Os complexos familiares em Lacan:
complexos de desmame e de intrusão
Rosa Jeni Matz
Texto de Lacan de 1938, Os complexos familiares na formação do indivíduo, apresenta temas
pertinentes ao início da vida psíquica. Lacan apresenta o complexo do desmame, trazendo curiosas contribuições. O complexo de desmame, o mais primitivo do
desenvolvimento psíquico, representa a forma primordial da imago materna
(representação inconsciente mental), fixando a relação de amamentação no
psiquismo, sob o modo parasitário, devido às exigências das necessidades dos
primeiros meses de vida do homem, e funda os sentimentos mais arcaicos e mais
estáveis que unem o indivíduo à família. É radicalmente diferente dos
instintos, pois é dominado por fatores culturais, embora se aproxime dos
instintos, por duas características: apresenta-se em toda espécie humana, sendo
genérico; e pela lactação, representando no psiquismo uma função biológica.
Mas, é a relação cultural que condiciona o desmame no homem, enquanto nos
animais o instinto materno pára de agir quando o fim da amamentação é
completado. Muitas vezes o desmame pode ser um trauma psíquico, gerando
efeitos, como nas anorexias nervosas, nas toxicomanias pela boca, nas neuroses
gástricas. Traumatizante ou não, o desmame deixa no psiquismo humano a marca da
relação biológica que ele interrompe. Essa tensão vital é acompanhada por uma
crise do psiquismo, a primeira cuja solução tem uma estrutura dialética. Uma
tensão vital resolve-se numa intenção mental, que conduz a aceitação ou não do
desmame, intenção elementar que não pode ser atribuída a um eu ainda em estado
rudimentar. A aceitação ou a recusa não pode ser considerada uma escolha, pois não
há ainda um eu para que haja uma afirmação ou negação, e não há contradição,
pólos coexistentes e contrários determinam uma atitude ambivalente. Essa
ambivalência se resolverá na continuidade do processo dialético, sofrendo
destinos diversos.
É a recusa do desmame que funda o positivo do
complexo, pois tende a restabelecer a imago da relação de amamentação. O
conteúdo dessa imago é dado pelas sensações precoces, mas só adquire forma
quando há uma organização mental posterior. Esta etapa é anterior ao advento da
forma do objeto, logo estes conteúdos não podem ser representados na
consciência, mas surgem como possíveis moldes das experiências psíquicas
posteriores. As sensações exteroceptivas, proprioceptivas, e interoceptivas,
ainda não estão (depois do décimo segundo mês) suficientemente coordenadas para
que ocorra o reconhecimento do corpo próprio, como também, da idéia do que lhe
é externo. Mas, algumas sensações exteroceptivas são isoladas como unidades de
percepção no início da vida psíquica. São elementos de objetos que correspondem
aos primeiros interesses afetivos. A reação de interesse manifestada pela
criança diante do rosto humano é muito precoce, desde os primeiros dias, e
antes que as coordenações motoras dos olhos estejam concluídas, sendo um fato
estrutural. As psicoses reativam a máscara humana de modo inefável, trazendo o
arcaísmo de sua significação.
Muito cedo a criança percebe a presença da
função materna, sendo que a substituição dessa presença poderá causar danos
futuros. A criança apegada ao seio adquire uma satisfação que surge como sinal
da máxima plenitude com que pode se satisfazer o desejo humano. As sensações
proprioceptivas da sucção e da preensão constituem a base da ambivalência do
vivenciado: o ser que absorve é todo absorvido, e o complexo arcaico encontra
correspondência no abraço materno. Lacan não fala aí em autoerotismo, como
Freud, uma vez que o eu não está constituído, nem de narcisismo, já que não há
uma imagem do eu, e nem de erotismo oral, pois a nostalgia do seio nutriente,
equívoco da escola psicanalítica, só decorre do complexo de desmame após o seu
remanejamento pelo complexo de Édipo. A relação com a realidade em que se
baseia a imago materna é de “canibalismo”, canibalismo fusional, inefável,
simultaneamente ativo e passivo, sobrevivendo nos jogos e palavras simbólicas,
que no mais evoluído amor, recordam “o desejo de larva”.
Essa base não pode ser desligada do caos das
sensações interoceptivas de que emerge. A angústia,
cujo protótipo surge na asfixia do nascimento, o frio ligado à nudez dos tegumentos, e o “mal-estar labiríntico” para o qual corresponde a satisfação de ser
embalado (o acalanto), organizam nesta tríade o tom penoso da vida orgânica,
que domina os seis primeiros meses de vida humana, sendo que todos estes
mal-estares têm a mesma causa: uma “adaptação” insuficiente à ruptura das
condições de ambiente e alimento da vida parasitária intra-uterina.
