sexta-feira, 3 de junho de 2022

O gozo na contemporaneidade

 

                                            O gozo na contemporaneidade

                                                                                   Rosa Jeni Matz

 

O conceito de gozo em Lacan se aproxima do conceito de gozo em Freud. Freud utiliza o significante Genuss, gozo, em sua conotação sexual. Freud afirma que o aparelho psíquico é governado por um princípio regulador, princípio do prazer, que visa o esvaziamento de tensão, homeostase, equilíbrio, e quando ocorre um excesso de energia, que é sentido pelo sujeito como desprazer, entramos na dimensão do gozo, o além do princípio do prazer (Além do princípio do prazer, 1920).

 Freud se refere ao ganho secundário da doença, que é a vantagem, o lucro, que a doença pode trazer ao sujeito. Versa sobre o ganho primário e o ganho secundário da doença. O ganho primário de uma doença poupa o indivíduo de um conflito psíquico. Já o ganho secundário é o ganho que surge quando um sujeito sofre, por exemplo, um acidente no trabalho, é penoso porque ele fica sem o trabalho, mas no momento que ele recebe a indenização pelo acidente, ele pode não querer retornar ao trabalho. Surge um ganho de gozo nesta condição. É importante frisar que o adoecimento que se traduz em ganhos primários e secundários é inconsciente, e o ganho secundário é gozo.

Freud diz que há uma tendência do psiquismo para a repetição, compulsão à repetição, que ultrapassa o princípio do prazer, que aponta à pulsão de morte. Surge o novo dualismo pulsional: pulsão de vida e pulsão de morte. O sujeito sofre uma coação de repetir experiências dolorosas, traumáticas, de desprazer, experiências recalcadas, que o sujeito não recorda, e que são repetidas como vivências atuais em sua vida. O conceito de compulsão à repetição traz o além do princípio do prazer, como tentativa de assimilar o traumático, aproximando a pulsão de morte à inércia, estado anterior do ser vivo. A pulsão de morte surge em estados de gozo do sujeito quando ele ultrapassa a barreira do prazer, o limite, a lei, indo de encontro à morte. O princípio do prazer é limite ao gozo.

Em Lacan o conceito de gozo é fundamental. Apresenta o gozo como fora da linguagem, não tem representação. O aforismo lacaniano “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” apresenta o Outro como um lugar, onde a cadeia significante desliza, e no intervalo se situa o desejo. Mas, nem tudo é linguagem, nem tudo são palavras, no ser humano, há gozo. O lugar do gozo é no corpo.

No seminário A ética da psicanálise (1960), o conceito de gozo é importado do campo jurídico, jouissance (usufruto), que é um direito dado a uma pessoa de gozar ou fruir de um bem cuja propriedade pertence a outrem. Diferente do desejo, que aponta para o próprio. Neste livro Lacan traz o das Ding, a Coisa, de Freud, como estatuto do gozo inicial, de uma fusão inicial bebê-mãe, que equivale ao desejo incestuoso, sem limite. O gozo estaria do lado da Coisa.

O desejo é desejo do Outro, sendo o Outro lugar do significante. O desejo se articula com a lei, Nome-do-Pai, lei primordial da interdição do incesto. O desejo, submetido à lei, é defesa do sujeito em sua relação com o gozo. O gozo é uma transgressão da lei.

O gozo permanece nesse campo central da Coisa, cujo o acesso é impossível ao sujeito, pois abole o sujeito. A lei barra o gozo, que só pode ser dito entre linhas (inter-dito) pelo sujeito dividido entre o desejo que vem do Outro e o gozo que está na Coisa.

 No Seminário 20, Mais ainda (1973), Lacan apresenta tentativas de cifrar o gozo, em diferentes modalidades, como também as fórmulas da sexuação.

Tipos de gozo:                             

Gozo do Outro – lugar de proibida entrada porque falamos. Seria a satisfação absoluta do desejo. Gozo mítico, ligado à Coisa, não simbolizado. Busca de um gozo completo, pleno, de fazer Um com o outro. Santa Teresa D’Avila expressa o êxtase na escultura de Bernini, gozo dos místicos.

Gozo fálico – gozo parcial, que o sujeito se contenta parcialmente. O falo fazendo barreira ao gozo do Outro. Representa a perda de gozo devido à castração.

 Mais-de-gozar - equivale a mais-valia de Marx. Faz borda para uma falta. É o excesso de gozo como recuperação de uma perda. No processo de constituição do sujeito existe uma renúncia ao gozo do corpo, implicada na divisão do sujeito, sendo o objeto a resto deste sujeito barrado. O objeto a é captura de gozo.

Gozo da fala (jouis-sense) – gozo do sentido, ao falar, ao produzir sentido o sujeito goza. Também j’ouis sense (eu ouço sentido).

O outro gozo, gozo feminino, suplementar – gozo além do falo, gozo a mais, suplementar.

Como pensar o gozo na contemporaneidade? Podemos nos aproximar do momento atual como um estado de gozo. Gozo do imediato, pela velocidade, não permitindo a entrada do mediato, que seria o terceiro, que colocaria um limite na relação do sujeito com o outro. Ocorre a falência do Nome-do-Pai, da lei, da castração, operação necessária para barrar o sujeito, descompletá-lo, gerando a falta, para dar lugar ao desejo. O sujeito é falta-a-ser, não é completo, desejo é movimento, desejo de outra coisa. Hoje o gozo tapa a falta.

O Outro da linguagem, dimensão do simbólico, se desvanece, ocorrendo um gozo autístico, onde o Outro é excluído.

Atualmente os sujeitos usufruem de seus corpos, muitas vezes, sem limites. O discurso capitalista busca reproduzir um estado irrecuperável de completude. O laço social, relação entre os sujeitos, se sustenta do discurso, apresentando os modos de gozo de uma época, de uma cultura determinada. A cultura regula o gozo, como Freud já dizia no seu artigo o Mal-estar na Cultura (1930), fazendo com que o sujeito possa habitar com limites em sua época.

Mas, neste momento assistimos a queda dos ideais, que se apresenta pela falência do Pai, que se reflete no imaginário, inclusive na educação. Professores e pais não ocupam mais o lugar de autoridade. O autoritarismo, a tirania, substitui a autoridade, como o pai da horda, em Totem e Tabu (1913) de Freud, que é o pai autoritário que gozava das mulheres e dos filhos.

A falta que aponta para o desejo, hoje, é preenchida por objetos de consumo, como celulares, tablets, alimentos, drogas, etc. O sujeito não suporta a falta tão essencial para a estruturação da subjetividade. A cultura utilitária pós-moderna baseia-se na compulsão ao consumo, na busca em excesso do ter para camuflar a falta-a-ser. Uma sociedade narcisista, voltada para o espetáculo, onde a fronteira entre o público e o privado desaparece. Somos olhados o tempo todo, e objeto olhar ganha lugar de zênite, de apogeu, de gozo nas imagens oferecidas pela mídia.

