetradas pelo dinheiro: não por acidente mas
por natureza. É preciso um desvio da fala. Criar foi sempre coisa distinta de
comunicar”. Cita Primo Levi, que diz que os campos nazistas introduziram “a
vergonha de ser um homem”. Os homens foram manchados pelo nazismo. Primo Levi
chama de ”zona cinza”: “Vergonha por ter havido homens para serem nazistas,
vergonha por não ter podido ou sabido impedi-lo, vergonha de ter feito
concessões...” Acrescenta Deleuze: E quanto à vergonha de ser um homem,
acontece de a experimentarmos também em circunstâncias simplesmente
derrisórias: diante de uma vulgaridade grande demais no pensar, frente a um
programa de variedades, face ao discurso de um ministro, diante de conversas de
“bons vivants”.
Podemos refletir sobre a
banalização do pensar, como também a ausência do pensamento no mundo atual, no
campo da comunicação, e em muitos programas de televisão. Pensamento como criação,
criação de conceitos. O que encontramos são programas onde a intimidade sai do
ambiente fechado, entrando no ambiente aberto, sem limites. Além da inversão do
privado e do público, as fronteiras se dissipam. Estamos no mundo sem
fronteiras. A arquitetura lança projetos onde as paredes desaparecem. O novo
modelo de residência, o loft, inclui ambientes sem divisórias, onde a
intimidade desaparece. O privado é olhado, controlado.
Gilles Deleuze afirma: “Estamos entrando nas sociedades de controle, que funcionam
não mais por confinamento, mas por controle contínuo e comunicação instantânea.
Burroughs começou a análise dessa situação. Certamente não se deixou de falar
da prisão, da escola, do hospital: essas instituições estão em crise. Mas se
estão em crise, é precisamente em combates de retaguarda. O que está sendo
implantado, às cegas, são novos tipos de sanções, de educação, de tratamento.
O consultório psicanalítico, ambiente de arquitetura fechada, com portas
e paredes, com limites precisos, teria de ser também atingido por essa prática
de poder, o controle. As suas paredes poderão ser demolidas? O edifício
psicanalítico está sendo transformado, sem que muitos profissionais se dêem
conta.
Podemos, também, refletir sobre a psicanálise pelo viés da “moda” (senso
comum). No dicionário Aurélio Buarque de Holanda Ferreira se encontra a moda
definida como: “uso, hábito ou estilo geralmente aceito, variável no tempo, e
resultante de determinado gosto, idéia, capricho e das interinfluências do
meio: conceitos em moda, a moda parnasiana”. Nos anos 1970 e 1980, podemos
perguntar se a psicanálise estava em moda? Com muita força havia o movimento hippie,
a revolução cultural, a anti-psiquiatria e a psicanálise. Os consultórios eram
procurados, a demanda era farta, o apogeu. Para muitos a psicanálise estava em
moda. Mas será que podemos associa-la à moda? Seria a psicanálise um “uso,
hábito ou estilo”? Para os que a utilizaram como uso ela estava em moda. Numa
sociedade capitalista, onde a própria invenção humana, a sua criatividade se
torna um bem de consumo, um gadget, que depois de um tempo é jogado
fora, como uma roupa que não está mais na moda, a clínica pode ter sido
utilizada como um bem durável, como um meio de atingir a felicidade, que ao
atingi-la ou não atingi-la, seria descartado após o seu uso.
Não é, também, pelo hábito que ela pode ser discutida, já que,
figuradamente, como aparência exterior, aparece no mesmo dicionário a expressão
“o hábito não faz o monge”, que Lacan revoluciona ao afirmar que “o hábito faz
o monge”. A questão do estilo é muito vasta. Estilo é definido, no dicionário,
como modo de escrever, de exprimir os pensamentos (entre outras definições).
Podemos pensar em estilo psicanalítico? Esta é uma questão. “Freud explica?”,
como expressão popular estaria relacionada ao estilo psicanalítico e/ou desejo?