Devido a dados da fisiologia e da realidade
anatômica da não-mielinização dos centros nervosos superiores do recém-nascido
(mielinização=formação da baínha mielínica dos nervos durante os primeiros
tempos de vida) é impossível fazer do nascimento um trauma psíquico, como
alguns psicanalistas afirmam. O atraso na dentição e na marcha, como também na
maioria dos aparelhos e funções, determina na criança uma impotência vital
total que perdura além dos dois primeiros anos, caráter de exceção em relação
aos animais, sendo o homem, então, um animal de nascimento prematuro.
A imago do seio materno domina toda a vida
humana. No aleitamento, no abraço e na contemplação da criança, a mãe recebe e
satisfaz o mais primitivo de todos os desejos. E, a tolerância da dor do parto
pode ser compreendida como uma compensação representativa do primeiro dos
fenômenos afetivos a surgir: “a angústia que nasce com a vida”.
Lacan afirma: “Somente a imago que imprime
nas profundezas do psiquismo o desmame congênito do homem é capaz de explicar a
potência, a riqueza e a duração do sentimento materno. A realização dessa imago
na consciência assegura à mulher uma satisfação psíquica privilegiada, enquanto
seus efeitos na conduta da mãe poupam a criança do abandono que lhe seria
fatal”.
A imago materna é de difícil sublimação, mas
deve ser sublimada para que novas relações se introduzam com o grupo social, e
se isto não ocorrer, o que é salutar na origem se torna fator de morte. A
tendência à morte é vivida pelo homem como objeto de um apetite. Mas, Lacan
assinala que Freud a tentou explicar através de uma contradição em seus termos,
instinto de morte, cedendo ao
preconceito do biólogo, que relaciona tendência a instinto. Lacan diz que a
tendência para a morte, que especifica o psiquismo humano, se explica pela
razão de que o complexo, unidade funcional do psiquismo, não corresponde a
funções vitais, mas à insuficiência congênita dessas funções vitais. Essa
tendência psíquica para a morte, sob a forma dada pelo desmame, revela-se nos
suicídios “não violentos”, evidenciando a forma oral do complexo: “a greve de
fome da anorexia nervosa, o envenenamento lento de certas toxicomanias pela
boca, o regime de fome das neuroses gástricas”. A análises desses casos mostra,
que em seu abandono à morte, há uma busca do sujeito para o reencontro da imago
da mãe.
O abandono das garantias da economia familiar
repete o desmame, e somente nesta ocasião, muitas vezes, que o complexo é
liquidado. Hegel afirma que o indivíduo que não luta pelo seu reconhecimento
fora do grupo familiar nunca atinge a personalidade antes da morte. “A
saturação do complexo funda o sentimento materno; sua sublimação contribui para
o sentimento familiar”; sua liquidação deixa vestígios para o reconhecimento da
imago materna. A sua forma abstrata poderia ser definida como “uma assimilação
perfeita da totalidade do ser”, fórmula “meio filosófica” que faz aparecer as
nostalgias da humanidade: “a miragem metafísica da harmonia universal, o abismo
místico da fusão afetiva, a utopia social de uma tutela totalitária”.
O segundo complexo apresentado no texto é o complexo de intrusão que representa a
experiência que a criança realiza quando se reconhece entre irmãos. As
condições dessa experiência são variáveis conforme as culturas, extensão do
grupo familiar, e conforme o lugar que o acaso confere ao sujeito na ordem de
nascimento: a de abastado ou a de usurpador. O ciúme (jalousie) infantil é observado neste período, e Lacan se remete à
citação de Santo Agostinho: “Vi com meus próprios olhos, e observei bem um
menino tomado de ciúme: ele ainda não falava, mas não conseguia desviar os
olhos, sem empalidecer, do amargo espetáculo de seu irmão de leite”
(Confissões, I, VII). A estrutura do ciúme infantil esclarece seu papel na
gênese da sociabilidade, e do conhecimento humano. O ciúme representa não uma
rivalidade vital, mas uma identificação mental. Em crianças entre seis meses e
dois anos, confrontados aos pares e sem terceiros, há uma comunicação, que
parece reações de rivalidade, como adaptações de posturas e gestos, ocorrendo
conformidade em sua alternância, como provocações e respostas, onde se esboça o
reconhecimento de um rival, de um “outro” como objeto. Essa reação, que pode
parecer precoce, é determinada por uma condição dominante, um limite que não
pode ser ultrapassado na distância etária entre os sujeitos, distância de dois
meses e meio no primeiro ano do período considerado, e permanece estrito ao se
ampliar. As reações mais freqüentes são as da exibição, da sedução e do
despotismo. O que se observa não é um conflito entre dois indivíduos, mas um
conflito entre duas atitudes opostas e complementares. Cada parceiro confunde a
pátria do outro com a sua e se identifica com o outro. Nesse estágio a
identificação específica é baseada num sentimento do outro como imaginário. A
imagem do outro aí está ligada à estrutura do corpo próprio.