Podemos observar o aumento de casos de anorexia e bulimia na atualidade. O modelo imaginário do corpo ideal, como supereu mundial, dita as normas do gozo do corpo perfeito. A anoréxica reage à demanda de se deixar alimentar através da recusa da demanda, já que não é signo de amor. Ela luta pelo seu desejo, querendo também furar o Outro do desejo. A bulímica goza em sua fome de boi, mas vomita para abrir espaço do desejo. Duas faces de desejo e gozo. O gozo da anoréxica pode conduzi-la à morte. Impulsões que apontam para a clínica do real, onde o gozo está localizado no corpo.

Nós, psicanalistas precisamos pensar a nossa época, onde o corpo, sede do gozo, devido à queda do simbólico, está capturado pelo Gozo do Outro, se tornando cada vez mais um espetáculo!

 

Nota:

Sobre os tipos de gozo: Maria Cristina Ocariz, O sintoma e a clínica psicanalítica, SP: Via Lettera Ed, 2003.

sábado, 18 de dezembro de 2021

Solidão, terror e totalitarismo em Hannah Arendt

 

                     Solidão, terror e totalitarismo em Hannah Arendt

                                                                                      Rosa Jeni Matz

Hannah Arendt em Origens do Totalitarismo (2012), escrito em 1951, afirma que o totalitarismo difere de todas outras formas de opressão política. Difere do despotismo, da tirania e da ditadura. O totalitarismo sempre que galgou o poder criou instituições políticas novas e destruiu todas as tradições sociais legais e políticas do país.

No despotismo, o poder é ilimitado e o povo não pode se opor as ideias e ações do governante. Os únicos beneficiados, muitas vezes, é a própria família do déspota, caracterizando o nepotismo.

Por sua parte, o poder no absolutismo é limitado pela lei divina. Isto implicava que os monarcas eram pessoas religiosas e deviam tentar praticar os ensinamentos divinos no seu governo.

tirania é, historicamente, um tipo de governo em que o líder chega ao poder ou continua na liderança de maneira ilegítima. Um governo sem leis no qual o poder é exercido por um só homem. O medo surge como princípio de ação: medo do povo em relação ao governante e o medo do governante pelo povo. Os primeiros registros de governos tiranos datam do período arcaico da Grécia Antiga (séculos VIII A.C. a VI A.C.), sendo que a palavra tirania origina-se do vocábulo grego týrannos, que significa líder ilegítimo.

ditadura é um regime de governo onde o poder está concentrado nas mãos de um indivíduo ou grupo. Uma ditadura se caracteriza por ter censura, falta de eleições transparentes e um intenso controle na vida dos cidadãos.

Arendt diz que o governo totalitário sempre transformou as classes em massas, substituiu o sistema partidário não por ditaduras unipartidárias, mas por um movimento de massa, transferiu o poder do Exército para a polícia e estabeleceu uma política exterior que visava abertamente o domínio mundial. 

O poder totalitário destruiu, segundo a filosofia política, as definições da essência dos governos, isto é, a alternativa entre governo legal e ilegal, poder arbitrário e legítimo, mas não opera sem uma lei, pois afirma obedecer as leis da Natureza ou da História. Há um rompimento com o consensus iuris que segundo Cícero constitui um povo, e que como lei internacional tem constituído o mundo civilizado. Segundo Cícero o povo é uma reunião de homens associados pelo consentimento do direito e pela comunidade de interesses. Para Santo Agostinho, na Civitas Dei, o consentimento do direito significa que sem justiça não pode governar-se e que a justiça é uma virtude que dá a cada um o que é o seu. O julgamento moral como a punição legal pressupõe este consentimento básico. O conceito totalitário dispensa o consensus iuris porque promete libertar da lei todo ato e desejo humano. 

No totalitarismo todas as leis se tornam leis de movimento. Os nazistas se referiam à lei da natureza e os bolchevistas à lei da história.  Estas leis se manifestam no nazismo como leis raciais, como expressão da lei da natureza, da ideia de Darwin do homem como um produto da evolução natural. Na crença bolchevista, a luta de classes como expressão da lei da história, a ideia de Marx da sociedade como produto de um momento histórico que se dirige para o fim dos tempos históricos, quando então se extinguirá a si mesmo. Hannah Arendt diz que o movimento da história e o movimento da natureza são um só. Darwin introduziu o conceito de evolução na natureza, insistiu que o movimento natural é unilinear, que progride infinitamente, logo a natureza assimilada à história, sendo que a vida natural deve ser vista como histórica. "A lei natural da sobrevivência dos mais aptos é tão histórica - e pôde ser usada como tal pelo racismo - quanto à lei de Marx da sobrevivência da classe mais progressista". A luta de classes de Marx como força motriz da história é expressão externa do desenvolvimento de forças produtivas emanadas da "energia trabalho" dos homens. O trabalho para Marx é uma força natural-biológica produzida pelo metabolismo do homem com a natureza, e através dele conserva sua vida individual e reproduz a espécie. Arendt diz que o termo lei mudou de sentido, deixa de expressar a estrutura de estabilidade dentro do qual podem ocorrer os atos, ecos de movimentos humanos, para ser a expressão do próprio movimento.

Na política totalitária a lei de matar, forma pelo qual os governos totalitários exercem o poder é uma lei de movimento.

O lugar da lei no corpo político do governo totalitário é tomado pelo terror total, que se destina a converter em realidade a lei do movimento da história ou da natureza. O terror torna-se total quando independe de toda oposição, ninguém barra o seu caminho.

" Se a legalidade é a essência do governo não tirânico e a ilegalidade é a essência do tiranismo, o terror é a essência do domínio totalitário".

O terror é a realização da lei do movimento. O seu objetivo é tornar possível à força da natureza ou da história propagar-se livremente por toda a humanidade sem o estorvo de qualquer ação humana espontânea. Esse movimento seleciona os inimigos da humanidade contra os quais se desencadeia o terror e não pode permitir que qualquer ação livre de oposição ou de simpatia interfira com a eliminação do inimigo objetivo da História ou da Natureza, da classe ou da raça. Culpa e inocência viram conceitos vazios, culpado é quem estorva o caminho do processo natural ou histórico, como as raças inferiores, classes agonizantes e povos decadentes. Este julgamento é para ser cumprido, mas neste tribunal os interessados são inocentes. O terror é a legalidade quando a lei é a lei do movimento de alguma força sobre-humana da Natureza ou da História. Não tem como fim o bem-estar humano, elimina os indivíduos pelo bem da espécie, sacrifica as partes em benefício do todo.

Mas, Hannah Arendt diz que a força sobre-humana da Natureza ou da História tem o seu próprio começo e o seu fim, de sorte que só pode ser retardada pelo novo começo e pelo fim individual que é a vida de cada homem. "A cada nascimento, um novo começo surge para o mundo, um novo mundo em potencial passa a existir". A estabilidade das leis corresponde ao constante movimento de todas as coisas humanas, que não podem cessar enquanto os homens nasçam e morram. As leis positivas circunscrevem cada novo começo e asseguram a liberdade de movimento, a potencialidade de algo novo e imprevisível. As leis positivas são as leis constitucionais e regulam os direitos humanos, garantem a preexistência de um mundo comum, que transcende a duração individual de cada geração.