Gilles Deleuze, em Diálogos, diz que os devires “são atos que só
podem estar contidos em uma vida e expressos em um estilo”. Tanto os estilos,
como os modos de vida não são construções. “No estilo não são as palavras que
contam, nem as frases, nem os ritmos e as figuras... Gostaria de dizer o que é
um estilo. É a propriedade daqueles dos quais habitualmente se diz “eles não
têm estilo...”. Não é uma estrutura significante, nem uma organização
refletida, nem uma inspiração espontânea, nem uma orquestração, nem uma
musiquinha. É um agenciamento, um agenciamento de enunciação. Conseguir
gaguejar em sua própria língua é isso um estilo... ser gago da própria
linguagem. Ser como um estrangeiro em sua própria língua”.
Podemos pensar em Freud como um estrangeiro em sua língua alemã. Um
estrangeiro, o estranho (unheimlich) no sentido do que lhe era mais
familiar (heimlich). Consideramo-lo um grande escritor. A sua obra
revolucionária gerou estranheza no meio intelectual de sua época. A expressão
“Freud explica” aponta para uma estranheza, um desconhecimento na língua. Algo
precisa ser explicado, algo escapa, há uma falta, daí a sua relação com o
desejo.
Psicanálise não é moda. Ela se torna moda quando é usada e abusada. Esta
não é sua finalidade. Mas, constantemente ouvimos afirmações como: “A
psicanálise saiu de moda”. Como tentar explicar este momento? Como sair desta
indagação? Em várias revistas e jornais encontramos entrevistas em que os entrevistadores
questionam aos entrevistados (psicanalistas, historiadores da psicanálise, etc)
se a psicanálise terminou, se a morte da psicanálise se aproxima.
Hoje, as
academias de ginásticas estão lotadas. O corpo malhado é a grande meta, o bem
supremo. A aparência jovem, esbelta, musculosa comanda o espetáculo. A saúde,
tanto física como mental, é adquirida através de exercícios físicos regulares.
O corpo é a grande estrela. Bodypump, Spinner, e outras técnicas são
utilizadas em academias como fornecedoras de uma idéia de um corpo perfeito,
ideal. “Become Somebody”. Esta é uma propaganda ligada ao BodyPump.
Tornar-se alguém, tornar-se pessoa? A famosa obra de Carl Rogers, Tornar-se
Pessoa, hoje se banalizou nas academias. Hoje, tornar-se alguém ou ninguém
é ter um corpo “sarado”, quer dizer musculoso.
Observamos uma
mudança na sexualidade. A psicanálise tem como um dos seus fundamentos a
sexualidade humana. O surgimento da AIDS trouxe transformações no comportamento
humano, e principalmente na sua vida sexual. Atualmente morte e sexo estão
fortemente associados. As pessoas diminuíram a sua atividade sexual, fazendo
sexo por telefone, pela Internet. O grande momento da clínica psicanalítica vem
junto a um movimento de liberdade sexual. As pessoas faziam sexo,
experimentavam suas possibilidades. Podemos associar esta crise psicanalítica
com a crise da libido atual. Esta energia está presa, deslocando a prática
sexual para o sexo virtual. O discurso psicanalítico trata do sexo, o
esvaziamento da clínica demonstra também o desinteresse atual pelo sexo, sendo
o sexo deslocado para o virtual e o banal. Apesar de estarmos em outra direção
do que a de Deleuze é importante cita-lo: “A psicanálise é exatamente uma
masturbação, um narcisismo generalizado, organizado, codificado. A sexualidade
não se deixa sublimar, nem fantasiar, o que a interessa está noutra parte, na
vizinhança e na conjugação reais com outros fluxos, que a esgotam ou precipitam
– tudo depende do momento, e do agenciamento”. Precisamos refletir sobre estes
fluxos que esgotam ou precipitam a sexualidade e sua relação com a teoria e a
técnica psicanalítica atual. Quais os fluxos que estariam esgotando a prática
psicanalítica?
