Liberdade em Psicanálise
Rosa Jeni Matz
O conceito de liberdade é pensado em vários campos do saber humano. Mas, em psicanálise, este tema é de difícil abordagem e muitas vezes evitado. Penso que o inconsciente se abre à liberdade. Escrevo neste ensaio sobre a possível e impossível aproximação do inconsciente à liberdade.
Freud, Lacan e Kant são os três vértices que orientam o percurso nesta caminhada. Freud, o inventor da psicanálise, Lacan que realizou uma leitura original de Freud, fornecendo importantes contribuições à psicanálise em sua obra, e Kant, filósofo, referência fundamental em questões teóricas desenvolvidas tanto por Freud como por Lacan.
Objetivos
Para Kant a vontade é uma espécie de causalidade dos seres racionais, e a liberdade seria a propriedade desta causalidade. Somente um ser racional tem a capacidade de agir conforme a representação das leis, segundo princípios, e só ele tem uma vontade. O homem apresenta a representação da lei em sua mente e é vontade. A causalidade como vontade está em relação com o conceito de lei.
Kant pensou a liberdade em conexão com a lei moral. Pretendo pensar a liberdade em psicanálise tendo como um dos fios condutores o conceito de liberdade de Kant. Percorreremos os seguintes tópicos:
- a relação do conceito de liberdade em Kant com o inconsciente em Freud e Lacan
- o conceito de determinismo do inconsciente freudiano refere-se ao conceito de fenômeno em Kant.
- o inconsciente, além da propriedade do determinismo, apresenta a liberdade segundo o paradigma kantiano da relação da liberdade com a lei moral.
Partiremos da hipótese de que para o inconsciente a liberdade é atributo do desejo em relação à lei.
Freud, o fundador da Psicanálise, aproxima-se de Kant, com a finalidade de pensar sobre o conceito de supereu. A liberdade em Kant é uma propriedade da vontade, implicando na ação por dever à lei, a lei do imperativo categórico. Em Freud, o supereu, como o ideal do eu, constitui modelo de lei. Em Lacan, o ideal do eu surge como uma lei, relacionada ao bem-dizer. Já o supereu, voz feroz, de gozo, impede a manifestação da liberdade do desejo. A lei instituída, pela operação da metáfora paterna, pelo recalque primário, abre o caminho para a liberdade se manter como ação desejante no inconsciente. O supereu, como expressão de gozo, cobre a lei paterna, a da identificação ao ideal do eu, gerando excessos, fazendo sombra sobre a ação da liberdade humana.
Tomando como base à teoria de Kant sobre a liberdade, podemos discutir e desenvolver o conceito de liberdade em psicanálise, através do númeno kantiano, realidade em si mesma, independente da relação com o fenômeno, objeto da experiência, que implica o determinismo do inconsciente.
Introdução
Freud e Lacan
Em 1923, na obra
O eu e o isso, Freud apresenta o supereu como a lei herdada pela criança no declínio do complexo de Édipo
, sendo edificado pela interiorização das exigências e interdições parentais. Segundo Freud, o caráter compulsivo do supereu se manifesta pelo imperativo categórico: “você deveria ser assim (como o seu pai)”, “você não pode fazer tudo que ele faz...”
. A criança ao renunciar à satisfação de seus desejos edipianos interditados pelo pai, identifica-se com o pai, introjetando esta interdição, que se torna lei.
Em 1924, em
O problema econômico do masoquismo, Freud afirma: “O superego – a consciência em ação no ego – pode então se tornar dura, cruel e inexorável contra o ego que está a seu cargo. O Imperativo Categórico de Kant, é, assim, o herdeiro direto do complexo de Édipo”
. O supereu é nomeado como imperativo categórico, e o complexo de Édipo mostra ser a fonte do senso ético individual e da moralidade. A lei, o imperativo categórico, tem valor universal, sentença que tem como base o dever, portanto incondicional.
