quinta-feira, 30 de maio de 2013

Imaginário, Simbólico, Real, Autre

          Quatro conceitos em Lacan: Imaginário, Simbólico, Real e Autre (Outro).
                                                                                            Rosa Jeni Matz
 
Lacan explicita o campo psicanalítico através de 3 registros: Imaginário, Simbólico e Real, registros essenciais da realidade humana (réalité humaine).

Imaginário.

Modalidades do Imaginário. 
- No estádio especular se funda a relação narcisista entre a criança e a mãe, relação dual estruturada pela imagem do semelhante (semelhante = outro, autre), constituindo o eu (moi) da criança através de uma identificação imaginária com a mãe (eu-ideal), que se torna uma “unidade” ilusória de seu corpo, gestalt ilusória, pois o sistema motor e o sistema nervoso do infans (que ainda não fala) não se encontram desenvolvidos, devido a prematuração específica do nascimento no homem. A criança sai do momento do corpo despedaçado. O espelho funciona como Autre (Outro), pois se espera que a mãe ao entrar nesta relação com a criança já seja cortada anteriormente pela linguagem (Simbólico), senão acarreta casos de psicose.
- É o registro das imagens, da ilusão, do engano, da fascinação, da captação da imagem que determina a submissão da criança ao olhar do outro, captação imaginária do duplo, e do transitivismo entre as crianças colocadas uma frente à outra (a criança que bate diz que apanha), da confusão entre si e o outro, da agressividade.

Simbólico

      O registro do Simbólico baseia-se em descobertas da antropologia estrutural e da lingüística. O simbolismo social, cultural e lingüístico impõe-se como ordens anteriores, já constituídas para o infans, que será modelado segundo as estruturas destas ordens. A entrada da criança na ordem simbólica será pelo Édipo (os três momentos do Édipo em Lacan, sendo que no terceiro momento se dá o acesso da criança ao simbólico através da metáfora paterna, sustentada pelo recalque originário, que é estruturante, simbolização primordial da lei, metaforização efetuada através da substituição do significante do desejo da mãe pelo significante Nome-do-Pai), e pelas estruturas da linguagem.
“O inconsciente é estruturado como uma linguagem”, sendo o recalcado constituído por significantes que se organizam numa rede de combinações metafóricas e metonímicas (influências de Saussure e Jakobson). O sujeito é efeito da cadeia de significantes inconsciente.
O interdito do incesto (Lei) organiza a entrada da criança no social. A lei instaura as relações mediatas, por meio do símbolo, passando a criança de uma relação imediata com a mãe para uma relação mediata, graças à instauração da ordem simbólica pela entrada do pai, Nome-do-Pai, instituindo a falta pela castração.

Modalidades do Simbólico.
- o reconhecimento do sujeito, da palavra (plena), do ato, da responsabilidade, da verdade (meia-verdade), do saber, do desejo em relação à lei, se dá neste espaço/tempo de ordenamento simbólico.

Real

Campo propriamente lacaniano, discernido pela modalidade lógica do impossível, não cessando de não se escrever, ex-sistindo a imaginarização e à simbolização.

      Modalidades do Real.
- O real escapa à simbolização, se situando à margem da linguagem, embora tentamos apreender pedaços do real por intermédio do simbólico.
- O real é sem lei, não tem ordem, sem fendas. Pelo real aproximamos à categoria do gozo, que aponta para o excesso, tensão que ultrapassa um limite, e ao objeto a. O objeto a apresenta uma face como objeto causa de desejo, e outra face como resto, mais-gozar, que não é simbolizável, sendo partes destacáveis do corpo: seio, fezes, olhar e voz.
- O estatuto da Coisa (das Ding), alguma coisa isolada da cadeia significante, e a repetição, uma coisa não pode ser substituída por outra por não poderem se tornar significantes.
- A impossibilidade da relação sexual (il n’y a pas de rapport sexuel) – Lacan não afirma que as pessoas não têm relações sexuais, mas como Freud, diz que só há libido masculina, logo não há no inconsciente significante de/para mulher, a mulher não existe, portanto impossibilidade de relação/razão (simbólica) entre os 2 sexos. Em termos de lógica simbólica e teoria dos conjuntos só os homens são circunscritos pela função fálica, sendo as mulheres não-todas nesta função.

