sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Psicanálise e sociedades do cansaço e da transparência

O texto abaixo consiste na leitura dos livros Sociedade do cansaço e Sociedade da transparência de Byung-Chul Han. 

Em relação à psicanálise freudiana, Byung-Chul Han afirma que por estarmos num momento de positividade, e já que a psicanálise se refere à negatividade, estaria difícil ela dar conta do mundo atual.

A meu ver ele não se dedicou a pensar a psicanálise em sua historicidade, como exemplo em Lacan que desde 1970 já pensa e elabora o conceito de gozo como positividade, e inclusive como lidar com isso na clínica psicanalítica.

Começa o seu texto dizendo que não vivemos numa época viral, apesar do medo que temos de uma pandemia grupal, pois graças a técnica imunológica, esta época já passou. Prossegue: vivemos uma época de excesso de positividade, daí doenças neuronais como depressão, déficit de atenção, hiperatividade, burnout, que escapam das técnicas imunológicas. Traz a alteridade como categoria fundamental da imunologia, e que no momento há o desaparecimento do Outro, da alteridade. O paradigma imunológico não se coaduna com o processo de globalização e a dialética da negatividade é o traço fundamental da imunidade.

A sociedade disciplinar de Foucault não é mais atual segundo o autor. A sociedade do século XXI é uma sociedade de desempenho. Os sujeitos são do desempenho e da produção e não mais sujeitos da obediência. São sujeitos empresários de si mesmos. A sociedade disciplinar é uma sociedade da negatividade, gera loucos e delinquentes. A sociedade de desempenho produz depressivos e fracassados. Já habita no inconsciente social o desejo de maximizar a produção. Ocorre a positividade do poder mais do que a negatividade do dever. O inconsciente social do dever agora é registro do poder.

Cita Ehrenberg que coloca a depressão na passagem da sociedade disciplinar para a sociedade do desempenho. O depressivo é acossado pela exigência da iniciativa pessoal, é esgotado de ser ele mesmo.

O desenvolvimento cultural da humanidade deve à uma atenção contemplativa. Hoje há uma hiperatenção. Não há tolerância para o tédio profundo, importante segundo Benjamin para o processo criativo: "pássaro onírico, que choca o ovo da experiência". Seria o lugar do descanso espiritual. Nietzsche também assinala a importância do elemento contemplativo.

A sociedade do cansaço é uma sociedade ativa que se desdobra para uma sociedade do doping, que gera um desempenho sem desempenho. O homem se torna uma máquina do desempenho. A sociedade ativa e a sociedade do desempenho geram cansaço e esgotamento excessivos, efeitos do empobrecimento da negatividade e o excesso da positividade. Há um infarto da alma.

Byung-Chul Han afirma que o aparato psíquico freudiano é repressivo e impositivo. Sua estrutura é de uma sociedade disciplinar, logo abarca hospitais, asilos, presídios etc. Diz que a psicanálise freudiana só pode ser efetiva numa sociedade repressiva organizada pela negatividade das proibições. Hoje, a sociedade de desempenho se afasta da negatividade das proibições e se organiza como sociedade da liberdade, que se define pelo poder hábil. Este sujeito do desempenho é um sujeito da afirmação, sendo seu eu sem medo e angústia (segundo o autor).

O autor diz que o inconsciente freudiano não é uma configuração atemporal. É uma produção da sociedade disciplinar repressiva, que segundo ele estamos nos afastando. Aproxima o ego freudiano ao sujeito da obediência kantiano, como cumprimento de um dever. O sujeito de desempenho da modernidade tardia tem como máxima liberdade e boa vontade, e não mais a obediência, a lei e o dever. É um empreendedor de si mesmo. Mas a liberdade em relação ao outro vai transformar essa liberdade em novas coações. Esta falta de relação com outro provoca uma crise de gratificação. Richard Sennet afirma que esta crise da gratificação, do reconhecimento, vai se ligar a uma perturbação narcisista e à uma falta de relação com o outro. Coloca esta questão como distúrbio de caráter. O si-mesmo não encontra nada de "diferente". Byung-Chul Han critica Sennet quando ele diz que o aumento das expectativas impede o sujeito de alcançar uma meta, pois para ele no sujeito narcisista o sentimento de alcançar uma meta não se instaura, é incapaz de chegar a uma conclusão, pois é impulsionado pela coação de desempenho, não alcançando repouso. Vive constante num sentimento de carência e culpa. Sofre então um esgotamento, colapso psíquico, burnout. Afirma que este sujeito se realiza na morte.