Em
O eu e o isso, o ideal do eu é apresentado por Freud como sinônimo do supereu, como a única instância que reúne as funções de interdição e de ideal. Mas, em alguns textos freudianos, a função do ideal de eu é apresentada como uma instância diferenciada ou uma subestrutura do supereu. Em a
Psicologia de grupo e a análise do ego, 1921, o ideal do eu é uma formação que explica a fascinação amorosa, a relação com o hipnotizador, e a submissão ao líder, sendo este colocado pelo sujeito no lugar do seu ideal do eu, tornando-se o modelo de identificação.
Em Lacan, o ideal de eu se destaca, tornando-se um conceito fundamental para a compreensão do complexo de Édipo, que é desenvolvido em três tempos. No primeiro tempo do Édipo, a criança está numa relação de indistinção com a mãe, identificando-se com o que supõe ser o objeto de desejo da mãe. Neste primeiro tempo do Édipo a criança é assujeitada ao desejo da mãe, tornando-se alienada na dialética do ser: “to be or not to be” o objeto do desejo da mãe.
Esta oscilação anuncia o segundo tempo do Édipo, que começa com a inclusão paterna na relação mãe-criança. A criança é introduzida ao registro da castração através da dimensão paterna, e descobre que o desejo da mãe também é submetido à lei do desejo do Outro, remetendo-se à questão de ter ou não o falo. A criança, abalada de sua certeza de ser o falo da mãe, é forçada pela função paterna não somente a não ser o falo, mas também de não tê-lo, assim como a mãe.
O terceiro tempo do Édipo finaliza a rivalidade fálica pai-mãe-criança, instalando o tempo da simbolização da lei. O pai, ao ser investido do atributo fálico, o que tem o falo, insere o desejo da mãe no lugar exato. A criança abandona a problemática do ser, aceitando negociar a problemática do ter. Tanto ela, como a mãe, não tem o falo, logo se dirigem para aquele que o tem, o pai. A dialética do ter convoca o jogo das identificações. O menino, ao renunciar a ser o falo materno, identifica-se com o pai que supostamente tem o falo. A menina renuncia à posição de objeto de desejo materno ao se deparar com a lógica de não ter o falo, identificando-se com a mãe, e ao saber onde está o falo, pode ir buscá-lo do lado do pai, junto àquele que o tem.
Lacan enuncia em As formações do inconsciente:
Em primeiro lugar, a instância paterna se introduz de uma forma velada, ou que ainda não aparece. Isso não impede que o pai exista na realidade mundana, ou seja, no mundo, em virtude de neste reinar a lei do símbolo. Por causa disso, a questão do falo já está colocada em algum lugar da mãe, onde a criança tem de situá-la.
Em segundo lugar, o pai se afirma em sua presença privadora, como aquele que é o suporte da lei, e isso já não é feito de maneira velada, porém de um modo mediado pela mãe, que é quem o instaura como aquele que lhe faz a lei.
Em terceiro lugar, o pai se revela como aquele que tem. É a saída do complexo de Édipo. Essa saída é favorável na medida em que a identificação com o pai é feita nesse terceiro tempo, no qual ele intervém como aquele que tem o falo. Essa identificação chama-se Ideal do eu .
Lacan afirma que “o pai é no Outro, o significante que representa a existência do lugar da cadeia significante como lei”
. O terceiro tempo do complexo de Édipo é assim transposto, como etapa da identificação, da instauração do ideal do eu.
A metáfora paterna pode ser ilustrada com o jogo do
fort-da freudiano, onde ao jogar o carretel amarrado num cordão, a criança simboliza a presença e ausência da mãe, tendo acesso ao simbólico. A criança se torna mestre da ausência devido à identificação, conseguindo aceitar o fato de que não é mais o exclusivo objeto de desejo da mãe, o objeto que preenche a falta do Outro, o falo. O recalque originário é estruturante, sendo uma metaforização. É a simbolização primordial da lei, efetuada na substituição do significante fálico pelo significante Nome-do-Pai. A criança substitui a posição de ser o único objeto do desejo da mãe, o falo, para a dimensão do ter. É a passagem para a posição de sujeito. O advento do sujeito implica numa operação inaugural de linguagem, simbólica, onde a criança renuncia ao objeto fálico; sendo que o significante fálico, significante do desejo da mãe, é recalcado. Como Lacan afirma “não há sujeito se não houver um significante que o funde”
. O sujeito é efeito do significante.