O terror total muitas vezes, no início, é considerado sintoma de uma tirania, mas não visa o poder despótico de um homem contra todos. Constrói um cinturão de ferro que cinge os homens de tal forma, como se a pluralidade se dissolvesse em Um-Só-Homem de dimensões gigantescas. "Abolir as cercas da lei entre os homens - como faz a tirania - significa tirar dos homens os seus direitos e destruir a liberdade como realidade política viva, pois o espaço entre os homens delimitado pelas leis é o espaço vital da liberdade". O terror total também destrói o deserto sem cercas e sem lei, deserto da suspeita e do medo que a tirania deixa atrás de si. Mas, apesar do deserto da tirania não ser mais espaço vital da liberdade, ainda deixa margem aos movimentos medrosos de seus habitantes. Já o terror total, essência do regime totalitário, não existe a favor ou contra os homens. Quer acelerar o movimento das forças da história e da natureza, que se torna mais forte que as forças engendradas pela ação e pela vontade do homem. Embora este movimento possa ser retardado pela liberdade do homem, não pode ser negado nem pelo governante totalitário, a liberdade equivale ao fato de que os homens nascem e que portanto cada um deles é um novo começo e em certo sentido o início de um novo mundo. Pelo ponto de vista totalitário o fato dos homens nascerem e morrerem seria um modo aborrecido de interferir com forças superiores. Assim, o terror como servo obediente do movimento natural ou histórico tem de eliminar do processo não apenas a liberdade em sentido específico, mas a própria fonte de liberdade que está no nascimento do homem e na sua capacidade de começar de novo. O cinturão de ferro do terror destrói a pluralidade dos homens e faz todos Um, que age como fazendo parte desta corrente da história e da natureza, isto é, o terror executa as sentenças de morte que a Natureza pronunciou contra aquelas raças, indivíduos indignos de viver, ou que a História decretou contra as classes agonizantes. O movimento se torna a essência do próprio regime.

Hannah Arendt afirma que a ideologia é literalmente a lógica de uma ideia. O seu objeto de estudo é a história, à qual a ideia é aplicada, sendo um processo que está em constante mudança. Diz que a ideologia não se interessa pelo milagre do ser. As ideologias são históricas, interessadas no vir a ser e no morrer, na ascensão e queda das culturas. A ideia de uma ideologia não é a essência de Platão, nem o princípio regulador da razão de Kant, mas um instrumento de explicação a partir de uma única premissa. As ideologias pressupõem que uma ideia pode explicar tudo, onde a liberdade humana de pensar fica aprisionada. As ideologias não transformam a realidade, e sim afastam o pensamento da experiência, arrumando os fatos por um processo lógico que se inicia por uma premissa aceita como axioma, tudo sendo deduzido a partir dela, gerando o seu movimento, e a emancipação da realidade e da experiência. Não há dialética de tese, antítese e síntese. A premissa inicial engloba e atinge todos os campos da realidade.

O movimento totalitário afasta o pensamento da experiência e da realidade, buscando através da propaganda injetar um significado secreto em cada evento público e farejar intenções secretas atrás de cada ato político público. O conceito de inimizade é substituído pelo conceito de conspiração, incutindo uma mentalidade no indivíduo que o afasta de seu pensar próprio, afastando o pensamento da experiência.

Os governantes totalitários, ideólogos como Hitler e Stalin, transformaram as suas ideologias em armas para que que cada um dos governados entrassem em harmonia com o movimento do terror que engolia os "indignos de viver", os "incapazes". 

A força do processo lógico deduzido do totalitarismo se apodera das massas para a realização dos seus objetivos ideológicos: massa, uma sociedade sem classes (luta de classes, lei da história) ou uma raça dominante (luta de raças, lei da natureza).

A tirania da lógica, compulsão interna do totalitarismo, começa com a submissão da mente à lógica como processo sem fim, no qual o homem elabora seus pensamentos. Através dessa submissão ele renuncia tanto à sua liberdade interior de pensar, liberdade como a capacidade interior do homem de começar, como à liberdade política, que equivale a um espaço que permite o movimento entre os homens. O governo totalitário impedindo o pensar individual ignora o nascimento e a morte.

A compulsão do terror total, com o seu cinturão de ferro comprime as massas de homens isolados umas contra as outras e lhe dá apoio num mundo que para elas se tornou deserto, sendo que a força autocoercetiva da dedução lógica prepara cada indivíduo em seu isolamento solitário contra todos os outros que se retroalimentam.

O terror arruína as relações entre os homens, e a auto-compulsão do pensamento ideológico destrói toda a relação com a realidade. 

Hannah Arendt diz que o preparo do movimento totalitário triunfa quando as pessoas perdem o contato com os seus semelhantes e com a realidade, perdendo assim a capacidade de sentir e pensar.

"O súdito ideal do governo totalitário...é aquele para quem já não existe a diferença entre o fato e a ficção (isto é, a realidade da experiência) e a diferença entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do pensamento).

Arendt questiona qual  tipo de experiência básica na vida em comum, que inspira uma forma de governo cuja a essência é o terror e cujo princípio de ação é a lógica do pensamento ideológico. Afirma que esta forma de domínio político, mistura do terror com a lógica totalitária, nunca foi utilizada anteriormente, e acentua que este corpo político foi planejado por homens, e que responde à necessidade humanas. O terror só pode reinar absolutamente sobre homens que se isolam uns contra os outros, e um governo tirânico quer provocar este isolamento. O isolamento pode ser o começo do terror, é o seu solo mais fértil e sempre decorre dele. É um isolamento pré-totalitário, sua característica é a impotência, pois a força somente surge do trabalho em conjunto, sendo os homens isolados impotentes por definição. O isolamento e a impotência, que é a incapacidade básica de agir, são características da tirania.

Os contatos políticos entre os homens são cortados no governo tirânico e as capacidades humanas de ação e poder são frustradas. Mas nem todos os contatos entre os homens são interrompidos e nem todas as capacidades humanas são destruídas na tirania. Toda a esfera da vida privada, junto com a capacidade de sentir, de inventar, e pensar permanece intacta.

Já no totalitarismo o terror total, seu cinturão de ferro, elimina o espaço para essa vida privada e a autocoerção da lógica totalitária destrói a capacidade humana de sentir e pensar como a capacidade de agir.

Arendt afirma que o que chama de isolamento na esfera política é chamado de solidão na esfera dos contatos sociais. Isolamento e solidão não são a mesma coisa. Pode-se estar isolado, numa situação em que não se possa agir, pois não há ninguém para interagir, sem que se esteja solitário como numa situação de abandono. O isolamento é um impasse quando a esfera política da vida dos homens, seus interesses em comum, é destruída. Mas o isolamento embora destrua a capacidade e o poder de agir deixa intactas as atividades produtivas do homem, sendo também em alguns momentos necessário. O homo faber tende a se isolar pelo seu trabalho, deixando temporariamente o terreno da política. A fabricação, a poiesis, o ato de fazer coisas que se distingue da ação, da praxis, e do mero trabalho acontece quando o homem se isola dos interesses comuns. No isolamento o homem permanece em contato com o mundo como obra humana, mas somente quando se destrói a forma mais elementar da criatividade humana, que é a capacidade de acrescentar algo de si mesmo ao mundo ao redor, o isolamento se torna insuportável. Isso pode acontecer num mundo ditado só pelo trabalho, onde permanece o esforço do homem de se manter vivo e desaparece a relação com o mundo como criação humana.