Autre – A -Outro
- A Outra cena, é um lugar onde se situam os elementos significantes, marcando a determinação simbólica do sujeito, articulando o inconsciente: “O inconsciente é o discurso do Outro”, “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. São as relações significantes que obedecem às leis da linguagem, determinando a constituição do sujeito desde o nascimento.
-  Lugar do código, linguagem, lei.
- É do Autre que se trata na função da fala.
-  “O desejo do homem é o desejo do Outro”, onde o sujeito se pergunta “o que quer o Outro?”.
- Modalidades: lugar do tesouro dos significantes, como Pai e Mãe (primeiros Outros da linguagem), desejo do Outro, demanda do Outro, gozo do Outro, Deus, o inconsciente.
- Autre barrado – Outro como falta, incompleto estruturalmente.

Referências
Fink, B. O sujeito lacaniano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
Lemaire, Anika. Jacques Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro: Campus, 1979.
Lacan, J. Seminários 1,  5, 7, 11, 22, 23. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Lacan, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
Roudinesco, Elizabeth e Plon, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
Vallejo, A. e Magalhães, L. Lacan: Operadores da Leitura. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1991.   

domingo, 26 de maio de 2013

Questões sobre a clínica psicanalítica no final do século XX e início do século XXI

Questões sobre a clínica psicanalítica no final do século XX e início do século XXI
                                                                                                     Rosa Jeni Matz