Segundo Freud, diz Byung-Chul Han, o "caráter" é um fenômeno da negatividade, pois não se formaria sem a censura do aparato psíquico, sendo um "sedimento depositado de possessões objetuais renunciadas". O eu evita o conhecimento dessas possessões que estão no id pelo processo de repressão (o autor usa repressão em vez de recalque ou foi traduzido assim). "O caráter contém em si a história da repressão", reflete as relações entre id, ego e superego. 

A histeria seria uma doença típica da sociedade disciplinar enquanto a depressão seria amorfa, trazendo um homem sem características. Cita Carl Schmitt que diz que ter muitos amigos no facebook é indicação de falta de caráter, pois devido a divisão interior só se teria um inimigo verdadeiro e também um único amigo. O homem pós moderno, espelho da falta de forma, seria então um homem sem caráter, um homem flexível da positividade.

Afirma que nas doenças psíquicas atuais como depressão, burnout, déficit de atenção, síndrome de hiperatividade não se encontra repressão e processo de negação, pois remetem a um excesso de positividade, afirmando que "a psicanálise não oferece nenhum acesso a elas" (Cf. p.88). Também nos depressivos não se dá transferência já que não ocorre repressão. A sociedade do desempenho trabalha no desmonte de barreiras e proibições dadas pela sociedade disciplinar. Logo há uma promiscuidade generalizada. O inconsciente não influenciaria a depressão.

Afirma que Freud concebe a melancolia como uma relação destrutiva com o outro internalizado como parte de si-mesmo, gerando conflito internalizado no próprio eu, que levaria ao empobrecimento do eu e autoagressividade. Atualmente não há nenhuma relação conflitiva com o outro, de perda, anterior ao sujeito depressivo. A depressão que desemboca no burnout é resultado da autorelação exaltada, narcisista, que ganha traços depressivos. O sujeito de desempenho está cansado, esgotado de lutar consigo mesmo. Remói a si mesmo que o leva a autoerosão e ao esgotamento. Todas as suas ligações se rompem, não havendo luto, que surge quando se perde um objeto. Distingue a melancolia da depressão, sendo a primeira efeito da negatividade, enquanto a depressão aponta para o excesso de positividade.

Para Byung-Chul Han o burnout, que precede a depressão é resultado patológico da autoexploração, influência também do contexto econômico, pelo imperativo da expansão e oferta de produtos à identidade que é flexível.

Na transição da sociedade disciplinar para a sociedade do desempenho o superego se positiva em eu-ideal, que é sedutor. O sujeito de desempenho se projeta em "liberdade", mas ao tentar alcançar a perfeição deste eu-ideal se esgota, se consome, chegando ao suicídio.

E assim, a sociedade da negatividade se transforma em sociedade positiva, da transparência. A transparência surge quando se elimina a negatividade. As coisas, as ações, o tempo, as imagens se tornam transparentes ao se tornarem rasas, planas, operacionais, o presente é otimizado e imediatizado. A transparência é uma coação sistêmica. O movimento de aceleração responde ao igual, desconstruindo a negatividade, eliminando o diferente. Há predomínio do traço autoritário da transparência, que elimina a esfera privada. Cita Freud ao dizer que o eu nega o que o inconsciente afirma, logo o ser humano não é transparente consigo mesmo. Devido a transparência o mundo se torna desavergonhado e desnudo. 

Segundo Byung-Chul Han a "política" também é paralisada devido à necessidade de total transparência, dando lugar à violência de necessidades sociais, seguindo o veredicto da sociedade positiva: " me agrada". A verdade é afastada, já que implica na negatividade. Há uma ausência de saber.

Enfatiza que o espaço do sagrado, da paz, não são transparentes, são sinuosos, como também o objeto do desejo no amor cavalheiresco é um "buraco negro" em torno do qual se adensa o desejo. Cita Lacan ao afirmar que este objeto do desejo é inacessível, indecifrável, o que se observa na anamorfose, cuja imagem surge deformada. Não é evidente, sendo a "Coisa" (das Ding) sem imagem devido a sua impenetrabilidade e ocultamento, e não tendo representação.

Em Sociedade da transparência Byung-Chul Han desenvolve temas importantes como exposição, pornografia, intimidade, informação, narração, que sofrem profundas modificações pela coação transparente, acarretando desculturalizaçao.