Quando o homem isolado perdeu o seu lugar no terreno político de ação e também é abandonado pelo mundo das coisas, quando já não é reconhecido como homo faber, mas é tratado como animal laborans cujo necessário "metabolismo com a natureza" não é do interesse de ninguém, o isolamento se torna solidão. A escravatura na Antiguidade dominada por tirania provocou homens solitários e não apenas isolados, tendendo a ser totalitária.

Enquanto o isolamento se refere apenas ao terreno político da vida, a solidão se refere à vida humana como um todo. O governo totalitário, como todas as tiranias, não poderia existir sem destruir a esfera da vida pública, sem destruir pelo isolamento as suas capacidades políticas. Mas, a inovação do domínio totalitário é que ele não se contenta com esse isolamento e destrói a vida privada. "Baseia-se na solidão, na experiência de não se pertencer ao mundo, que é uma das mais radicais e desesperadas experiências que o homem pode ter".

A solidão, o fundamento para o terror, é a essência do governo totalitário. Para a ideologia e a lógica, a preparação de seus carrascos e vítimas, têm íntima ligação com o desarraigamento e a superfluidade que atormentavam as massas modernas desde a Revolução industrial e também com o colapso das instituições políticas e tradições sociais. Não ter raízes significa não ter no mundo um lugar reconhecido e garantido pelos outros, ser supérfluo significa não pertencer ao mundo de forma alguma. O desarraigamento pode ser a condição preliminar da superfluidade, tal como o isolamento pode ("mas não deve") ser a condição preliminar da solidão.

Em sua essência a solidão é contrária às necessidades básicas da condição humana. Até a experiência do mundo depende do nosso contato com outros homens, do nosso senso comum que regula nossos sentidos, sem o qual cada um de nós ficaria enclausurado em sua própria particularidade de dados sensoriais, que são traiçoeiros e indignos de fé. Somente porque a Terra é habitada por homens no plural que podemos confiar em nossa experiência sensorial imediata. 

Solidão não é estar só. Quem está desacompanhado está só, enquanto a solidão se manifesta mais nitidamente na companhia de outras pessoas. Quando se está só se está consigo mesmo, em companhia do seu próprio eu, se é dois em um, enquanto na solidão se é apenas um, abandonado por todos os outros. Todo ato de pensar é feito quando se está a sós, e constitui um diálogo entre eu e o eu mesmo, e este diálogo de dois em um não perde contato com o mundo dos semelhantes, que estão representados no eu, onde se estabelece o diálogo do pensamento. Mas, dois em um necessita de outros para que volte a seu um, um indivíduo imutável cuja a identidade não pode ser confundida com a de qualquer outro.

Viver a sós pode levar à solidão, quando o próprio eu desaparece.

O que torna a solidão insuportável é a perda do próprio eu, onde se perde a confiança em si mesmo como parceiro de seus pensamentos e perde a confiança elementar do mundo, das experiências. O eu e o mundo, a capacidade de pensar e de sentir, perdem-se ao mesmo tempo.

Arendt diz que a única capacidade do espírito humano que não precisa do eu, nem dos outros, nem do mundo para funcionar, que independe do pensamento e da experiência, é a capacidade do raciocínio lógico cuja a premissa é evidente por si mesmo. Na solidão absoluta 2 e 2 são quatro. É a única "verdade" segura quando os seres humanos perdem a garantia mútua, senso comum de que necessitam para viver, de sentir e encontrar seu caminho no mundo. Mas essa "verdade" é vazia e nem chega a ser verdade, uma vez que nada revela. A verdade não pode ser definida como coerência como fazem alguns lógicos modernos. Na solidão a evidência passa a produzir as linhas de "pensamento". Como disse Lutero o homem solitário sempre deduz uma coisa da outra, e sempre pensa o pior de tudo. O extremismo dos movimentos totalitários não é o radicalismo, mas consiste em "pensar o pior", num processo dedutivo que leva às piores conclusões possíveis.

O que prepara os homens para o domínio totalitário no mundo não totalitário é o fato que a solidão, já sofrida em situações marginais como a velhice, passa a ser experiência diária de massas cada vez maiores. "O impiedoso processo no qual o totalitarismo engolfa e organiza as massas é uma fuga suicida dessa realidade. O "raciocínio frio como o gelo" e o "poderoso tentáculo" parecem ser o último apoio num mundo onde ninguém merece confiança e onde não se pode contar com coisa alguma. É a coerção interna cujo único conteúdo é a rigorosa evitação de contradições, que parece confirmar a identidade de um homem independentemente de todo relacionamento com os outros. Ele é preso no cinturão de ferro do terror mesmo quando ele está sozinho. Destruindo todo os espaços entre os homens e pressionando-os uns contra os outros, destrói-se até mesmo o potencial produtivo do isolamento, ensinando e glorificando o raciocínio lógico da solidão, onde o homem estará completamente perdido se deixar fugir a primeira premissa que inicia este processo. Comparado a tirania é encontrado um meio de imprimir movimento ao próprio deserto, um meio de desencadear uma tempestade de areia que pode cobrir todas as partes de um mundo habitado.

Hoje, o terreno da política é ameaçado por estas devastadoras tempestades de areia.

Mas, não se estabelece um mundo permanente. O domínio totalitário como a tirania traz o germe de sua própria destruição. Como o medo e a impotência que vêm do medo são princípios antipolíticos e levam os homens a uma situação contrária à ação política, também a solidão e a dedução do pior (por meio da lógica ideológica que advém da solidão) representam uma situação antissocial que contêm um princípio que pode destruir toda forma de vida humana em comum. A solidão organizada é mais perigosa que a impotência organizada pelo governo tirânico de um só homem. É o seu perigo que ameaça devastar o mundo que conhecemos, um mundo que parece ter chegado ao fim, antes que um novo começo surgisse desse fim, e que tenha tido tempo de firmar-se.

Arendt diz que a crise de nosso tempo deu origem a esta nova forma de governo que tende a permanecer. Mas, permanece também a verdade que todo fim na história constitui um novo começo, sendo esse começo a promessa, a única "mensagem" que o fim pode produzir. 

"O começo, antes de tornar-se evento histórico, é a suprema capacidade do homem; politicamente equivale à liberdade do homem".

Cita Agostinho que diz que "o homem foi criado para que houvesse um começo". 

Cada novo nascimento garante o começo.

Bibliografia

 Arendt, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Psicanálise e sociedades do cansaço e da transparência

O texto abaixo consiste na leitura dos livros Sociedade do cansaço e Sociedade da transparência de Byung-Chul Han. 

Em relação à psicanálise freudiana, Byung-Chul Han afirma que por estarmos num momento de positividade, e já que a psicanálise se refere à negatividade, estaria difícil ela dar conta do mundo atual.

A meu ver ele não se dedicou a pensar a psicanálise em sua historicidade, como exemplo em Lacan que desde 1970 já pensa e elabora o conceito de gozo como positividade, e inclusive como lidar com isso na clínica psicanalítica.