O recalque originário é a intervenção intrapsíquica que assegura a simbolização do real pela linguagem. O processo metafórico é a introdução de um novo significante, o Nome-do-Pai, que substitui o significante antigo, significante do desejo da mãe, que passa sob a barra de significação, mantendo-se inconsciente. O Nome-do-Pai designa uma função simbólica que ele representa, de exercício de lei. A função do Nome-do-Pai se refere à
proibição do incesto. O significante do desejo da mãe é recalcado e se torna
inconsciente. A proibição do incesto se torna lei universal, imperativo da
cultura.
O processo de identificação do
sujeito instaura um novo significante, o Nome-do-Pai, significante que
posiciona o ideal do eu do sujeito, fundamentando a lei, instalando, através do
processo do recalque, o inconsciente do sujeito, que se torna lugar do desejo
inconsciente.
Freud e o determinismo
Freud libertou as histéricas de seus sintomas, e através da
descoberta da sexualidade infantil, libertou o mundo de mistérios e
preconceitos concernentes à sexualidade humana.
Pensar a liberdade é
se aproximar da liberdade como “objeto” incorpóreo de pensamento. Ao se inserir
uma crase a frase se transforma, tornando-se “pensar à liberdade”, o pensar nos
conduzindo à liberdade. Lacan situa o “penso”, num momento de seu ensino, a
partir da afirmação de Descartes no Cogito, “penso, logo sou”, como o
lugar da cadeia significante, sendo o sujeito efeito do significante, sujeito
do inconsciente, que ao surgir gera espanto para a consciência, ocasião de
liberdade. No mesmo tecido, no intervalo da cadeia significante, situa-se o
desejo, potência libertadora, que desliza através da cadeia significante,
respondendo às leis da linguagem.
O determinismo
inconsciente discutido por Freud, tornou-se uma barreira para pensar a
liberdade no inconsciente. Não pretendo destituir a validade universal do
determinismo inconsciente, mas pretendo mostrar que paralelamente ao
determinismo inconsciente, em outra dimensão, há a liberdade inconsciente,
sendo que em muitos momentos na história da psicanálise, a liberdade não foi
tema de interesse em sua teoria devido a preconceitos. O conceito de liberdade,
afastado da psicanálise, é um pré-conceito de alguns psicanalistas.
Em filosofia o determinismo, como princípio
universal, afirma que os fenômenos da natureza são regidos por leis, sendo
condição da possibilidade da ciência. Os fenômenos naturais ligam-se uns aos
outros por relações invariáveis ou leis. Laplace afirma que o conhecimento do
estado do universo num momento dado e o conhecimento das leis da mecânica
possibilitam prever rigorosamente os estados futuros, pois não há independência
das séries causais: "Devemos considerar o estado presente do universo como
o efeito do seu estado anterior e como a causa daquilo que vai seguir-se”
.
Freud valida a psicanálise como teoria
científica, utilizando o conceito de determinismo, que é condição de
possibilidade de ciência, e assim a torna aceitável na Europa em que vivia,
onde o primado do modelo científico, inaugurado por Galileu e Descartes,
imperava.
No último capítulo da
Psicopatologia da
vida cotidiana, em 1901,
faz referência a um determinismo inconsciente que rege de modo absoluto a vida
consciente:
Certas
falhas em nosso funcionamento psíquico e certos desempenhos aparentemente
involuntários, provam, se a eles são aplicados os métodos da investigação
psicanalítica, que têm motivos válidos e que são determinados por motivos
desconhecidos para a consciência.