Como pensar sobre
a diminuição da demanda na clínica psicanalítica? Como se aproximar deste
esvaziamento? Utilizarei a filosofia como “ferramenta” auxiliar a psicanálise,
aproximando-me da seguinte reflexão de Deleuze nos Diálogos: “Quando se
consegue traçar a linha, pode-se dizer é “filosofia”. Não que a filosofia seja
uma disciplina última, uma raiz última que contivesse a verdade das outras, ao
contrário. Muito menos uma sabedoria popular. É porque a filosofia nasce ou é
produzida de fora pelo pintor, pelo músico, pelo escritor, a cada vez que a
linha melódica leva o som, ou a pura linha traçada, a cor, ou a linha escrita,
a voz articulada. Não há necessidade alguma de filosofia: ela é inevitavelmente
produzida lá onde cada atividade faz brotar sua linha de desterritorialização.
Sair da filosofia, fazer qualquer coisa para produzi-la de fora. Os filósofos
sempre foram outra coisa, nasceram de outra coisa.”
Assim, este
próprio trabalho produziu de fora a filosofia, já que traz uma voz, escrita
articulada. A psicanálise, como atividade clínica, está fazendo brotar uma
linha de desterritorialização. Ocorre um esvaziamento de um território para
outro. A filosofia nasce de outra coisa. Este acontecimento, encontro do
agenciamento psicanálise e do agenciamento filosofia, nas suas diferenças,
estabelecem relações. Através destas relações, deste encontro, será
desenvolvida esta reflexão.
Hannah Arendt,
filósofa e pensadora política, nascida na Alemanha em 1906, morrendo em 1975,
deixou inacabada a obra A Vida do Espírito, dedicada ao pensamento, à
vontade, e ao juízo. No volume 1, sobre o pensar, cita que tanto a filosofia, a metafísica, a
teologia “caíram em descrédito”.
Discute a afirmação de que Deus está morto: “Deus está morto” (Hegel e
Nietzsche), não é que certamente esteja morto (“algo sobre o qual o nosso conhecimento é tão pequeno quanto o que
temos sobre a existência de Deus (tão pequeno, de fato que mesmo a palavra
“existência” está mal empregada), mas que a maneira pela qual Deus foi pensado
durante milhares de anos não é mais convincente; se algo está morto, só pode
ser o pensamento tradicional sobre Deus. E algo semelhante
vale também para o fim da filosofia metafísica: não que as velhas questões tão
antigas quanto o próprio aparecimento do homem sobre a Terra tenham se tornado
“sem sentido”, mas a maneira pela qual foram feitas e respondidas perdeu a
razoabilidade”. Logo, alerta para as novas questões que surgem para o
pensamento.
Estas “mortes
modernas” foram acontecimentos com determinadas conseqüências históricas
importantes. Descartes, o filósofo fundamental da Era Moderna, no estágio
inicial desta era, trata cada assunto afirmando “como se ninguém o tivesse
abordado antes de mim”. O mundo novo se descortinava. Através do ponto
arquimediano um novo olhar é introduzido. O sujeito entra em cena. O mundo é o
da subjetividade. Passamos a nos olhar e a olhar a tudo como seres universais.
Ocorre uma mudança na maneira de representar o mundo. A compreensão do mundo
através de um ponto remoto da Terra; uma recodificação do mundo em termos
algébricos.
A psicanálise surgiu no final do século
passado. Freud revoluciona o pensamento ao introduzir o conceito de
inconsciente. Não falamos em Séc. XVII, mas em Séc. XIX. A psicanálise que teve
uma grande demanda nos anos 1970 e 1980 no Brasil, séc. XX, também como a
metafísica e outros campos do saber, teria de viver a sua crise, já que é
característica do capitalismo decodificar para depois recodificar. Teria que
viver a sua “morte moderna”, ou melhor, pós-moderna. Este é o processo
capitalista, construção e desconstrução. A noção de progresso surgiu como
produto das descobertas científicas no Séc. XVII, criando uma conexão com o
ilimitado, levando a necessidade de descobertas renovadas, de um “processo” de
progresso. Seria uma nova ilusão de felicidade. Novas formas de conhecimento
precisam surgir para que a visão capitalista de felicidade se mantenha. Agora,
como H. Arendt afirma ao se referir a “morte” da metafísica, é possível que
algumas respostas às questões psicanalíticas perderam o sentido, não
invalidando estas questões.