Começa o seu texto dizendo que não vivemos numa época viral, apesar do medo que temos de uma pandemia grupal, pois graças a técnica imunológica, esta época já passou. Prossegue: vivemos uma época de excesso de positividade, daí doenças neuronais como depressão, déficit de atenção, hiperatividade, burnout, que escapam das técnicas imunológicas. Traz a alteridade como categoria fundamental da imunologia, e que no momento há o desaparecimento do Outro, da alteridade. O paradigma imunológico não se coaduna com o processo de globalização e a dialética da negatividade é o traço fundamental da imunidade.

A sociedade disciplinar de Foucault não é mais atual segundo o autor. A sociedade do século XXI é uma sociedade de desempenho. Os sujeitos são do desempenho e da produção e não mais sujeitos da obediência. São sujeitos empresários de si mesmos. A sociedade disciplinar é uma sociedade da negatividade, gera loucos e delinquentes. A sociedade de desempenho produz depressivos e fracassados. Já habita no inconsciente social o desejo de maximizar a produção. Ocorre a positividade do poder mais do que a negatividade do dever. O inconsciente social do dever agora é registro do poder.

Cita Ehrenberg que coloca a depressão na passagem da sociedade disciplinar para a sociedade do desempenho. O depressivo é acossado pela exigência da iniciativa pessoal, é esgotado de ser ele mesmo.

O desenvolvimento cultural da humanidade deve à uma atenção contemplativa. Hoje há uma hiperatenção. Não há tolerância para o tédio profundo, importante segundo Benjamin para o processo criativo: "pássaro onírico, que choca o ovo da experiência". Seria o lugar do descanso espiritual. Nietzsche também assinala a importância do elemento contemplativo.

A sociedade do cansaço é uma sociedade ativa que se desdobra para uma sociedade do doping, que gera um desempenho sem desempenho. O homem se torna uma máquina do desempenho. A sociedade ativa e a sociedade do desempenho geram cansaço e esgotamento excessivos, efeitos do empobrecimento da negatividade e o excesso da positividade. Há um infarto da alma.

Byung-Chul Han afirma que o aparato psíquico freudiano é repressivo e impositivo. Sua estrutura é de uma sociedade disciplinar, logo abarca hospitais, asilos, presídios etc. Diz que a psicanálise freudiana só pode ser efetiva numa sociedade repressiva organizada pela negatividade das proibições. Hoje, a sociedade de desempenho se afasta da negatividade das proibições e se organiza como sociedade da liberdade, que se define pelo poder hábil. Este sujeito do desempenho é um sujeito da afirmação, sendo seu eu sem medo e angústia (segundo o autor).

O autor diz que o inconsciente freudiano não é uma configuração atemporal. É uma produção da sociedade disciplinar repressiva, que segundo ele estamos nos afastando. Aproxima o ego freudiano ao sujeito da obediência kantiano, como cumprimento de um dever. O sujeito de desempenho da modernidade tardia tem como máxima liberdade e boa vontade, e não mais a obediência, a lei e o dever. É um empreendedor de si mesmo. Mas a liberdade em relação ao outro vai transformar essa liberdade em novas coações. Esta falta de relação com outro provoca uma crise de gratificação. Richard Sennet afirma que esta crise da gratificação, do reconhecimento, vai se ligar a uma perturbação narcisista e à uma falta de relação com o outro. Coloca esta questão como distúrbio de caráter. O si-mesmo não encontra nada de "diferente". Byung-Chul Han critica Sennet quando ele diz que o aumento das expectativas impede o sujeito de alcançar uma meta, pois para ele no sujeito narcisista o sentimento de alcançar uma meta não se instaura, é incapaz de chegar a uma conclusão, pois é impulsionado pela coação de desempenho, não alcançando repouso. Vive constante num sentimento de carência e culpa. Sofre então um esgotamento, colapso psíquico, burnout. Afirma que este sujeito se realiza na morte.

Segundo Freud, diz Byung-Chul Han, o "caráter" é um fenômeno da negatividade, pois não se formaria sem a censura do aparato psíquico, sendo um "sedimento depositado de possessões objetuais renunciadas". O eu evita o conhecimento dessas possessões que estão no id pelo processo de repressão (o autor usa repressão em vez de recalque ou foi traduzido assim). "O caráter contém em si a história da repressão", reflete as relações entre id, ego e superego. 

A histeria seria uma doença típica da sociedade disciplinar enquanto a depressão seria amorfa, trazendo um homem sem características. Cita Carl Schmitt que diz que ter muitos amigos no facebook é indicação de falta de caráter, pois devido a divisão interior só se teria um inimigo verdadeiro e também um único amigo. O homem pós moderno, espelho da falta de forma, seria então um homem sem caráter, um homem flexível da positividade.

Afirma que nas doenças psíquicas atuais como depressão, burnout, déficit de atenção, síndrome de hiperatividade não se encontra repressão e processo de negação, pois remetem a um excesso de positividade, afirmando que "a psicanálise não oferece nenhum acesso a elas" (Cf. p.88). Também nos depressivos não se dá transferência já que não ocorre repressão. A sociedade do desempenho trabalha no desmonte de barreiras e proibições dadas pela sociedade disciplinar. Logo há uma promiscuidade generalizada. O inconsciente não influenciaria a depressão.

Afirma que Freud concebe a melancolia como uma relação destrutiva com o outro internalizado como parte de si-mesmo, gerando conflito internalizado no próprio eu, que levaria ao empobrecimento do eu e autoagressividade. Atualmente não há nenhuma relação conflitiva com o outro, de perda, anterior ao sujeito depressivo. A depressão que desemboca no burnout é resultado da autorelação exaltada, narcisista, que ganha traços depressivos. O sujeito de desempenho está cansado, esgotado de lutar consigo mesmo. Remói a si mesmo que o leva a autoerosão e ao esgotamento. Todas as suas ligações se rompem, não havendo luto, que surge quando se perde um objeto. Distingue a melancolia da depressão, sendo a primeira efeito da negatividade, enquanto a depressão aponta para o excesso de positividade.

Para Byung-Chul Han o burnout, que precede a depressão é resultado patológico da autoexploração, influência também do contexto econômico, pelo imperativo da expansão e oferta de produtos à identidade que é flexível.

Na transição da sociedade disciplinar para a sociedade do desempenho o superego se positiva em eu-ideal, que é sedutor. O sujeito de desempenho se projeta em "liberdade", mas ao tentar alcançar a perfeição deste eu-ideal se esgota, se consome, chegando ao suicídio.

E assim, a sociedade da negatividade se transforma em sociedade positiva, da transparência. A transparência surge quando se elimina a negatividade. As coisas, as ações, o tempo, as imagens se tornam transparentes ao se tornarem rasas, planas, operacionais, o presente é otimizado e imediatizado. A transparência é uma coação sistêmica. O movimento de aceleração responde ao igual, desconstruindo a negatividade, eliminando o diferente. Há predomínio do traço autoritário da transparência, que elimina a esfera privada. Cita Freud ao dizer que o eu nega o que o inconsciente afirma, logo o ser humano não é transparente consigo mesmo. Devido a transparência o mundo se torna desavergonhado e desnudo. 

Segundo Byung-Chul Han a "política" também é paralisada devido à necessidade de total transparência, dando lugar à violência de necessidades sociais, seguindo o veredicto da sociedade positiva: " me agrada". A verdade é afastada, já que implica na negatividade. Há uma ausência de saber.