Este trabalho é uma reflexão sobre a crise da clínica psicanalítica nos finais do século XX e no início do século XXI. Em nosso país, eficientes psicanalistas trabalham em seus consultórios, mas por que a demanda clínica diminuiu?
Podemos tentar responder a questão através da perspectiva econômica. O Brasil e todas as nações vivem um momento difícil. O dinheiro, a moeda é rara. O desemprego cresce nas manchetes dos jornais. A vida íntima é escrachada em programas de televisão, onde a moeda comanda. A psicanálise que era considerada elitista nos anos 1980, embora ocorresse o funcionamento de algumas clínicas sociais, se popularizou mais, atendendo a população através de clínicas sociais, convênios, cooperativas, e até nos consultórios particulares o preço da consulta, muitas vezes, diminuiu pela baixa demanda. Mas será que o problema econômico atual é a causa da crise na clínica?
 Tem ocorrido uma inversão do privado e do público. Expor o privado não é mais uma questão de vergonha, humilhação, mas sim uma forma de se aproximar do poder. Na televisão, o privado se torna público, e sustenta a atenção do público. Gilles Deleuze, em Conversações, na entrevista Controle e Devir, afirma: “Talvez a fala, a comunicação estejam apodrecidas. Estão inteiramente penetradas pelo dinheiro: não por acidente mas por natureza. É preciso um desvio da fala. Criar foi sempre coisa distinta de comunicar”. Cita Primo Levi, que diz que os campos nazistas introduziram “a vergonha de ser um homem”. Os homens foram manchados pelo nazismo. Primo Levi chama de ”zona cinza”: “Vergonha por ter havido homens para serem nazistas, vergonha por não ter podido ou sabido impedi-lo, vergonha de ter feito concessões...” Acrescenta Deleuze: E quanto à vergonha de ser um homem, acontece de a experimentarmos também em circunstâncias simplesmente derrisórias: diante de uma vulgaridade grande demais no pensar, frente a um programa de variedades, face ao discurso de um ministro, diante de conversas de “bons vivants”.
 Podemos refletir sobre a banalização do pensar, como também a ausência do pensamento no mundo atual, no campo da comunicação, e em muitos programas de televisão. Pensamento como criação, criação de conceitos. O que encontramos são programas onde a intimidade sai do ambiente fechado, entrando no ambiente aberto, sem limites. Além da inversão do privado e do público, as fronteiras se dissipam. Estamos no mundo sem fronteiras. A arquitetura lança projetos onde as paredes desaparecem. O novo modelo de residência, o loft, inclui ambientes sem divisórias, onde a intimidade desaparece. O privado é olhado, controlado.
Gilles Deleuze afirma: “Estamos entrando nas sociedades de controle, que funcionam não mais por confinamento, mas por controle contínuo e comunicação instantânea. Burroughs começou a análise dessa situação. Certamente não se deixou de falar da prisão, da escola, do hospital: essas instituições estão em crise. Mas se estão em crise, é precisamente em combates de retaguarda. O que está sendo implantado, às cegas, são novos tipos de sanções, de educação, de tratamento.
O consultório psicanalítico, ambiente de arquitetura fechada, com portas e paredes, com limites precisos, teria de ser também atingido por essa prática de poder, o controle. As suas paredes poderão ser demolidas? O edifício psicanalítico está sendo transformado, sem que muitos profissionais se dêem conta.    
Podemos, também, refletir sobre a psicanálise pelo viés da “moda” (senso comum). No dicionário Aurélio Buarque de Holanda Ferreira se encontra a moda definida como: “uso, hábito ou estilo geralmente aceito, variável no tempo, e resultante de determinado gosto, idéia, capricho e das interinfluências do meio: conceitos em moda, a moda parnasiana”. Nos anos 1970 e 1980, podemos perguntar se a psicanálise estava em moda? Com muita força havia o movimento hippie, a revolução cultural, a anti-psiquiatria e a psicanálise. Os consultórios eram procurados, a demanda era farta, o apogeu. Para muitos a psicanálise estava em moda. Mas será que podemos associa-la à moda? Seria a psicanálise um “uso, hábito ou estilo”? Para os que a utilizaram como uso ela estava em moda. Numa sociedade capitalista, onde a própria invenção humana, a sua criatividade se torna um bem de consumo, um gadget, que depois de um tempo é jogado fora, como uma roupa que não está mais na moda, a clínica pode ter sido utilizada como um bem durável, como um meio de atingir a felicidade, que ao atingi-la ou não atingi-la, seria descartado após o seu uso.
Não é, também, pelo hábito que ela pode ser discutida, já que, figuradamente, como aparência exterior, aparece no mesmo dicionário a expressão “o hábito não faz o monge”, que Lacan revoluciona ao afirmar que “o hábito faz o monge”. A questão do estilo é muito vasta. Estilo é definido, no dicionário, como modo de escrever, de exprimir os pensamentos (entre outras definições). Podemos pensar em estilo psicanalítico? Esta é uma questão. “Freud explica?”, como expressão popular estaria relacionada ao estilo psicanalítico e/ou desejo?