Hoje, ocorre um
descrédito de tudo que não é visível. Segundo H Arendt, a principal
característica das atividades espirituais é a sua invisibilidade. Há uma grande
dificuldade em abordar e percorrer o “domínio do invisível”, sendo que ela
adverte sobre o perigo de se perder o passado e suas tradições. Podemos falar
de uma crise dos ideais? Seria possível, como H. Arendt coloca, haver uma morte
do invisível? Entre 1929, Moisés e o monoteísmo, e 1938, O mal-estar
na cultura, Freud “terminou” a sua reflexão sobre o supereu, reunindo as
reflexões já feitas em Totem e Tabu, fundamentando o assassínio do chefe
da horda primitiva como a origem do supereu e do sentimento de culpa,
estabelecendo uma relação entre agressividade e sentimento de culpa, e
surgimento da linguagem e do pensamento.
Podemos relacionar a
crise da clínica, neste final de século, com a reflexão realizada por Hannah
Arendt sobre a ausência de pensamento? Estaríamos convivendo com a banalidade
do mal?
A. Green
denomina de estados - limite uma variedade da clínica atual, que também podem
ser considerados como estados limites de anasabilidade. J. Mc. Dougall denominou
– os de anti – analisantes. O modelo destes casos – limite conduz a uma
contradição entre angústia de separação e angústia de intrusão. Esta angústia,
diz Green, parece não atingir a problemática do desejo, mas sim à formação do
pensamento (Bion).
H. Arendt
pergunta: “O que nos faz pensar?” Responde com Kant que seria pela “necessidade
da razão, o impulso interno dessa faculdade para se realizar na especulação”.
Kant distingue Vernunft (razão) e Verstand (intelecto) após
descobrir o “escândalo da razão”, que seria que “o nosso espírito não é capaz
de um conhecimento certo e verificável em relação a assuntos e questões sobre
os quais, no entanto, ele mesmo não se
pode impedir de pensar”. São as “questões últimas”, que apenas o pensamento se
ocupa: Deus, liberdade e imortalidade. A “necessidade urgente” da razão é mais
que a busca de conhecimento, que caberia ao intelecto. Razão coincidiria com o
pensar, e este com o significado; e o intelecto com o conhecimento, a cognição.
Mas, Hannah Arendt comenta, que pela influência da metafísica, Kant permaneceu
inconsciente com relação ao fato de que a necessidade humana de refletir
acompanha quase tudo o que acontece ao homem, ora as coisas que conhece, e ora
as que nunca poderá conhecer. Mas, por tê-la justificado unicamente em termos
das questões últimas Kant não se deu conta que havia liberado a razão, portanto
a habilidade de pensar. Afirmava, defensivamente, que havia achado necessário
negar o conhecimento para abrir espaço para fé. Mas não abriu espaço para a fé,
e sim para o pensamento, não “negou o conhecimento“, mas separou o conhecimento
do pensamento.
Sócrates,
consciente de que lidava com invisíveis, utiliza uma metáfora para esclarecer a
atividade de pensar, a metáfora do vento: “os ventos são eles mesmos
invisíveis, mas o que eles fazem mostra-se a nós e, de certa maneira, sentimos
quando eles se aproximam”. Em Antígona de Sófocles, encontramos a mesma
metáfora: “pensamento rápido como o vento”.
Heidegger se refere ao “tufão do pensamento“. Descartes, em suas Meditações
afirma: “Se duvido, penso”. Parte da máxima incerteza, do mundo sensível,
do mundo dos sentidos, demolindo antigas opiniões, consideradas falsas, regidas
por um malin génie, chegando a uma primeira certeza a respeito da
própria subjetividade: ”penso”. Depois da dúvida chega-se a certeza do Cogito:
“Penso, logo sou”.