Enfatiza que o espaço do sagrado, da paz, não são transparentes, são sinuosos, como também o objeto do desejo no amor cavalheiresco é um "buraco negro" em torno do qual se adensa o desejo. Cita Lacan ao afirmar que este objeto do desejo é inacessível, indecifrável, o que se observa na anamorfose, cuja imagem surge deformada. Não é evidente, sendo a "Coisa" (das Ding) sem imagem devido a sua impenetrabilidade e ocultamento, e não tendo representação.

Em Sociedade da transparência Byung-Chul Han desenvolve temas importantes como exposição, pornografia, intimidade, informação, narração, que sofrem profundas modificações pela coação transparente, acarretando desculturalizaçao.

A sociedade do cansaço e da transparência são sociedades da positividade que tomou o lugar da negatividade.

O autor afirma que o pensar não é transparente. Segundo Hegel, uma negatividade habita o pensar, que permite o transformar. O tornar-se outro é constitutivo para o pensar.


Embora a psicanálise freudiana siga o paradigma da negatividade, ela abre espaço fundamental nesta nossa sociedade atual, do cansaço e da transparência, como uma teoria e práxis que busca o esvaziamento de gozo. 

Os estudos do último Lacan sobre o inconsciente real, trazendo outras leituras de conceitos como trauma, repetição, nó  borromeano, sinthoma, nos possibilita meios de aproximação  dos problemas  que  esta sociedade positiva apresenta. 

O gozo do Outro, o autoritarismo, são temas desta  sociedade positiva que cobrem a  alteridade e a autoridade. A psicanálise através de Totem e Tabu de Freud já  denunciava os excessos da civilização.



Referência bibliográfica

 

Han, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

______________. Sociedade da transparência.  Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

 

 

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

A violência neuronal na sociedade do cansaço

Em Sociedade do Cansaço, Byung-Chul Han afirma no capítulo sobre a violência neuronal, que cada época possui enfermidades fundamentais. Diz que não vivemos mais numa época viral, que é uma época da negatividade. Por uma perspectiva patológica, o século XXI não é mais definido como bacteriológico e viral, mas sim como neuronal. Doenças neuronais como a depressão, transtorno do déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (TDAH), Transtorno de personalidade limítrofe (TPL), ou a Síndrome de Burnout (SB) são as patologias do início do século XXI. Não são infecções, mas enfartos provocados pelo excesso de positividade. Vivemos numa época de positividade.

Mostra que a sociedade disciplinar e repressora do século XX descrita por Michel Foucault não está mais atuante, sendo substituída por uma nova forma de organização coercitiva, que é a violência neuronal, onde os indivíduos se cobram para apresentar resultados, tornando-se carrascos e vigilantes de suas ações.
O século passado foi imunológico. Havia uma divisão nítida entre dentro e fora, amigo e inimigo, próprio e estranho. A Guerra Fria seguia este esquema imunológico. O paradigma imunológico dominava o vocabulário desta guerra através de um dispositivo militar. A ação imunológica se define por ataque e defesa. Pela defesa se afasta o que é estranho. A estranheza é objeto da defesa imunológica. O estranho é eliminado pela sua alteridade, sendo a alteridade a categoria fundamental da imunologia. 
Byung-Chul Han diz que hoje em dia no lugar da alteridade entra em cena a diferença, que não provoca reação imunológica. A diferença pós-imunológica, a diferença pós- moderna já 
não faz adoecer. Hoje falta à diferença a estranheza, que provocaria violenta reação imunológica. A estranheza se neutraliza no consumo. O estranho cede lugar ao exótico, e o turista visita o exótico, não é mais um sujeito imunológico.
O imigrante hoje não é mais um outro, não é um estrangeiro, que representaria perigo real ou causasse medo. Os imigrantes são mais um peso do que uma ameaça. O vírus do computador não tem mais tanto impacto social.
O paradigma imunológico não se coaduna com o processo de globalização. A alteridade atuaria contra a suspensão de barreiras. O mundo organizado imunologicamente apresenta uma topologia específica, com barreiras, passagens, cercas, trincheiras e muros. Hoje a promiscuidade geral está em todos os âmbitos da vida, e a hibridização domina o atual discurso teórico-cultural.
A dialética da negatividade é o traço fundamental da imunologia. Aí o outro é o negativo que penetra no próprio e procura negá-lo.
A profilaxia imunológica, a vacinação, segue a dialética da negatividade. Apenas fragmentos do outro é introduzido no próprio a fim de provocar imunorreação. 
O desaparecimento da alteridade significa que estamos numa época empobrecida de negatividades. Os adoecimentos neuronais deste século são resultados de um exagero de positividade.
A violência pode provir do igual, e não apenas do outro e do estranho.
Byung-Chul Han cita Baudrillard que diz "quem vive do igual, também perece pelo igual" (A transparência do mal), e que se refere também à "obesidade de todos os sistemas atuais": sistemas de informação, comunicação e de produção. Mas Byung-Chul Han diz que Baudrillard afirma o totalitarismo do igual a partir da perspectiva imunológica, sendo esta a debilidade de sua teoria. Para Byung-Chul Han o igual não forma anticorpos. Num sistema onde o igual domina não tem sentido fortalecer os mecanismos de defesa. Distingue rejeição (abstossung) imunológica e não imunológica. A última implica num excesso do igual, um exagero de positividade. Não há aí negatividade. Já a rejeição imunológica exclui o outro.
A violência da positividade, neuronal, é resultado da superprodução, do superdesempenho, da supercomunicação. A rejeição frente ao excesso de positividade não gera defesa imunológica, mas uma ab-reação  neuronal-digestiva, que é uma rejeição. Também o esgotamento, a exaustão e o sufocamento frente à demasia não são reações imunológicas. São todas elas manifestações de uma violência neuronal.
Critica a teoria da violência de Baudrillard pois ela descreve imunologicamente a violência da positividade ou do igual. Baudrillard afirma que a violência da rede e do virtual é viral, ele descreve a genealogia da inimizade em vários estágios. De início o lobo, inimigo externo, que ataca e nos defendemos pela construção de muros; depois o inimigo toma forma de rato, que é combatido pela higiene; em seguida o estágio do besouro, depois o estágio do vírus de difícil defesa pois está no coração do sistema, que se infiltra no poder. A violência viral aparece como células terroristas. Para Baudrillard o terrorismo é a principal figura de violência viral.
Para Byung-Chul Han a genealogia da inimizade não coincide com esta genealogia da violência. A violência da positividade neuronal não pressupõe nenhuma inimizade. Desenvolve numa sociedade permissiva e pacificada. É mais invisível que uma violência viral. Habita o espaço livre do igual, sem polarização entre inimigo e amigo, entre interior e exterior.
Atualmente o modo de ser do indivíduo se constitui numa organização social que privilegia vertentes do mercado neoliberal, produzindo novos corpos dóceis e autoexplorativos, o empresariamento de si. 
A positivação do mundo faz surgir novas formas de violência, que são imanentes ao sistema. Sendo imanentes não evocam a defesa imunológica. A violência neuronal é o terror da imanência, que se distingue do horror ao estranho no sentido imunológico. Não tem negatividade, não é privativa mas saturante, não excludente mas exaustiva. É inacessível a uma percepção direta.
A violência viral, que segue o esquema imunológico do interior e exterior ou do próprio e outro, pressupondo singularidade ou alteridade hostil ao sistema, não tem condições de descrever enfermidades neuronais como depressão, TDAH ou SB.
A violência neuronal não parte de uma negatividade estranha ao sistema. É uma violência sistêmica, violência imanente ao sistema. Estas enfermidades apontam para um excesso de positividade. Burnout é uma queima do eu por superaquecimento devido a um excesso de igual. O hiper da hiperatividade é uma massificação do positivo.