Analisando números e nomes, escolhidos de
maneira aparentemente arbitrária, que surgem no pensamento consciente, Freud
assinala:
Nada
na mente é arbitrário ou indeterminado...Muitas pessoas, como sabemos,
contestam a suposição de um determinismo psíquico completo, recorrendo a um
sentimento especial de convicção de que existe um livre arbítrio. Esse
sentimento de convicção existe; e não cede nem diante da crença no
determinismo. Como todo sentimento normal, deve ter algo que o justifique. Pelo
que posso observar, porém, ele não se manifesta nas grandes e importantes
decisões da vontade: nessas ocasiões temos antes um sentimento de compulsão
psíquica, e gostamos de poder recorrer a ele. (“Estou aqui, não tenho outra
escolha”) [afirmação de Lutero na Dieta De Worms] Por outro lado, é exatamente
tendo em vista as decisões indiferentes e pouco importantes que gostaríamos de
assegurar que também podíamos ter agido de outra maneira: que agimos com nosso
livre – não motivado – arbítrio. De acordo com as nossas análises, não é
necessário contestar o direito do sentimento de convicção de que existe um
livre arbítrio. Se levarmos em conta a distinção entre motivação consciente e
inconsciente, nosso sentimento de convicção nos informa que a motivação
consciente não abrange todas nossas decisões motoras. De minimus non curat lex. Mas aquilo que um lado liberta recebe
sua motivação do outro lado, do inconsciente; e dessa maneira a
determinação na esfera psíquica, ainda assim, realiza-se sem qualquer lacuna
(itálicos meus).
Freud não
contesta o sentimento de convicção da existência do livre arbítrio na
consciência, mas afirma que o lado que liberta recebe sua motivação do
inconsciente. Freud destaca o lado que liberta, embora se refira a uma
motivação, a uma causa inconsciente, ao determinismo inconsciente. Também se
refere à compulsão psíquica, ao gozo inconsciente.
Prosseguindo,
para o supersticioso, que desconhece o motivo de seus atos casuais e as
parapraxias, tendo a crença em acontecimentos acidentais psíquicos, Freud
enuncia que o acaso existiria no mundo material, e não no mundo psíquico:
“Acredito no acaso (real) externo, sem dúvida, mas não em eventos acidentais
(psíquicos) internos”
.
Afirma que a pessoa supersticiosa projeta para fora uma motivação que ele
buscaria dentro: “Já que a pessoa supersticiosa nada sabe da motivação de seus
próprios atos casuais, e já que o fato dessa motivação esforça-se por um lugar
no campo do reconhecimento da pessoa, esta se vê forçada a localizá-lo, por
deslocamento, no mundo externo”
.
Freud utiliza o termo fenômeno na conclusão deste texto: “
os
fenômenos podem ser reportados a um material psíquico incompletamente
suprimido, o qual, apesar de repelido pela consciência, ainda assim não teve
roubado toda a sua capacidade de se exprimir”.
Octave Mannoni realiza uma interessante crítica à teoria do determinismo
de Freud, em sua obra
Freud: uma biografia ilustrada,
afirmando que a teoria do determinismo de Freud “não é muito elaborada”, sendo
que para Freud “é suficiente que se possa mostrar que os atos que atribuímos ao
acaso ou ao livre-arbítrio obedecem de fato a mecanismos inconscientes”; e que
Freud “se esquiva das dificuldades metapsíquicas, que não o interessam”, sendo
que “acreditar no determinismo é acreditar, no fundo, que
tudo tem direito a
uma interpretação”
(itálicos meus).
Esta crítica de Mannoni sobre a onipotência da interpretação aponta para
o campo do real lacaniano, o impossível, separado da linguagem, campo de uma
causalidade, que em alguns aspectos se aproxima do númeno, da coisa em
si de Kant, diferente da causalidade do fenômeno, da ciência. O inconsciente
começa a se abrir à liberdade.
