Transgeneridade e
Psicanálise
Rosa Jeni Matz
O jornal informa a descoberta de
uma nova espécie de humano antigo, o Homo naledi[1],
que apresenta a mistura de características dos humanos modernos com
hominídeos mais arcaicos. Também, a foto de um transgênero é publicada,
não mais resultado de uma mistura de características do macaco e do Homem, mas
uma mistura de características masculinas e femininas.
Outra notícia do
jornal é a afirmação da educadora finlandesa sobre a contemporaneidade: “Pensar
e resolver problemas não é mais suficiente”[2].
A Finlândia está se preparando para mudanças em seu modelo educacional, pois
devido ao acesso de informações facilitado atualmente pela tecnologia, o
professor não é mais “o cálice sagrado do conhecimento”. Há um foco na
criatividade da criança, na responsabilidade social, no pensar diferente, e na
transdisciplinaridade.
Alguns
professores do Colégio Pedro II, Rio de Janeiro, utilizaram “x” no lugar das
vogais “a” e “o”, criando o neologismo “alunxs”[3],
em vez de alunos/alunas, com o intuito de assinalar a não distinção de gêneros.
Este neologismo foi utilizado em avisos de parede e cabeçalhos de provas.
Diferença
sexual?
A
transgeneridade é a condição onde a expressão de gênero ou identidade de gênero
de uma pessoa é diferente daquelas atribuídas ao sexo biológico, e também ao
gênero, designado ao sujeito no nascimento.
Falamos hoje em
identidades. E por onde anda o conceito de identificação? O conceito de
identificação estaria mais próximo à neurose e ao recalque, sendo resultado da
Metáfora Paterna, operação de substituição do significante do desejo da mãe
pelo significante Nome-do-Pai. Ocorre a identificação a um traço paterno, traço
unário (freudiano e lacaniano).
No momento atual
nos referimos às identidades, pois em vez do Nome-do-Pai nomear, o parlêtre
tem a possibilidade de fazer o seu próprio nome, se nomear. Através de estudos
sobre James Joyce e os nós borromeanos, Lacan se aproxima de nossa época, cuja
questão é “fazer-se um nome”, ter uma identidade singular.
O transgênero
aponta para esta identidade de “fazer-se um nome”. Não só um nome, mas um
sujeito. Transforma o sintoma, antes considerado patológico, em Sinthoma,
fazendo um novo nó, que pode ser um Nome-do-Pai, e daí constrói a sua vida como
sujeito. Lacan no seu último ensino fala de Nomes-do-Pai: Imaginário,
Simbólico, Real e Sinthoma.
Para Freud no
inconsciente só há uma libido, a masculina, não existindo representação da
mulher no inconsciente. Só há Um. Na psicanálise o falo é o símbolo sexual por
excelência, apontando à falta e à castração. O falo se refere à falta do pênis
na mulher. Se todo sujeito é
efeito de uma posição masculina, que termos são esses homem e mulher em uso na
cultura? Os termos caminham para o desuso.
Freud pensa o
falo através da fase fálica, contemporânea ao complexo de Édipo. Em seu texto ”Algumas
consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” (1925) [4]
escreve:
“A diferença
entre o desenvolvimento sexual dos indivíduos dos sexos masculino e feminino no
estádio que estivemos considerando, é uma consequência inteligível da distinção
anatômica entre seus órgãos genitais e da situação psíquica aí envolvida;
corresponde à diferença entre uma castração que foi executada e outra que foi
simplesmente ameaçada”.
Freud assinala a
presença da percepção visual na discriminação dessa diferença. Em relação às
meninas: “Elas notam o pênis de um irmão ou companheiro de brinquedo,
notavelmente visível e de grandes proporções, e imediatamente o identificam com
o correspondente superior de seu próprio órgão pequeno e imperceptível, dessa
ocasião em diante caem vítimas da inveja do pênis”.
Enfatiza a ameaça
da castração como fator fundamental para a dissolução deste complexo no menino,
enquanto na menina a fantasia da castração já é “consumada”. Afirma que na
saída do complexo de Édipo, em “casos normais, ou melhor, em casos ideais, o
complexo de Édipo não existe mais, nem mesmo no inconsciente; o superego se
tornou seu herdeiro”.
O pai, nos
velhos tempos, representava a moral, a lei, fazendo a função de um Outro
consistente. O Outro atualmente não proíbe nada, incita a gozar (Goze! Voz do
supereu) e a ultrapassar limites, gozo do Outro. O que se manifesta na
atualidade é o gozo, do supereu, o super-homem. Logo, o que herdamos hoje é o
superego dos pais como caminho do gozo, e para o gozo, e não mais ideais.