Bibliografia 

Han, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. RJ: Vozes, 2017.



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Sobre a sociedade positiva da transparência

O texto é sobre o capítulo 1, Sociedade positiva, do livro Sociedade da transparência de Byung-Chul Han.

Ele afirma que atualmente o tema da transparência domina o discurso público, que é evocado e conjugado com a liberdade de informação. A sociedade da negatividade sofreu desconstrução, e a sociedade da transparência se torna uma sociedade da positividade.
Elenca as mutações:
1 - As coisas se tornam transparentes quando qualquer negatividade é eliminada, encaixando-se bem ao curso raso do capital, da comunicação e da informação. As coisas abdicam da singularidade e se expressam unicamente pelo preço. O dinheiro desfaz o singular, igualando tudo. 
2- As ações se tornam transparentes quando se tornam operacionais, subordinadas ao cálculo, governo e controle.
3- O tempo se torna transparente pelo presente sempre disponível, o futuro será um presente otimizado, um tempo sem destino e sem evento. 
4- As imagens se tornam transparentes, quando se despojam de dramaturgia, coreografia e cenografia, da hermenêutica do sentido, e se transformam em pornografia, que é o contato direto entre imagem e olho. 
A sociedade da transparência é um abismo infernal do igual. 
A transparência não se relaciona apenas com corrupção e liberdade de informação. Ela é uma coação sistêmica que abarca todos os processos sociais provocando modificações profundas, acelerando e operacionalizando estes processos.
A desconstrução da negatividade caminha junto com a aceleração, o igual responde ao igual, formando uma reação em cadeia do igual.  A negatividade da alteridade, do que é alheio, ou a resistência do outro atrapalha e retarda a comunicação rasa do igual. A transparência estabiliza e acelera o sistema, eliminando o outro ou o estranho. Torna a sociedade uniformizada, sendo o "traço totalitário",  "traço uniforme" da transparência.
A linguagem humana contém uma intransparência constitutiva (Humboldt), possibilitando  a incompreensão e a divergência de pensamentos. Já a  linguagem da transparência é formal, mecânica, operacional eliminando a ambivalência, tornando-se maquinal. A coação por transparência, a violência da transparência,  transforma o homem num elemento funcional do sistema.
A alma humana é impermeável, precisa estar junto de si mesma, sem o olhar do outro. Uma iluminação total carboniza a alma e provoca um burnout psíquico. Somente a máquina é transparente.  A espontaneidade, capacidade de fazer acontecer,  e a liberdade não admitem a transparência.
Em nome da transparência a esfera privada é eliminada. A ideologia da post privacy é ingênua e equívoca. A transparência exige a eliminação da esfera privada, levando a uma comunicação translúcida. O ser humano não é transparente para consigo mesmo. "Segundo Freud, o eu nega precisamente aquilo que o inconsciente afirma e deseja irrestritamente". O id fica oculto no ego. Na psique humana é aberta uma fissura que não deixa o ego coincidir consigo mesmo. Essa fissura fundamental impossibilita a autotransparência. Fica então difícil criar uma transparência interpessoal, que mantenha viva a relação. A coerção da transparência não respeita à alteridade. Assim, frente o pathos da transparência que domina a sociedade atual é preciso exercitar o pathos da distância. Vergonha e distância não podem  ser integrados no círculo do capital,  da informação e da comunicação, para não serem eliminados pela transparência, que alcançando todos os refúgios, torna o mundo mais desavergonhado e desnudo.
Para Sennet a autonomia implica em aceitar o que não se compreende no outro. A relação transparente é uma relação morta, ausente de atração e vivacidade.
Uma maior quantidade de informações não implica em decisões mais acertadas.  A intuição transcende as informações. O abandonar e o esquecer pode ser produtivo. A sociedade da transparência não tolera lapsos de informação e nem lapso visuais, sendo que o pensamento e a inspiração necessitam de um vazio.
A palavra felicidade, Gluck provém de oco, Lucke. Assim, uma sociedade que não admite qualquer negatividade do oco seria
uma sociedade sem felicidade. O amor sem lacuna do ver é pornografia, e sem oco ou lacuna no saber o pensamento decai em cálculo.
Segundo Walter Benjamin para a beleza é necessária uma interligação entre velamento e velado. O objeto é belo em seu véu. Não existe beleza desnuda. A nudez se torna sublime quando vai além do belo, e não é pornográfica.
Mas o capitalismo acentua a pornografização da sociedade, ao enfatizar a hipervisibilidade e expor tudo como mercadoria, não conhecendo outro uso da sexualidade.
Byung-Chul Han se refere à diferença entre erótico e pornográfico. A exposição direta da nudez não é erótica. O movimento erótico surge da cena do focar e desfocar, a negatividade concede brilho à nudez (Eros em Freud, e a agalma, brilho do desejo desenvolvido por Lacan a partir da leitura realizada do Banquete de Platão no Seminário "A transferência"). A positividade da exposição da nudez é pornográfica, pois não apresenta o brilho erótico. O corpo pornográfico é raso, não sofre interrupção, que criaria uma imprecisão semântica, sendo esta erótica. "Não existe erotismo da transparência". Ao desaparecer o mistério em prol da exposição e do desnudamento total do corpo, de sua imagem, começa a pornografia. O processo de pornografização do visual se realiza hoje como uma desculturalização. Estas imagens são diretas, tácteis e infectivas. São pós-hermenêuticas. Não provocam leituras, mas contaminações. A sociedade pornográfica é uma sociedade do espetáculo.
A sociedade positiva não é dialética e hermenêutica. A dialética repousa na negatividade, que nutre a vida do espírito segundo Hegel. Só se torna possível pousar no negativo se se demorar nele. O espírito é lento. O sistema da transparência elimina a negatividade a fim de se acelerar, para se precipitar em vertigem no positivo.
A sociedade positiva não admite qualquer sentimento negativo. Esquece-se como se lida com o sofrimento e a dor. Para Nietzsche a alma é profunda e grande ao se demorar no negativo. A alma em sua infelicidade acende a sua fortaleza, o suportar, perseverar, e interpretar a infelicidade. 
A sociedade positiva quer reorganizar a alma humana  de um modo novo, inclusive o amor no sentido positivo se torna um arranjo de sentimentos agradáveis sem consequências, em fórmulas de consumo e conformidade, o ferimento sempre deve ser evitado, como afirma Alain Badiou em Louvor do amor, chamando atenção aos sites de encontro de casais. Sofrimento e paixão são figuras da negatividade, e em seu lugar entram figuras psíquicas como esgotamento, cansaço e depressão, que remetem ao exagero da positividade.
A teoria em sentido enfático  é uma manifestação da negatividade. É um campo que tem limites, estabelece o que pertence e nao pertence a ela. É narrativa, e traça uma senda de distinção, tornando-se violenta. Separa o que está misturado. Sem a negatividade da distinção as coisas podem chegar à promiscuidade generalizada. A teoria se aproxima da cerimônia, separando o iniciado do não iniciado.
Byung-Chul Han diz que é um erro admitir que a massa positiva de dados e informações torne supérflua a teoria, que o nivelamento dos dados substitua os modelos. A teoria como negatividade se estabelece antes dos dados e informações positivas e dos modelos. A ciência positiva baseada em dados não é a causa, mas consequência do fim da teoria iminente. Não ocorre uma substituição da teoria pela ciência positiva, pois esta não possui a negatividade da decisão, que decide o que é e o que deve ser. A teoria como negatividade faz com que a realidade se manifeste cada vez de modo diferente de súbito, no qual aparece uma nova luz.
Afirma que a política é um agir estratégico, logo possui uma esfera oculta. Uma total transparência a paralisa. Segundo Carl Schmitt a política precisa de mais "coragem para o oculto", sendo o fim do mistério o fim da política.
Byung-Chul Han diz que o partido dos piratas, partido da transparência, faz avançar a pós-política, que se iguala a despolitização. "É um antipartido, o primeiro partido sem cor". A transparência não possui cor. Não há ideologias mas apenas opiniões sem ideologias. As opiniões nao geram consequências, não apresentam negatividade de repercussão. A sociedade de opinião não toca no que já existe. A liquid democracy só troca cores dependendo da situação e o partido dos piratas  é um partido de opinião sem cores.
A política dá espaço à violência das necessidades sociais, que deixa intocáveis as relações socioeconômicas já existentes. O partido dos piratas  não tem condições de articular uma vontade política e produzir novas coordenadas sociais.
A coerção por transparência estabiliza o sistema existente. A transparência é positiva em si. Não há dentro dela qualquer negatividade que possa questionar o sistema político-econômico vigente. Está cega ao exterior do sistema, confirma e otimiza o que já existe. Logo a sociedadeda transparência caminha junto com a pós- política. "Totalmente transparente só pode ser o espaço despolitizado". 
O veredicto da sociedade positiva é "me agrada". O Facebook nega a introdução de um emotion de dislike, pois a negatividade paralisa a comunicação e prejudica o valor econômico. O que vale é a quantidade e velocidade das informações, elevando assim o valor da mercadoria.
Transparência e verdade não são iguais. A verdade é uma negatividade que se põe e impõe declarando tudo o mais como falso. Informações não produzem verdade, pois nao apresentam direção, saber, e sentido. "É precisamente em virtude da falta de negatividade do verdadeiro que se dá a proliferação e massificação do positivo".  A hipercomunicação e hiperinformação geram à falta de verdade, a falta de ser. A falta de precisão do todo é intensificada.