A sociedade do cansaço e da transparência são sociedades da positividade que tomou o lugar da negatividade.

O autor afirma que o pensar não é transparente. Segundo Hegel, uma negatividade habita o pensar, que permite o transformar. O tornar-se outro é constitutivo para o pensar.


Embora a psicanálise freudiana siga o paradigma da negatividade, ela abre espaço fundamental nesta nossa sociedade atual, do cansaço e da transparência, como uma teoria e práxis que busca o esvaziamento de gozo. 

Os estudos do último Lacan sobre o inconsciente real, trazendo outras leituras de conceitos como trauma, repetição, nó  borromeano, sinthoma, nos possibilita meios de aproximação  dos problemas  que  esta sociedade positiva apresenta. 

O gozo do Outro, o autoritarismo, são temas desta  sociedade positiva que cobrem a  alteridade e a autoridade. A psicanálise através de Totem e Tabu de Freud já  denunciava os excessos da civilização.



Referência bibliográfica

 

Han, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

______________. Sociedade da transparência.  Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

 

 

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

A violência neuronal na sociedade do cansaço

Em Sociedade do Cansaço, Byung-Chul Han afirma no capítulo sobre a violência neuronal, que cada época possui enfermidades fundamentais. Diz que não vivemos mais numa época viral, que é uma época da negatividade. Por uma perspectiva patológica, o século XXI não é mais definido como bacteriológico e viral, mas sim como neuronal. Doenças neuronais como a depressão, transtorno do déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (TDAH), Transtorno de personalidade limítrofe (TPL), ou a Síndrome de Burnout (SB) são as patologias do início do século XXI. Não são infecções, mas enfartos provocados pelo excesso de positividade. Vivemos numa época de positividade.