Gilles Deleuze, em Diálogos, diz que os devires “são atos que só podem estar contidos em uma vida e expressos em um estilo”. Tanto os estilos, como os modos de vida não são construções. “No estilo não são as palavras que contam, nem as frases, nem os ritmos e as figuras... Gostaria de dizer o que é um estilo. É a propriedade daqueles dos quais habitualmente se diz “eles não têm estilo...”. Não é uma estrutura significante, nem uma organização refletida, nem uma inspiração espontânea, nem uma orquestração, nem uma musiquinha. É um agenciamento, um agenciamento de enunciação. Conseguir gaguejar em sua própria língua é isso um estilo... ser gago da própria linguagem. Ser como um estrangeiro em sua própria língua”.
Podemos pensar em Freud como um estrangeiro em sua língua alemã. Um estrangeiro, o estranho (unheimlich) no sentido do que lhe era mais familiar (heimlich). Consideramo-lo um grande escritor. A sua obra revolucionária gerou estranheza no meio intelectual de sua época. A expressão “Freud explica” aponta para uma estranheza, um desconhecimento na língua. Algo precisa ser explicado, algo escapa, há uma falta, daí a sua relação com o desejo.  
Psicanálise não é moda. Ela se torna moda quando é usada e abusada. Esta não é sua finalidade. Mas, constantemente ouvimos afirmações como: “A psicanálise saiu de moda”. Como tentar explicar este momento? Como sair desta indagação? Em várias revistas e jornais encontramos entrevistas em que os entrevistadores questionam aos entrevistados (psicanalistas, historiadores da psicanálise, etc) se a psicanálise terminou, se a morte da psicanálise se aproxima.
 Hoje, as academias de ginásticas estão lotadas. O corpo malhado é a grande meta, o bem supremo. A aparência jovem, esbelta, musculosa comanda o espetáculo. A saúde, tanto física como mental, é adquirida através de exercícios físicos regulares. O corpo é a grande estrela. Bodypump, Spinner, e outras técnicas são utilizadas em academias como fornecedoras de uma idéia de um corpo perfeito, ideal. “Become Somebody”. Esta é uma propaganda ligada ao BodyPump. Tornar-se alguém, tornar-se pessoa? A famosa obra de Carl Rogers, Tornar-se Pessoa, hoje se banalizou nas academias. Hoje, tornar-se alguém ou ninguém é ter um corpo “sarado”, quer dizer musculoso.
                  Observamos uma mudança na sexualidade. A psicanálise tem como um dos seus fundamentos a sexualidade humana. O surgimento da AIDS trouxe transformações no comportamento humano, e principalmente na sua vida sexual. Atualmente morte e sexo estão fortemente associados. As pessoas diminuíram a sua atividade sexual, fazendo sexo por telefone, pela Internet. O grande momento da clínica psicanalítica vem junto a um movimento de liberdade sexual. As pessoas faziam sexo, experimentavam suas possibilidades. Podemos associar esta crise psicanalítica com a crise da libido atual. Esta energia está presa, deslocando a prática sexual para o sexo virtual. O discurso psicanalítico trata do sexo, o esvaziamento da clínica demonstra também o desinteresse atual pelo sexo, sendo o sexo deslocado para o virtual e o banal. Apesar de estarmos em outra direção do que a de Deleuze é importante cita-lo: “A psicanálise é exatamente uma masturbação, um narcisismo generalizado, organizado, codificado. A sexualidade não se deixa sublimar, nem fantasiar, o que a interessa está noutra parte, na vizinhança e na conjugação reais com outros fluxos, que a esgotam ou precipitam – tudo depende do momento, e do agenciamento”. Precisamos refletir sobre estes fluxos que esgotam ou precipitam a sexualidade e sua relação com a teoria e a técnica psicanalítica atual. Quais os fluxos que estariam esgotando a prática psicanalítica?        
                 Como pensar sobre a diminuição da demanda na clínica psicanalítica? Como se aproximar deste esvaziamento? Utilizarei a filosofia como “ferramenta” auxiliar a psicanálise, aproximando-me da seguinte reflexão de Deleuze nos Diálogos: “Quando se consegue traçar a linha, pode-se dizer é “filosofia”. Não que a filosofia seja uma disciplina última, uma raiz última que contivesse a verdade das outras, ao contrário. Muito menos uma sabedoria popular. É porque a filosofia nasce ou é produzida de fora pelo pintor, pelo músico, pelo escritor, a cada vez que a linha melódica leva o som, ou a pura linha traçada, a cor, ou a linha escrita, a voz articulada. Não há necessidade alguma de filosofia: ela é inevitavelmente produzida lá onde cada atividade faz brotar sua linha de desterritorialização. Sair da filosofia, fazer qualquer coisa para produzi-la de fora. Os filósofos sempre foram outra coisa, nasceram de outra coisa.”