No Seminário "A transferência" Lacan afirma;
"É próprio das verdades  nunca se mostrarem por inteiro. Em suma, as verdades são sólidos de uma opacidade bastante pérfida. Elas sequer têm, ao que parece, essa propriedade que somos capazes de realizar nos sólidos, a transparência; elas não mostram ao mesmo tempo suas arestas anteriores e posteriores. É preciso que se lhes dê a volta, e diria mesmo, é preciso o passe de mágica".
(Lacan, 1961).

Bibliografia 

Han, Byung-Chul. Sociedade da transparência. RJ: Vozes, 2017.

Lacan, J. A transferência. RJ: Jorge Zahar Ed., 1992.

 

Enviado do meu smartphone Samsung Galaxy.

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Algumas palavras sobre Coringa

                                    
Coringa (Joker), filme de 2019, dirigido por Todd Phillips, estrelado por Joaquin Phoenix


O anti-herói é herói. Reação à agressão pela agressão. Ao bullying, ao abuso, ao Gozo do Outro pela morte do outro e do Outro. Matar...Exterminar os idiotas. Uma identificação ao anti-herói na sociedade atual. O povo usa a máscara do Coringa como na série A Casa de Papel. O povo clama a reação pela violência. Não há escuta nem espaço para a palavra. Somente a eliminação do inimigo, do explorador, é a solução dada. Denúncia da sociedade atual. Desestruturação e psicose familiar. Coringa em vez de ter tido a possibilidade do processo de separação da mãe adotiva, a mata. A morte simbólica não tem espaço e sim o Real bruto de passagem ao ato. Uma criança explorada e maltratada. Questiona e aniquila o tratamento psiquiátrico. O menino Batman presencia a violência aos pais, poder sem saber, resultado da exploração econômica. Os meios de comunicação de moral demagógica também são assassinados. O que resta? Pegadas de sangue no chão. Os traços de sangue, as marcas de sangue da memória inconsciente...

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

O Grande Circo Místico


O Grande Circo Místico – O gozo místico de Lacan

Filme de Cacá Diegues, baseado no poema de Jorge de Lima, narra a história de cinco gerações de uma mesma família circense, desde a inauguração do Grande Circo Místico em 1910 até os tempos atuais, onde os amores desta família são mostrados a partir de uma época farta até a sua decadência econômica familiar na atualidade. Amor, paixão entre os personagens, que retratam o sempre presente amor ao circo, onde os homens da família e o marcante mestre de cerimônias lutam pela sobrevivência desse fabuloso espetáculo.
O gozo está presente desde o início do filme através de paixões exacerbadas, trazendo temas de virgindade, maternidade, paixão, adultério, droga, loucura, morte. As mulheres gozam pelo olhar, objeto a, pelo voo libertário e ao mesmo tempo mortal, pela dança que busca o infinito, pelo gozo da carne, pela marca na carne, pelo voar dos anjos.
“O grande circo místico” de Cacá Diegues, pode ser pensado pela temática do gozo desenvolvida por Lacan. É uma versão cinematográfica que se aproxima ao gozo místico apresentado por Lacan no Seminário 20, “Mais, ainda” (Encore), gozo que está mais além. Santa Teresa de Ávila em escultura de Bernini goza. O êxtase de Santa Teresa representa a sua experiência mística, êxtase fora da linguagem, onde nada se pode dizer.
Na Idade Média duas concepções de amor estão presentes. A concepção física e a concepção extática. Na concepção física (physis), desenvolvida por São Tomás de Aquino e Aristóteles, a busca é do Bem em Aristóteles, e de Deus em São Tomás de Aquino. Já na concepção extática do amor a razão desaparece, sendo o amor relatado pelos místicos. No êxtase a ação está fora de si. O amor é dual, violento, irracional. A harmonia do amor físico é o oposto ao amor extático. O sujeito perde a sua alma, sendo que o amor pode ser mortal. É um gozo para além do princípio do prazer.
No Seminário 20, nas fórmulas da sexuação, Lacan situa o gozo místico do lado feminino, um gozo fora do significante. Santa Teresa de Ávila mostra que “falar é impossível” sobre este gozo.

Referência bibliográfica:
Lacan, J.  Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1985.
Quinet, A. Teoria e clínica da psicose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.