Lacan reflete sobre
o sujeito da certeza, afirmando que a via de Freud é cartesiana, parte do
fundamento do sujeito da certeza, mas o que “Descartes não sabia, a não ser que
fosse o sujeito de uma certeza e rejeição de todo saber anterior – mas nós
sabemos, graças a Freud, que o sujeito do inconsciente se manifesta, que isso
pensa antes de entrar na certeza”. Esta é a grande revolução freudiana, o
“pensamento” inconsciente. Como Lacan fala: “Tudo que anima, o de que fala toda
enunciação, é desejo”. Para Lacan a hiância do inconsciente é “pré-ontológica”,
o que é da ordem do inconsciente “é que ele não é nem ser nem não-ser, mas é
algo de não-realizável“.
Eros, no sentido
grego é amor, e Sócrates se diz conhecedor do tema do amor onde Hannah Arendt
afirma: “O amor, como Eros, é antes de tudo, uma falta; deseja o que não tem.
Os homens amam a sabedoria e começam a filosofar porque não são sábios... Ao
desejar o que não tem, o amor estabelece uma relação com o que não está
presente... É porque a busca empreendida pelo pensamento é um tipo de amor
desejante que os objetos do pensamento só podem ser coisas merecedoras de amor
– beleza, sabedoria, justiça etc. O mal e a feiúra quase por definição estão
excluídos da consideração do pensamento. Eles podem apresentar-se como
deficiências, consistindo a feiúra na ausência da beleza e o mal, kakia,
na ausência de bem”. Para Sócrates o pensamento dissolve conceitos positivos
até o significado original, o mesmo acontecendo com os negativos, até o nada.
Logo, não acredita em mal voluntário, “o mal não tem estatuto ontológico: ele
consiste em uma ausência, um algo que não é”. A relação entre o mal e a
ausência de pensamento em Sócrates é “que as pessoas que não amam a beleza, a
justiça e a sabedoria são incapazes de pensar, enquanto que reciprocamente,
aqueles que amam a investigação, e assim “fazem filosofia” são incapazes de fazer
o mal”.
Hannah Arendt,
tomando como base esta reflexão socrática, aproxima-se da questão tão discutida
da possível conexão entre a ausência de pensamento e o mal. Diz que Sócrates
não pode ter acreditado que só poucos têm capacidade de pensar, nem que só
alguns objetos de pensamento ofertam dignidade à atividade de pensar. “Se há
algo no pensamento que possa impedir os homens de fazer o mal, esse algo deve
ser uma propriedade inerente à própria atividade, independente dos seus objetos”.
Sobre este assunto, no diálogo Górgias, onde o tema é a retórica (arte
de dirigir e convencer as pessoas), Sócrates traz duas afirmações. A primeira é
“melhor sofrer o mal do que o cometer“; e a segunda: ”Eu preferiria que minha
lira ou um coro por mim dirigido desafinasse e produzisse ruído desarmônico, e
[preferiria] que multidões de homens discordassem de mim do que eu, sendo um, viesse a entrar em desacordo
comigo mesmo e a contradizer-me”. Apesar de Platão ter concluído o diálogo com
um mito de além-mundo, onde reconhece o fato de que o homem voluntariamente
comete atos maus, demonstrando a dificuldade destes filósofos de lidar com o
problema do mal, Sócrates não está falando como cidadão comum, mas abordando a
questão do pensamento. Sócrates se diz apaixonado pela sabedoria, respondendo a
Cálicles que não o compreende, que diz primeiro que é melhor morrer do que ser
escravo, pois sofrer o mal não é digno do homem (na Grécia se o indivíduo fosse
a guerra e perdesse, era melhor morrer do que se tornar escravo do vitorioso);
e segundo, que Sócrates estava “enlouquecido pela eloquência”.
Hannah Arendt
afirma que Sócrates se diz um, logo não quer entrar em desacordo consigo mesmo,
mas nada do que é Um, idêntico a si mesmo (A é A), pode estar em harmonia ou
desarmonia consigo mesmo, “no mínimo dois tons sempre são necessários para
produzir um som harmonioso. Certamente quando apareço e sou visto pelos outros,
sou um; de outro modo seria irreconhecível... Chamamos de consciência
(literalmente, “conhecer comigo mesmo”, como vimos) o fato curioso de que, em
certo sentido, eu também sou para mim
mesmo, embora quase não apareça para mim – o que indica que “sendo um” socrático não é tão pouco
problemático como parece; eu não sou
apenas para os outros, mas também para mim mesmo; e, nesse último caso,
claramente eu não sou apenas um. Uma diferença se instala na minha unicidade”.