                   Assim, este próprio trabalho produziu de fora a filosofia, já que traz uma voz, escrita articulada. A psicanálise, como atividade clínica, está fazendo brotar uma linha de desterritorialização. Ocorre um esvaziamento de um território para outro. A filosofia nasce de outra coisa. Este acontecimento, encontro do agenciamento psicanálise e do agenciamento filosofia, nas suas diferenças, estabelecem relações. Através destas relações, deste encontro, será desenvolvida esta reflexão.   
                   Hannah Arendt, filósofa e pensadora política, nascida na Alemanha em 1906, morrendo em 1975, deixou inacabada a obra A Vida do Espírito, dedicada ao pensamento, à vontade, e ao juízo. No volume 1, sobre o pensar, cita  que tanto a filosofia, a metafísica, a teologia  “caíram em descrédito”. Discute a afirmação de que Deus está morto: “Deus está morto” (Hegel e Nietzsche), não é que certamente esteja morto (“algo sobre o qual o nosso conhecimento é tão pequeno quanto o que temos sobre a existência de Deus (tão pequeno, de fato que mesmo a palavra “existência” está mal empregada), mas que a maneira pela qual Deus foi pensado durante milhares de anos não é mais convincente; se algo está morto, só pode ser o pensamento  tradicional sobre Deus. E algo semelhante vale também para o fim da filosofia metafísica: não que as velhas questões tão antigas quanto o próprio aparecimento do homem sobre a Terra tenham se tornado “sem sentido”, mas a maneira pela qual foram feitas e respondidas perdeu a razoabilidade”. Logo, alerta para as novas questões que surgem para o pensamento.
                 Estas “mortes modernas” foram acontecimentos com determinadas conseqüências históricas importantes. Descartes, o filósofo fundamental da Era Moderna, no estágio inicial desta era, trata cada assunto afirmando “como se ninguém o tivesse abordado antes de mim”. O mundo novo se descortinava. Através do ponto arquimediano um novo olhar é introduzido. O sujeito entra em cena. O mundo é o da subjetividade. Passamos a nos olhar e a olhar a tudo como seres universais. Ocorre uma mudança na maneira de representar o mundo. A compreensão do mundo através de um ponto remoto da Terra; uma recodificação do mundo em termos algébricos.
             A psicanálise surgiu no final do século passado. Freud revoluciona o pensamento ao introduzir o conceito de inconsciente. Não falamos em Séc. XVII, mas em Séc. XIX. A psicanálise que teve uma grande demanda nos anos 1970 e 1980 no Brasil, séc. XX, também como a metafísica e outros campos do saber, teria de viver a sua crise, já que é característica do capitalismo decodificar para depois recodificar. Teria que viver a sua “morte moderna”, ou melhor, pós-moderna. Este é o processo capitalista, construção e desconstrução. A noção de progresso surgiu como produto das descobertas científicas no Séc. XVII, criando uma conexão com o ilimitado, levando a necessidade de descobertas renovadas, de um “processo” de progresso. Seria uma nova ilusão de felicidade. Novas formas de conhecimento precisam surgir para que a visão capitalista de felicidade se mantenha. Agora, como H. Arendt afirma ao se referir a “morte” da metafísica, é possível que algumas respostas às questões psicanalíticas perderam o sentido, não invalidando estas questões. 
              Hoje, ocorre um descrédito de tudo que não é visível. Segundo H Arendt, a principal característica das atividades espirituais é a sua invisibilidade. Há uma grande dificuldade em abordar e percorrer o “domínio do invisível”, sendo que ela adverte sobre o perigo de se perder o passado e suas tradições. Podemos falar de uma crise dos ideais? Seria possível, como H. Arendt coloca, haver uma morte do invisível? Entre 1929, Moisés e o monoteísmo, e 1938, O mal-estar na cultura, Freud “terminou” a sua reflexão sobre o supereu, reunindo as reflexões já feitas em Totem e Tabu, fundamentando o assassínio do chefe da horda primitiva como a origem do supereu e do sentimento de culpa, estabelecendo uma relação entre agressividade e sentimento de culpa, e surgimento da linguagem e do pensamento.
             Podemos relacionar a crise da clínica, neste final de século, com a reflexão realizada por Hannah Arendt sobre a ausência de pensamento? Estaríamos convivendo com a banalidade do mal?
                    A. Green denomina de estados - limite uma variedade da clínica atual, que também podem ser considerados como estados limites de anasabilidade. J. Mc. Dougall denominou – os de anti – analisantes. O modelo destes casos – limite conduz a uma contradição entre angústia de separação e angústia de intrusão. Esta angústia, diz Green, parece não atingir a problemática do desejo, mas sim à formação do pensamento (Bion).