Mostra que a sociedade disciplinar e repressora do século XX descrita por Michel Foucault não está mais atuante, sendo substituída por uma nova forma de organização coercitiva, que é a violência neuronal, onde os indivíduos se cobram para apresentar resultados, tornando-se carrascos e vigilantes de suas ações.
O século passado foi imunológico. Havia uma divisão nítida entre dentro e fora, amigo e inimigo, próprio e estranho. A Guerra Fria seguia este esquema imunológico. O paradigma imunológico dominava o vocabulário desta guerra através de um dispositivo militar. A ação imunológica se define por ataque e defesa. Pela defesa se afasta o que é estranho. A estranheza é objeto da defesa imunológica. O estranho é eliminado pela sua alteridade, sendo a alteridade a categoria fundamental da imunologia. 
Byung-Chul Han diz que hoje em dia no lugar da alteridade entra em cena a diferença, que não provoca reação imunológica. A diferença pós-imunológica, a diferença pós- moderna já 
não faz adoecer. Hoje falta à diferença a estranheza, que provocaria violenta reação imunológica. A estranheza se neutraliza no consumo. O estranho cede lugar ao exótico, e o turista visita o exótico, não é mais um sujeito imunológico.
O imigrante hoje não é mais um outro, não é um estrangeiro, que representaria perigo real ou causasse medo. Os imigrantes são mais um peso do que uma ameaça. O vírus do computador não tem mais tanto impacto social.
O paradigma imunológico não se coaduna com o processo de globalização. A alteridade atuaria contra a suspensão de barreiras. O mundo organizado imunologicamente apresenta uma topologia específica, com barreiras, passagens, cercas, trincheiras e muros. Hoje a promiscuidade geral está em todos os âmbitos da vida, e a hibridização domina o atual discurso teórico-cultural.
A dialética da negatividade é o traço fundamental da imunologia. Aí o outro é o negativo que penetra no próprio e procura negá-lo.
A profilaxia imunológica, a vacinação, segue a dialética da negatividade. Apenas fragmentos do outro é introduzido no próprio a fim de provocar imunorreação. 
O desaparecimento da alteridade significa que estamos numa época empobrecida de negatividades. Os adoecimentos neuronais deste século são resultados de um exagero de positividade.
A violência pode provir do igual, e não apenas do outro e do estranho.
Byung-Chul Han cita Baudrillard que diz "quem vive do igual, também perece pelo igual" (A transparência do mal), e que se refere também à "obesidade de todos os sistemas atuais": sistemas de informação, comunicação e de produção. Mas Byung-Chul Han diz que Baudrillard afirma o totalitarismo do igual a partir da perspectiva imunológica, sendo esta a debilidade de sua teoria. Para Byung-Chul Han o igual não forma anticorpos. Num sistema onde o igual domina não tem sentido fortalecer os mecanismos de defesa. Distingue rejeição (abstossung) imunológica e não imunológica. A última implica num excesso do igual, um exagero de positividade. Não há aí negatividade. Já a rejeição imunológica exclui o outro.
A violência da positividade, neuronal, é resultado da superprodução, do superdesempenho, da supercomunicação. A rejeição frente ao excesso de positividade não gera defesa imunológica, mas uma ab-reação  neuronal-digestiva, que é uma rejeição. Também o esgotamento, a exaustão e o sufocamento frente à demasia não são reações imunológicas. São todas elas manifestações de uma violência neuronal.
Critica a teoria da violência de Baudrillard pois ela descreve imunologicamente a violência da positividade ou do igual. Baudrillard afirma que a violência da rede e do virtual é viral, ele descreve a genealogia da inimizade em vários estágios. De início o lobo, inimigo externo, que ataca e nos defendemos pela construção de muros; depois o inimigo toma forma de rato, que é combatido pela higiene; em seguida o estágio do besouro, depois o estágio do vírus de difícil defesa pois está no coração do sistema, que se infiltra no poder. A violência viral aparece como células terroristas. Para Baudrillard o terrorismo é a principal figura de violência viral.
Para Byung-Chul Han a genealogia da inimizade não coincide com esta genealogia da violência. A violência da positividade neuronal não pressupõe nenhuma inimizade. Desenvolve numa sociedade permissiva e pacificada. É mais invisível que uma violência viral. Habita o espaço livre do igual, sem polarização entre inimigo e amigo, entre interior e exterior.
Atualmente o modo de ser do indivíduo se constitui numa organização social que privilegia vertentes do mercado neoliberal, produzindo novos corpos dóceis e autoexplorativos, o empresariamento de si. 
A positivação do mundo faz surgir novas formas de violência, que são imanentes ao sistema. Sendo imanentes não evocam a defesa imunológica. A violência neuronal é o terror da imanência, que se distingue do horror ao estranho no sentido imunológico. Não tem negatividade, não é privativa mas saturante, não excludente mas exaustiva. É inacessível a uma percepção direta.
A violência viral, que segue o esquema imunológico do interior e exterior ou do próprio e outro, pressupondo singularidade ou alteridade hostil ao sistema, não tem condições de descrever enfermidades neuronais como depressão, TDAH ou SB.
A violência neuronal não parte de uma negatividade estranha ao sistema. É uma violência sistêmica, violência imanente ao sistema. Estas enfermidades apontam para um excesso de positividade. Burnout é uma queima do eu por superaquecimento devido a um excesso de igual. O hiper da hiperatividade é uma massificação do positivo.

Bibliografia 

Han, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. RJ: Vozes, 2017.



Enviado do meu smartphone Samsung Galaxy.

Sobre a sociedade positiva da transparência

O texto é sobre o capítulo 1, Sociedade positiva, do livro Sociedade da transparência de Byung-Chul Han.