Hannah
Arendt afirma que Sócrates descobriu o “dois-em-um” como essência do
pensamento, mas quando o pensador é chamado para o mundo das aparências, ele se
torna Um, pois o processo de pensamento é interrompido, como se a dualidade em
que tinha se dividido o pensamento retornasse à unidade. O pensamento,
existencialmente falando, é um “estar-só“, não sendo solidão. “O estar-só é a
situação que me faço companhia”. A solidão seria a incapacidade de se dividir
em “dois-em-um”, como Jaspers afirmava: “eu falto a mim mesmo“. Os homens, para
Hannah Arendt existem no plural. É a dualidade do eu consigo mesmo que torna o
pensamento uma atividade onde eu mesmo pergunto e respondo.
Para Sócrates a
dualidade do “dois–em-um” representava que para aquele que quer pensar é
proveitoso que os parceiros do diálogo sejam “amigos”. “O parceiro que desperta...
quando estamos alertas e sós, é o único do qual não podemos nos livrar - exceto
parando de pensar. É melhor sofrer uma injustiça do que cometê-la; quem
gostaria de ser amigo e ter que conviver com um assassino?” Hannah Arendt
associa a afirmação socrática com o Imperativo Categórico de Kant: “subjacente
ao imperativo “aja apenas segundo uma máxima tal que você possa ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal” está a ordem: não se
contradiga”. A lei básica do diálogo do pensamento é não se contradiga.
No diálogo Hípias
Maior, Sócrates descreve esta situação ao se referir que em sua casa lhe
espera um parente próximo, afirmando Hannah Arendt, que anos depois a este
sujeito que lhe aguarda em casa foi dado o nome de “consciência moral”, que
aparece como um repensar de opiniões não submetidas à análise: “O que faz um
homem temê-la é a antecipação da presença de uma testemunha que o aguarda
apenas se e quando ele volta para
casa”. E, prossegue: “Não se trata aqui de perversidade ou bondade, como também
não se trata de inteligência ou estupidez. Uma pessoa que não conhece essa
interação silenciosa (na qual examinamos o que dizemos e fazemos) não se
importa em contradizer-se, e isso significa que ela jamais quererá ou poderá prestar
contas do que faz ou diz; nem se importará em cometer um crime, já que pode
estar certa de esquecê-lo no momento seguinte”. Nem poderá começar “este
diálogo isolado e sem som que chamamos de pensar...”.
A psicanálise é "arte" com palavras, linguagem. O pensamento socrático traz importantes
contribuições para a compreensão do discurso psicanalítico. No Banquete,
de Platão, obra de leitura atenta realizada por Lacan, encontramos conceitos
fundamentais como desejo e transferência. Hannah Arendt realiza uma leitura
original do pensamento socrático sobre
pensar e ausência do pensar. Hoje, ocorre desinteresse para a ação do
pensar. A diminuição da demanda à clínica psicanalítica se aproxima desta
situação crescente mundial de ausência de pensamento, do encolhimento do
simbólico, aparecendo a condição de solidão. Cada vez mais o homem se torna
solitário: a solidão como incapacidade de dividir “dois-em-um”.
Bibliografia
Arendt, H.. A Vida do Espírito.
RJ: Relume Dumará, 1995.
Arendt H.. A Condição Humana.
RJ: Forense Universitária, 1999.
Descartes, R.. Meditações. In Os pensadores.
SP: Editora Nova Cultural, 1999.
Deleuze, G.. Conversações. SP: Editora 34, 1998.
Deleuze, G. e Parnet, C.. Diálogos. SP: Editora Escuta,1998.
Ferreira, A. B. H.. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. RJ:
Editora Nova Fronteira.
Kaufmann P.. Dicionário Enciclopédico de Psicanálise. RJ: Jorge
Zahar, 1996.
Lacan, J.. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. RJ:
Jorge Zahar, 1988.
Rogers, C. R.. Tornar–se Pessoa, Lisboa: Livraria Martins
Fontes, 1973.