                   H. Arendt pergunta: “O que nos faz pensar?” Responde com Kant que seria pela “necessidade da razão, o impulso interno dessa faculdade para se realizar na especulação”. Kant distingue Vernunft (razão) e Verstand (intelecto) após descobrir o “escândalo da razão”, que seria que “o nosso espírito não é capaz de um conhecimento certo e verificável em relação a assuntos e questões sobre os quais, no entanto, ele  mesmo não se pode impedir de pensar”. São as “questões últimas”, que apenas o pensamento se ocupa: Deus, liberdade e imortalidade. A “necessidade urgente” da razão é mais que a busca de conhecimento, que caberia ao intelecto. Razão coincidiria com o pensar, e este com o significado; e o intelecto com o conhecimento, a cognição. Mas, Hannah Arendt comenta, que pela influência da metafísica, Kant permaneceu inconsciente com relação ao fato de que a necessidade humana de refletir acompanha quase tudo o que acontece ao homem, ora as coisas que conhece, e ora as que nunca poderá conhecer. Mas, por tê-la justificado unicamente em termos das questões últimas Kant não se deu conta que havia liberado a razão, portanto a habilidade de pensar. Afirmava, defensivamente, que havia achado necessário negar o conhecimento para abrir espaço para fé. Mas não abriu espaço para a fé, e sim para o pensamento, não “negou o conhecimento“, mas separou o conhecimento do pensamento.
                Sócrates, consciente de que lidava com invisíveis, utiliza uma metáfora para esclarecer a atividade de pensar, a metáfora do vento: “os ventos são eles mesmos invisíveis, mas o que eles fazem mostra-se a nós e, de certa maneira, sentimos quando eles se aproximam”. Em Antígona de Sófocles, encontramos a mesma metáfora: “pensamento rápido como o vento”.  Heidegger se refere ao “tufão do pensamento“. Descartes, em suas Meditações afirma: “Se duvido, penso”. Parte da máxima incerteza, do mundo sensível, do mundo dos sentidos, demolindo antigas opiniões, consideradas falsas, regidas por um malin génie, chegando a uma primeira certeza a respeito da própria subjetividade: ”penso”. Depois da dúvida chega-se a certeza do Cogito: “Penso, logo sou”.
              Lacan reflete sobre o sujeito da certeza, afirmando que a via de Freud é cartesiana, parte do fundamento do sujeito da certeza, mas o que “Descartes não sabia, a não ser que fosse o sujeito de uma certeza e rejeição de todo saber anterior – mas nós sabemos, graças a Freud, que o sujeito do inconsciente se manifesta, que isso pensa antes de entrar na certeza”. Esta é a grande revolução freudiana, o “pensamento” inconsciente. Como Lacan fala: “Tudo que anima, o de que fala toda enunciação, é desejo”. Para Lacan a hiância do inconsciente é “pré-ontológica”, o que é da ordem do inconsciente “é que ele não é nem ser nem não-ser, mas é algo de não-realizável“.
                Eros, no sentido grego é amor, e Sócrates se diz conhecedor do tema do amor onde Hannah Arendt afirma: “O amor, como Eros, é antes de tudo, uma falta; deseja o que não tem. Os homens amam a sabedoria e começam a filosofar porque não são sábios... Ao desejar o que não tem, o amor estabelece uma relação com o que não está presente... É porque a busca empreendida pelo pensamento é um tipo de amor desejante que os objetos do pensamento só podem ser coisas merecedoras de amor – beleza, sabedoria, justiça etc. O mal e a feiúra quase por definição estão excluídos da consideração do pensamento. Eles podem apresentar-se como deficiências, consistindo a feiúra na ausência da beleza e o mal, kakia, na ausência de bem”. Para Sócrates o pensamento dissolve conceitos positivos até o significado original, o mesmo acontecendo com os negativos, até o nada. Logo, não acredita em mal voluntário, “o mal não tem estatuto ontológico: ele consiste em uma ausência, um algo que não é”. A relação entre o mal e a ausência de pensamento em Sócrates é “que as pessoas que não amam a beleza, a justiça e a sabedoria são incapazes de pensar, enquanto que reciprocamente, aqueles que amam a investigação, e assim “fazem filosofia” são incapazes de fazer o mal”.
                  Hannah Arendt, tomando como base esta reflexão socrática, aproxima-se da questão tão discutida da possível conexão entre a ausência de pensamento e o mal. Diz que Sócrates não pode ter acreditado que só poucos têm capacidade de pensar, nem que só alguns objetos de pensamento ofertam dignidade à atividade de pensar. “Se há algo no pensamento que possa impedir os homens de fazer o mal, esse algo deve ser uma propriedade inerente à própria atividade, independente dos seus objetos”. Sobre este assunto, no diálogo Górgias, onde o tema é a retórica (arte de dirigir e convencer as pessoas), Sócrates traz duas afirmações. A primeira é “melhor sofrer o mal do que o cometer“; e a segunda: ”Eu preferiria que minha lira ou um coro por mim dirigido desafinasse e produzisse ruído desarmônico, e [preferiria] que multidões de homens discordassem de mim do que eu, sendo um, viesse a entrar em desacordo comigo mesmo e a contradizer-me”. Apesar de Platão ter concluído o diálogo com um mito de além-mundo, onde reconhece o fato de que o homem voluntariamente comete atos maus, demonstrando a dificuldade destes filósofos de lidar com o problema do mal, Sócrates não está falando como cidadão comum, mas abordando a questão do pensamento. Sócrates se diz apaixonado pela sabedoria, respondendo a Cálicles que não o compreende, que diz primeiro que é melhor morrer do que ser escravo, pois sofrer o mal não é digno do homem (na Grécia se o indivíduo fosse a guerra e perdesse, era melhor morrer do que se tornar escravo do vitorioso); e segundo, que Sócrates estava “enlouquecido pela eloquência”.
                 Hannah Arendt afirma que Sócrates se diz um, logo não quer entrar em desacordo consigo mesmo, mas nada do que é Um, idêntico a si mesmo (A é A), pode estar em harmonia ou desarmonia consigo mesmo, “no mínimo dois tons sempre são necessários para produzir um som harmonioso. Certamente quando apareço e sou visto pelos outros, sou um; de outro modo seria irreconhecível... Chamamos de consciência (literalmente, “conhecer comigo mesmo”, como vimos) o fato curioso de que, em certo  sentido, eu também sou para mim mesmo, embora quase não apareça para mim – o que indica que “sendo  um” socrático não é tão pouco problemático  como parece; eu não sou apenas para os outros, mas também para mim mesmo; e, nesse último caso, claramente eu não sou apenas um. Uma diferença se instala na minha unicidade”.
                      Hannah Arendt afirma que Sócrates descobriu o “dois-em-um” como essência do pensamento, mas quando o pensador é chamado para o mundo das aparências, ele se torna Um, pois o processo de pensamento é interrompido, como se a dualidade em que tinha se dividido o pensamento retornasse à unidade. O pensamento, existencialmente falando, é um “estar-só“, não sendo solidão. “O estar-só é a situação que me faço companhia”. A solidão seria a incapacidade de se dividir em “dois-em-um”, como Jaspers afirmava: “eu falto a mim mesmo“. Os homens, para Hannah Arendt existem no plural. É a dualidade do eu consigo mesmo que torna o pensamento uma atividade onde eu mesmo pergunto e respondo.
                  Para Sócrates a dualidade do “dois–em-um” representava que para aquele que quer pensar é proveitoso que os parceiros do diálogo sejam “amigos”. “O parceiro que desperta... quando estamos alertas e sós, é o único do qual não podemos nos livrar - exceto parando de pensar. É melhor sofrer uma injustiça do que cometê-la; quem gostaria de ser amigo e ter que conviver com um assassino?” Hannah Arendt associa a afirmação socrática com o Imperativo Categórico de Kant: “subjacente ao imperativo “aja apenas segundo uma máxima tal que você  possa ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal” está a ordem: não se contradiga”. A lei básica do diálogo do pensamento é não se contradiga.
                   No diálogo Hípias Maior, Sócrates descreve esta situação ao se referir que em sua casa lhe espera um parente próximo, afirmando Hannah Arendt, que anos depois a este sujeito que lhe aguarda em casa foi dado o nome de “consciência moral”, que aparece como um repensar de opiniões não submetidas à análise: “O que faz um homem temê-la é a antecipação da presença de uma testemunha que o aguarda apenas se e quando ele volta para casa”. E, prossegue: “Não se trata aqui de perversidade ou bondade, como também não se trata de inteligência ou estupidez. Uma pessoa que não conhece essa interação silenciosa (na qual examinamos o que dizemos e fazemos) não se importa em contradizer-se, e isso significa que ela jamais quererá ou poderá prestar contas do que faz ou diz; nem se importará em cometer um crime, já que pode estar certa de esquecê-lo no momento seguinte”. Nem poderá começar “este diálogo isolado e sem som que chamamos de pensar...”.
               A psicanálise é "arte" com palavras, linguagem. O pensamento socrático traz importantes contribuições para a compreensão do discurso psicanalítico. No Banquete, de Platão, obra de leitura atenta realizada por Lacan, encontramos conceitos fundamentais como desejo e transferência. Hannah Arendt realiza uma leitura original do pensamento socrático sobre  pensar e ausência do pensar. Hoje, ocorre desinteresse para a ação do pensar. A diminuição da demanda à clínica psicanalítica se aproxima desta situação crescente mundial de ausência de pensamento, do encolhimento do simbólico, aparecendo a condição de solidão. Cada vez mais o homem se torna solitário: a solidão como incapacidade de dividir “dois-em-um”.                                                            
                                                                          