Kant, o determinismo e a coisa em si.
Na
filosofia de Kant o determinismo abandona a metafísica, fazendo parte da
legislação que a razão impõe as coisas para conhecê-las. Kant não opõe
determinismo e liberdade, pois afirma que o determinismo pertence à ordem dos
fenômenos, enquanto a liberdade pertence à ordem do
númeno, a coisa em si. O fenômeno designa o objeto de nossa
experiência, sendo definido como “um composto daquilo que recebemos das
impressões e daquilo que nossa própria faculdade de conhecer tira de si mesma”
.
A matéria do fenômeno é a sensação, sendo que a forma é o modo como ela é
ordenada pela nossa razão. O fenômeno não é ilusório, sendo fundamento do conhecimento,
e o objeto sensível é objeto da experiência. Para Kant, a diferença entre
fenômeno e o
númeno permite resolver
a antinomia de determinismo e liberdade. O homem, como fenômeno, é determinado
no
tempo pelas leis da causalidade, e como
númeno, o homem
permanece livre, não se determinando
por essas mesmas leis.
Númeno vem do grego, tendo o significado do que
é apreendido pelo pensamento, e na filosofia de Kant, designa a realidade
considerada em si mesma, coisa em si, independente da relação de conhecimento,
podendo ser apenas pensada e não conhecida. Embora possa ser pensado,
é um objeto incognoscível. Pode ser considerado como “causa” externa
da possibilidade do conhecimento.
Crítica da Razão Pura
Em a
Crítica
da Razão Pura, a
primeira edição publicada em 1781, Kant afirma que não podemos conhecer nenhum
objeto como coisa em si mesma, mas somente como fenômeno; logo restringindo
todo o possível conhecimento aos objetos da experiência. Todavia ressalva que, se não podemos
conhecer esses mesmos objetos como
coisas em si mesmas, podemos pelo menos
pensá-
los. Para
conhecer um objeto é necessário provar a sua possibilidade, pelo
testemunho da experiência a partir da sua realidade, e anteriormente,
a priori pelo entendimento, que fornece
as possibilidades do sujeito para o conhecimento.
A crítica, para Kant, ensina a tomar o objeto
numa dupla significação, como fenômeno ou como coisa em si
mesma. O princípio de causalidade incide sobre o objeto tomado no primeiro
sentido, como fenômeno, onde a vontade pode ser pensada conforme a lei natural,
sendo não-livre. Mas, também, o objeto pode ser pensado enquanto pertencente à
coisa em si mesma, não submetido à lei natural, logo livre, não ocorrendo
contradição. Kant diz que não podemos
conhecer a alma mediante a razão especulativa, e muito menos
empiricamente, e nem a liberdade, mas se pode pensar a alma e a
liberdade.
Ao estudar a sucessão temporal (tempo e
espaço para Kant são formas da intuição sensível, condições da existência das
coisas como fenômenos), Kant afirma que “todas as mudanças acontecem segundo o
princípio da ligação de causa e efeito”
,
mas enuncia na
Antinomia da Razão Pura,
a tese de que “a causalidade segundo as
leis da natureza não é a única de onde podem ser derivados os fenômenos do
mundo no seu conjunto. Há ainda uma causalidade pela liberdade que é necessário
admitir para os explicar”
.
Afirma que “a lei da natureza consiste precisamente em nada acontecer sem uma
causa suficiente
determinada
a priori “
,
mas se buscarmos as causas de estados antecedentes, seremos conduzidos a uma
cadeia infinita de “causas”, não havendo um primeiro início, nenhuma completude
da série das causas precedentes. É preciso admitir uma
espontaneidade
absoluta das causas,
uma liberdade transcendental. Assim, Kant afirma que a idéia transcendental de
liberdade constitui “o conceito da absoluta espontaneidade da ação, como
fundamento autêntico da imputabilidade dessa ação”
,
tendo que ser admitida uma faculdade de iniciar espontaneamente uma série de
coisas sucessivas ou de estados.