Ele afirma que atualmente o tema da transparência domina o discurso público, que é evocado e conjugado com a liberdade de informação. A sociedade da negatividade sofreu desconstrução, e a sociedade da transparência se torna uma sociedade da positividade.
Elenca as mutações:
1 - As coisas se tornam transparentes quando qualquer negatividade é eliminada, encaixando-se bem ao curso raso do capital, da comunicação e da informação. As coisas abdicam da singularidade e se expressam unicamente pelo preço. O dinheiro desfaz o singular, igualando tudo. 
2- As ações se tornam transparentes quando se tornam operacionais, subordinadas ao cálculo, governo e controle.
3- O tempo se torna transparente pelo presente sempre disponível, o futuro será um presente otimizado, um tempo sem destino e sem evento. 
4- As imagens se tornam transparentes, quando se despojam de dramaturgia, coreografia e cenografia, da hermenêutica do sentido, e se transformam em pornografia, que é o contato direto entre imagem e olho. 
A sociedade da transparência é um abismo infernal do igual. 
A transparência não se relaciona apenas com corrupção e liberdade de informação. Ela é uma coação sistêmica que abarca todos os processos sociais provocando modificações profundas, acelerando e operacionalizando estes processos.
A desconstrução da negatividade caminha junto com a aceleração, o igual responde ao igual, formando uma reação em cadeia do igual.  A negatividade da alteridade, do que é alheio, ou a resistência do outro atrapalha e retarda a comunicação rasa do igual. A transparência estabiliza e acelera o sistema, eliminando o outro ou o estranho. Torna a sociedade uniformizada, sendo o "traço totalitário",  "traço uniforme" da transparência.
A linguagem humana contém uma intransparência constitutiva (Humboldt), possibilitando  a incompreensão e a divergência de pensamentos. Já a  linguagem da transparência é formal, mecânica, operacional eliminando a ambivalência, tornando-se maquinal. A coação por transparência, a violência da transparência,  transforma o homem num elemento funcional do sistema.
A alma humana é impermeável, precisa estar junto de si mesma, sem o olhar do outro. Uma iluminação total carboniza a alma e provoca um burnout psíquico. Somente a máquina é transparente.  A espontaneidade, capacidade de fazer acontecer,  e a liberdade não admitem a transparência.
Em nome da transparência a esfera privada é eliminada. A ideologia da post privacy é ingênua e equívoca. A transparência exige a eliminação da esfera privada, levando a uma comunicação translúcida. O ser humano não é transparente para consigo mesmo. "Segundo Freud, o eu nega precisamente aquilo que o inconsciente afirma e deseja irrestritamente". O id fica oculto no ego. Na psique humana é aberta uma fissura que não deixa o ego coincidir consigo mesmo. Essa fissura fundamental impossibilita a autotransparência. Fica então difícil criar uma transparência interpessoal, que mantenha viva a relação. A coerção da transparência não respeita à alteridade. Assim, frente o pathos da transparência que domina a sociedade atual é preciso exercitar o pathos da distância. Vergonha e distância não podem  ser integrados no círculo do capital,  da informação e da comunicação, para não serem eliminados pela transparência, que alcançando todos os refúgios, torna o mundo mais desavergonhado e desnudo.
Para Sennet a autonomia implica em aceitar o que não se compreende no outro. A relação transparente é uma relação morta, ausente de atração e vivacidade.
Uma maior quantidade de informações não implica em decisões mais acertadas.  A intuição transcende as informações. O abandonar e o esquecer pode ser produtivo. A sociedade da transparência não tolera lapsos de informação e nem lapso visuais, sendo que o pensamento e a inspiração necessitam de um vazio.
A palavra felicidade, Gluck provém de oco, Lucke. Assim, uma sociedade que não admite qualquer negatividade do oco seria
uma sociedade sem felicidade. O amor sem lacuna do ver é pornografia, e sem oco ou lacuna no saber o pensamento decai em cálculo.
Segundo Walter Benjamin para a beleza é necessária uma interligação entre velamento e velado. O objeto é belo em seu véu. Não existe beleza desnuda. A nudez se torna sublime quando vai além do belo, e não é pornográfica.
Mas o capitalismo acentua a pornografização da sociedade, ao enfatizar a hipervisibilidade e expor tudo como mercadoria, não conhecendo outro uso da sexualidade.
Byung-Chul Han se refere à diferença entre erótico e pornográfico. A exposição direta da nudez não é erótica. O movimento erótico surge da cena do focar e desfocar, a negatividade concede brilho à nudez (Eros em Freud, e a agalma, brilho do desejo desenvolvido por Lacan a partir da leitura realizada do Banquete de Platão no Seminário "A transferência"). A positividade da exposição da nudez é pornográfica, pois não apresenta o brilho erótico. O corpo pornográfico é raso, não sofre interrupção, que criaria uma imprecisão semântica, sendo esta erótica. "Não existe erotismo da transparência". Ao desaparecer o mistério em prol da exposição e do desnudamento total do corpo, de sua imagem, começa a pornografia. O processo de pornografização do visual se realiza hoje como uma desculturalização. Estas imagens são diretas, tácteis e infectivas. São pós-hermenêuticas. Não provocam leituras, mas contaminações. A sociedade pornográfica é uma sociedade do espetáculo.