Bibliografia
Arendt, H.. A Vida do Espírito.  RJ: Relume Dumará, 1995.
Arendt H..  A Condição Humana. RJ: Forense Universitária, 1999.
Descartes, R.. Meditações. In Os pensadores. SP: Editora Nova Cultural, 1999.
Deleuze, G.. Conversações. SP: Editora 34, 1998.
Deleuze, G. e Parnet, C.. Diálogos. SP: Editora Escuta,1998.
Ferreira, A. B. H.. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. RJ: Editora Nova Fronteira.
Kaufmann P.. Dicionário Enciclopédico de Psicanálise. RJ: Jorge Zahar, 1996.
Lacan, J.. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. RJ: Jorge Zahar, 1988.
Rogers, C. R.. Tornar–se Pessoa, Lisboa: Livraria Martins Fontes, 1973.                                                                                                                          


segunda-feira, 6 de maio de 2013

Hannah Arendt: a liberdade como raison d’être da política


Hannah Arendt: a liberdade como raison d’être da política.

Hannah Arendt em A condição humana[1] apresenta a ação como a atividade humana fundamental da vita activa, correspondente à condição humana da pluralidade, condição específica de toda vida política. Agir é iniciar, começar algo novo, imprevisível. A ação e o discurso são modos pelos quais os homens se manifestam uns aos outros, e se inserem no mundo. A ação, como início, é a efetivação da condição humana da natalidade, sendo que o discurso efetiva a condição humana da pluralidade, possibilitando a singularidade na pluralidade. Na ação e no discurso os homens surgem como quem são.
Na obra Entre o passado e o futuro[2], Hannah Arendt levanta a questão: “Que é a liberdade?”[3], pergunta de difícil compreensão. Afirma que Kant liberta a liberdade do duplo domínio da causalidade: a causalidade da motivação interna, campo da percepção interior, e do princípio causal que rege o mundo exterior, distinguindo uma razão teórica ou pura de uma razão prática, que apresenta como centro uma vontade livre: “o agente dotado de livre-arbítrio, que é na prática importantíssimo, jamais aparece no mundo fenomênico, quer no mundo exterior dos cinco sentidos, quer no campo da percepção interior mediante a qual eu percebo a mim mesmo”[4]. Mas, assinala que a tradição filosófica distorceu a idéia de liberdade, ao transpô-la do campo original da Política e dos problemas humanos gerais para o domínio da vontade. Dos filósofos pré-socráticos até Plotino, não há preocupação com a questão da liberdade, aparecendo pela primeira vez, através da experiência de conversão religiosa, inicialmente de Paulo, e depois de Santo Agostinho. Na Antigüidade grega e romana a liberdade era um conceito exclusivo da política, e se tornou um dos problemas principais da Filosofia, ao ser vivenciada como algo no relacionamento entre mim e mim mesmo, fora do relacionamento entre os homens. A liberdade tornou-se sinônimo de livre-arbítrio, sendo a sua presença vivenciada em solidão.
Para Hannah Arendt ao falarmos da liberdade precisamos ter em mente o problema da política e o fato de o homem ser dotado com o dom da ação, duas potencialidades contidas na relação com a liberdade. A liberdade é a razão de ser (raison d’être) da política, e o seu domínio de experiência é a ação. A liberdade política é o oposto da liberdade interior, que é um espaço íntimo onde os homens fogem da coerção externa, e sentem-se livres. Este sentir interior não se manifesta externamente, logo é sem significação política, a liberdade interior foi o efeito de uma retirada do mundo onde a liberdade foi negada. Este espaço interior não deve ser confundido com o coração ou a mente, que existem em relação com o mundo. A interioridade, como espaço de absoluta liberdade, foi descoberta na Antigüidade tardia por aqueles que não ocupavam lugar próprio no mundo, que careciam de uma condição mundana. Antes de se tornar um atributo do pensamento ou uma qualidade da vontade, a liberdade era compreendida como um estado do homem livre, que o tornava capaz de se mover, de sair para o mundo a fim de se encontrar com outros homens pelas palavras e ações. “Essa liberdade era precedida da liberação: para ser livre, o homem deve ter-se libertado das necessidades da vida”[5]. Mas, além da liberação, a liberdade necessitava da companhia de outros homens num mesmo estado, de um espaço público comum, um mundo politicamente organizado. Os filósofos começaram a se interessar pelo problema da liberdade quando ela não era mais vivida no agir e na associação com outros homens, mas no querer e no relacionamento com o próprio eu, quando se tornou livre-arbítrio. Devido ao desvio da ação para a força de vontade, torna-se soberania, independência dos outros e até prevalência sobre os mesmos. A identificação da liberdade com soberania conduz à negação da liberdade humana.
Ao pensar a palavra “agir”, Hannah Arendt diz que o termo grego árkhein abarca o começar, o conduzir, o governar, qualidades do homem livre, logo a liberdade era vivenciada na espontaneidade. Cita Santo Agostinho: “Para Santo Agostinho Deus criou o homem para introduzir a faculdade de começar: a liberdade”[6]. O homem é livre, pois o seu surgimento no mundo é equacionado ao aparecimento da liberdade no universo. O homem é livre ao ser um começo, e pode começar.
A liberdade, enquanto relacionada à política, não é considerada por Hannah Arendt como um fenômeno da vontade, mas sim da ação. Considera o milagre como a interrupção de uma série de acontecimentos, de um automatismo, pelo inesperado, sendo que os homens o realiza: “– homens que, por terem recebido o dúplice dom da liberdade e da ação, podem estabelecer uma realidade que lhes pertence de direito”[7].
Hannah Arendt alerta sobre a soberania, onde a vontade se torna poder, tornando-se um ideal de livre arbítrio, onde o individual egoísta e narcísico se torna dominante.

Notas
[1] Arendt H.. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
[2] Arendt H.. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1997.
[3] Ibid., p. 188
[4] Ibid., p. 190
[5] Ibid., p.194
[6] Ibid., p. 216
[7] Ibid., p.220


Referências bibliográficas
Arendt H.. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
Arendt H.. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1997.