Na situação fraterna primitiva a agressividade se mostra
secundária à identificação. A amamentação é para a criança uma neutralização
temporária das condições de luta pelo alimento, opondo-se Lacan à idéia
darwiniana de que a luta está na origem da vida. O aparecimento do ciúme
relacionado com a amamentação, apresentado pela citação de Santo Agostinho,
dever ser interpretado prudentemente, pois esta cena pode se apresentar ao
sujeito desmamado há muito tempo que não concorre com o irmão, sendo que este
fenômeno exige uma identificação com o estado do irmão. Em outros trabalhos,
Lacan se refere a esta cena como uma imagem de completude, onde o sujeito que a
observa se vê excluído, uma visão totalizante, imaginária, onde o sujeito já
esteve neste lugar. A agressividade se sustenta então numa identificação com o
outro que é objeto da violência (a agressividade não é primária, é secundária).
Lacan aponta no mal-estar do desmame humano, a
origem do desejo de morte, sendo que o masoquismo primário é o momento
dialético em que o sujeito assume, por seus primeiros atos lúdicos, a
reprodução desse mal-estar, e assim o sublima e o supera (jogo do fort-da de
Freud). O sujeito inflige a si mesmo o desmame que sofreu, só que agora triunfa
sobre ele, sendo ativo em sua reprodução. A identificação com o irmão fornece a
imagem que fixa um dos pólos do masoquismo primário, gerando a violência
imaginária do assassinato do irmão, não tendo relação com a luta pela vida. A
saída masoquista se situa no ponto de junção entre o imaginário e o simbólico.
Freud isolou este masoquismo num jogo de infância, numa criança de dezoito
meses. O objeto escolhido, chocalho ou dejeto, ou o carretel em Freud é abolido
com prazer, consumando a perda do objeto materno. A imagem do irmão não
desmamado só desperta uma agressão por repetir no sujeito a imago da situação
materna e com ela o desejo da morte.
A identificação aí citada se refere ao
estádio do espelho, que corresponde ao declínio do desmame, ao fim dos seis
meses, cuja dominante psíquica é de mal-estar devido ao atraso do crescimento
físico, pela prematuração do nascimento, que é a base específica do desmame no
homem. O reconhecimento pelo sujeito de sua imagem no espelho é um fenômeno
significativo, surge depois dos seis meses e demonstra a realidade desse
sujeito, seu valor afetivo é ilusório, quanto a sua imagem, e sua estrutura é o
reflexo da forma humana. A percepção da forma do semelhante como unidade mental
está ligada a um nível de sociabilidade e inteligência. Neste estágio a
discordância tanto das pulsões e das funções é ainda a continuação prolongada
da descoordenação dos aparelhos. Daí resulta uma fase que afetiva e mentalmente
constitui-se com base numa proprioceptividade que apresenta o corpo como
despedaçado, visando uma recolocação do corpo próprio, e a realidade
inicialmente submetida a um despedaçamento perceptivo ordena-se refletindo as
formas do corpo, que fornecem o modelo de todos os objetos. Há aí uma estrutura
arcaica do mundo humano que surge através da análise do inconsciente humano,
como as fantasias de desmembramento, de desarticulação do corpo, da imagem do
duplo. O restabelecimento da imagem perdida de si mesmo instala-se desde a
origem no centro da consciência. É a origem da energia do progresso mental,
predominando as funções visuais. A busca da unidade afetiva promove as formas
em que o sujeito representa a sua identidade para si mesmo, sendo que a forma
mais intuitiva é dada pela imagem especular. O sujeito saúda a unidade mental,
reconhece nela o ideal da imago do duplo, e aclama a vitória da imagem salutar.