No texto de
1924, “A dissolução do complexo de Édipo”[5],
Freud associa também outras duas experiências sofridas pelas crianças que “as
preparam para a perda de partes altamente valorizadas do corpo” (p. 219), que
são a retirada do seio materno e a exigência de soltarem os conteúdos do
intestino. Mas, só após o surgimento de
uma “nova” experiência em seu caminho, que a criança avalia a possibilidade de
sua castração, que ocorre principalmente através da “visão dos órgãos genitais
femininos”.
Através desta
afirmação de Freud sobre a “ameaça de perdas valorizadas do corpo” podemos
encontrar o gancho para pensar o complexo de Édipo na atualidade. A ênfase hoje
é no gozo, na perda de gozo. Os objetos a: seio, fezes, olhar e voz,
representam estas partes perdidas do corpo infantil, mas que hoje se tornam
zênite de gozo. A castração agenciada pelo pai real implica numa perda de gozo,
do gozo incestuoso mãe-criança. A entrada do significante produz uma perda
real. O que hoje acontece é o sujeito não aceitando esta perda necessária para
estruturá-lo, o sujeito hoje tenta driblar esta perda de gozo. Busca tapar a
falta do Outro com esta parte de gozo perdida, renegar a castração. O sujeito
se iguala ao objeto. O S1 se torna a. A questão: Como posso melhor
gozar?
Estamos num
momento diferente do significante falo como significante do desejo do Outro. O
gozo é do Um sem o Outro, solitário, autista e assexuado.
Logo, pode não
implicar a sexualidade como diferença, já que o significante é o elemento
diferencial último. O S1 é a marca da diferença no Outro, resultado da metáfora
paterna, e identificação ao traço unário. Há apagamento do Outro, ficando o
sujeito solitário frente ao objeto, mais além do Édipo.
No seminário 20, Encore (1972/3)[6],
nas fórmulas da sexuação, apesar de Lacan eleger a função fálica como operador
da castração, ele posiciona tanto o homem e a mulher em qualquer dos dois
lados, abrindo assim o leque para diferentes identidades. O homem pode se
posicionar no lado da Mulher, do gozo suplementar, ilimitado; e a mulher que é
não-toda fálica pode se posicionar no lado Homem, do gozo fálico.
Père-version, as várias versões do pai. Respostas ao
Um do pai. Cada sujeito vai ter a sua versão. Há vários Nomes-do-Pai. A
neurose, a psicose e a perversão são posições diferentes diante da questão do
Pai.
No seminário 4, A relação de objeto
(1956)[7],
Lacan comenta o caso da jovem homossexual de Freud, e assinala outras formas
das vias perversas do desejo. Na perversão o sujeito busca esconder a falta
fálica da mãe através do véu. O véu esconde que a mãe não tem o falo, mas ao
mesmo tempo é onde se projeta a imagem do falo simbólico, a mãe tem o falo. No
fetichismo, o fetiche é uma imagem projetada, deste falo ausente, simbólico.
Nestas vias pode ocorrer a identificação
com a mulher, o sujeito se situando no lugar da mãe. No travestismo ocorre uma
identificação com a mãe que tem o falo. No homossexualismo a ênfase é no seu
falo, mas que deve ser buscado no outro. O homossexual se identifica com a mãe
que deve ter o falo, a mãe que faz a lei para o pai. Identificação com o gozo
da mãe, e não com o desejo e o amor. Várias leis?
Os lacanianos chegaram a aproximar os
transexuais à psicose, devido à confusão entre o falo e o pênis, entre o
significante e o órgão, reduzindo o falo ao pênis real, ao próprio órgão; e
pela foraclusão da castração simbólica, buscando uma intervenção cirúrgica de
fato ao nível corporal. Mas, Catherine Millot[8]
traz uma proposta interessante de que assumindo uma identidade de “A Mulher” o
transexual limita o gozo do Outro, colocando o significante “A Mulher” como
função do Nome-do-Pai. Mas, este sujeito se coloca fora do sexo, encarna o sexo
dos anjos, já que o significante da diferença sexual, o falo é
desconsiderado.
Assim, vários Nomes-do-Pai. Como diz
Lacan: varité. Condensa verdade (vérité) e variável/variedade (variété),
criando o neologismo “varité”, variedades da verdade. A verdade não é única,
tem variedades.
[1] Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 11/09/2015
[2] Ibid.,
12/09/2015
[5] Ibid.
[6] Lacan. J (1972/3). Seminário 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1993.
[7] Lacan, J (1956/7). A relação de objeto. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
[8] Dor, Joel. Estrutura e
perversões. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1991.