A sociedade positiva não é dialética e hermenêutica. A dialética repousa na negatividade, que nutre a vida do espírito segundo Hegel. Só se torna possível pousar no negativo se se demorar nele. O espírito é lento. O sistema da transparência elimina a negatividade a fim de se acelerar, para se precipitar em vertigem no positivo.
A sociedade positiva não admite qualquer sentimento negativo. Esquece-se como se lida com o sofrimento e a dor. Para Nietzsche a alma é profunda e grande ao se demorar no negativo. A alma em sua infelicidade acende a sua fortaleza, o suportar, perseverar, e interpretar a infelicidade. 
A sociedade positiva quer reorganizar a alma humana  de um modo novo, inclusive o amor no sentido positivo se torna um arranjo de sentimentos agradáveis sem consequências, em fórmulas de consumo e conformidade, o ferimento sempre deve ser evitado, como afirma Alain Badiou em Louvor do amor, chamando atenção aos sites de encontro de casais. Sofrimento e paixão são figuras da negatividade, e em seu lugar entram figuras psíquicas como esgotamento, cansaço e depressão, que remetem ao exagero da positividade.
A teoria em sentido enfático  é uma manifestação da negatividade. É um campo que tem limites, estabelece o que pertence e nao pertence a ela. É narrativa, e traça uma senda de distinção, tornando-se violenta. Separa o que está misturado. Sem a negatividade da distinção as coisas podem chegar à promiscuidade generalizada. A teoria se aproxima da cerimônia, separando o iniciado do não iniciado.
Byung-Chul Han diz que é um erro admitir que a massa positiva de dados e informações torne supérflua a teoria, que o nivelamento dos dados substitua os modelos. A teoria como negatividade se estabelece antes dos dados e informações positivas e dos modelos. A ciência positiva baseada em dados não é a causa, mas consequência do fim da teoria iminente. Não ocorre uma substituição da teoria pela ciência positiva, pois esta não possui a negatividade da decisão, que decide o que é e o que deve ser. A teoria como negatividade faz com que a realidade se manifeste cada vez de modo diferente de súbito, no qual aparece uma nova luz.
Afirma que a política é um agir estratégico, logo possui uma esfera oculta. Uma total transparência a paralisa. Segundo Carl Schmitt a política precisa de mais "coragem para o oculto", sendo o fim do mistério o fim da política.
Byung-Chul Han diz que o partido dos piratas, partido da transparência, faz avançar a pós-política, que se iguala a despolitização. "É um antipartido, o primeiro partido sem cor". A transparência não possui cor. Não há ideologias mas apenas opiniões sem ideologias. As opiniões nao geram consequências, não apresentam negatividade de repercussão. A sociedade de opinião não toca no que já existe. A liquid democracy só troca cores dependendo da situação e o partido dos piratas  é um partido de opinião sem cores.
A política dá espaço à violência das necessidades sociais, que deixa intocáveis as relações socioeconômicas já existentes. O partido dos piratas  não tem condições de articular uma vontade política e produzir novas coordenadas sociais.
A coerção por transparência estabiliza o sistema existente. A transparência é positiva em si. Não há dentro dela qualquer negatividade que possa questionar o sistema político-econômico vigente. Está cega ao exterior do sistema, confirma e otimiza o que já existe. Logo a sociedadeda transparência caminha junto com a pós- política. "Totalmente transparente só pode ser o espaço despolitizado". 
O veredicto da sociedade positiva é "me agrada". O Facebook nega a introdução de um emotion de dislike, pois a negatividade paralisa a comunicação e prejudica o valor econômico. O que vale é a quantidade e velocidade das informações, elevando assim o valor da mercadoria.
Transparência e verdade não são iguais. A verdade é uma negatividade que se põe e impõe declarando tudo o mais como falso. Informações não produzem verdade, pois nao apresentam direção, saber, e sentido. "É precisamente em virtude da falta de negatividade do verdadeiro que se dá a proliferação e massificação do positivo".  A hipercomunicação e hiperinformação geram à falta de verdade, a falta de ser. A falta de precisão do todo é intensificada.

No Seminário "A transferência" Lacan afirma;
"É próprio das verdades  nunca se mostrarem por inteiro. Em suma, as verdades são sólidos de uma opacidade bastante pérfida. Elas sequer têm, ao que parece, essa propriedade que somos capazes de realizar nos sólidos, a transparência; elas não mostram ao mesmo tempo suas arestas anteriores e posteriores. É preciso que se lhes dê a volta, e diria mesmo, é preciso o passe de mágica".
(Lacan, 1961).

Bibliografia 

Han, Byung-Chul. Sociedade da transparência. RJ: Vozes, 2017.

Lacan, J. A transferência. RJ: Jorge Zahar Ed., 1992.

 

Enviado do meu smartphone Samsung Galaxy.