O mundo próprio dessa fase é narcísico, não apenas pelo sentido atribuído por
Freud e Abraham, do investimento enérgico da libido no corpo, mas também, como
uma estrutura mental que inclui o mito de Narciso, que indica a morte, como
insuficiência vital para quem veio a esse mundo; surge a reflexão especular, a
imago do duplo central, e a ilusão da imagem, indicando que este mundo não
contém o outro.
A percepção da atividade de outrem não é
bastante para romper o isolamento afetivo do sujeito. A imagem do semelhante
desempenha apenas um papel primário, limitado à função de expressividade, ela
desencadeia no sujeito emoções e posturas similares, permitida pela estrutura
atual de seus aparelhos. O sujeito ao se sofrer essa sugestão motora ou
emocional não se distingue da imagem em si, a imagem só acrescenta a
intromissão temporária de uma imagem estrangeira, chamada de intrusão
narcísica, que, no entanto, contribuirá pela unidade introduzida pelas
tendências na formação do eu. Mas, antes que o eu afirme a sua identidade, ele
se confunde com essa imagem que o forma, mas que o aliena. Aí se dá a estrutura
ambígua do espetáculo, através de situações de despotismo, sedução e exibição,
dando forma às pulsões sadomasoquista e escopofílicas (desejo de ver e ser
visto), que são destruidoras do outro. Essa intrusão primordial permite
compreender a projeção do eu constituído, que se manifesta como mitomaníaca
(tendência mórbida para a mentira), na criança cuja identificação pessoal ainda
vacila; transitivista, no paranóico cujo eu regride a um estágio arcaico; e
compreensiva, quando é integrada num eu normal.
O eu se constitui junto com o outro no drama
do ciúme. Esta é uma discordância que intervém na satisfação espetacular.
Implica a introdução de um objeto terceiro, que irá substituir a confusão
afetiva e a ambigüidade espetacular pela concorrência de uma situação
triangular. O sujeito que enveredou pelo ciúme por identificação, desemboca
numa nova alternativa onde é jogado o destino da realidade. Ou ele reencontra o
objeto materno e se prende à recusa do real e à destruição do outro, ou é
levado a algum outro objeto, acolhe-o sob a forma de conhecimento humano como
objeto comunicável, já que a concorrência implica em rivalidade e concordância,
reconhecendo o outro com quem trava a luta ou firma o contrato, encontrando o
outro e o objeto socializado. O ciúme humano se distingue da rivalidade vital
imediata, revelando-se o arquétipo dos sentimentos sociais.
O eu não encontra antes dos três anos a sua
constituição essencial.
Os traços essenciais do complexo fraterno
são: o papel traumatizante do irmão que se constitui por intrusão, o fato e a
época do seu aparecimento determinam a sua significação para o sujeito, a
intrusão parte do recém-chegado e infesta o ocupante, sendo que o primogênito
desempenha em princípio o papel de paciente. A reação do paciente ao trauma
depende do seu desenvolvimento psíquico. Surpreendido pelo intruso no
desarvoramento (desorientação) do desmame, o paciente o reativa sem parar ante
o espetáculo deste, faz uma regressão, que de acordo com os destinos do eu,
pode se revelar uma psicose esquizofrênica ou uma neurose hipocondríaca, ou
então, reage pela destruição imaginária do monstro, resultando em impulsos perversos
ou numa culpa obsessiva.
Mas, se o intruso sobrevier apenas após o
complexo de Édipo, será adotado no plano das identificações parentais, não
sendo para o sujeito obstáculo ou o reflexo, mas uma pessoa digna de amor e de
ódio. As pulsões agressivas se sublimarão como ternura ou severidade.
O irmão também pode proporcionar o modelo arcaico do
eu. O papel do agente cabe aqui ao primogênito, e quanto mais conforme for este
modelo ao conjunto das pulsões do sujeito, mais feliz será a síntese do eu. É
através do semelhante que o objeto, como também o eu se realiza, quanto mais
pode assimilar de seu parceiro, melhor será a sua eficácia futura. Mas, também,
o grupo de fratria familiar pode favorecer as mais discordantes identificações
do eu. A paranóia manifesta temas de filiação, usurpação e espoliação, sendo
que através da estrutura narcísica, temas paranóides de intrusão, do duplo, e
transformações delirantes do corpo são revelados. O grupo familiar, reduzido à
mãe e a fratria, desenha um complexo psíquico em que a realidade é imaginária,
possibilitando eclosões de psicoses, de delírio a dois. Assim, torna-se
essencial a introdução do terceiro para a constituição do sujeito em suas
relações sociais.
Bibliografia:
Lacan, J. Os complexos familiares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.