Kant assinala que podemos conceber dois tipos de causalidade
em relação ao que acontece: segundo a natureza ou pela liberdade. A primeira se
refere à conexão de um estado com o precedente no mundo sensível segundo uma
regra. Abarcaria os fenômenos. Enquanto a liberdade seria a faculdade de
iniciar por si mesma um estado, uma idéia transcendental pura, não contendo
nada da experiência, cujo objeto, também, não é dado pela experiência. A razão
cria uma idéia de espontaneidade, que inicia por si mesma uma ação, sem que
seja necessária uma causa temporal que a anteceda.
O conceito prático de liberdade se funda sobre a idéia
transcendental da mesma, como a independência do arbítrio em relação à coerção
de impulsos da sensibilidade. Um arbítrio é sensível ao ser afetado
patologicamente por motivações da sensibilidade, mas o homem tem uma faculdade
de determinar-se por si mesmo independente de coação de impulsos sensíveis.
Kant denomina
inteligível
o que no objeto dos sentidos não é fenômeno, sendo possível, neste objeto
do mundo sensível, ter uma faculdade que não é objeto de intuição sensível,
podendo então, considerar a causalidade deste ser por duas perspectivas: “como
inteligível quanto à sua
ação, considerada a de uma coisa em si,
e como
sensível pelos seus
efeitos, enquanto fenômeno no mundo sensível”
.
Forma-se um conceito empírico e um conceito intelectual em relação à
causalidade de um sujeito, ocorrendo juntos num e mesmo efeito. Qualquer causa
eficiente tem um
caráter, uma lei da sua causalidade. Assim, no sujeito
do mundo dos sentidos temos um
caráter empírico, onde suas ações como
fenômenos se interconectam com outros fenômenos, segundo leis constantes da
natureza; e também um
caráter inteligível, que embora seja causa de suas
ações como fenômenos, não se subordina ele mesmo a quaisquer condições de
sensibilidade, não sendo fenômeno, mas uma coisa em si mesma.
Este sujeito agente, segundo o caráter
inteligível, não está sob condições temporais, pois o tempo é condição
dos fenômenos, mas não das coisas em si mesmas. Enquanto fenômeno, o sujeito estaria submetido às leis da determinação de
ligação causal, mas enquanto númeno,
não ocorreria mudança no tempo, nenhuma conexão com os fenômenos enquanto
causa, sendo livre e independente de toda necessidade natural. Assim, Kant
afirma que a liberdade e a natureza, cada qual em seu significado pleno, se
encontrariam, ao mesmo tempo e sem conflito, nas mesmas ações, conforme referência à sua causa sensível ou inteligível.
Para Kant, o
fim último ao qual visa
a especulação da razão em seu uso transcendental concerne a três objetos: a
liberdade da vontade, a imortalidade da alma, e a existência de Deus, havendo
neste fim, um trabalho fatigante para o interesse especulativo da razão, que
encontra obstáculos, por não se situar no mundo empírico dos fenômenos. Como
diz Kant: “O proveito maior e talvez único de toda a filosofia da razão pura é,
por isso, certamente apenas negativo; é que não serve de
organon para
alargar os conhecimentos, mas de disciplina para lhe determinar os limites e,
em vez de descobrir a verdade, tem apenas o mérito silencioso de impedir os
erros”
.
Segundo Kant, “prático é tudo aquilo que é possível pela
liberdade”
. As leis
práticas puras são determinadas a priori pela razão, que nos comandam de modo
absoluto, independentemente de condições empíricas; são as leis morais,
pertencentes ao uso prático da razão pura, que admitem um cânone. Na filosofia pura, a razão se dirige para os
três problemas enunciados, que têm um fim mais remoto: “
o que se deve fazer
se a vontade é livre, se há um Deus e uma vida futura”
.
O arbítrio é
animal, quando é
determinado por impulsos sensíveis, patologicamente. O arbítrio determinado
independente de impulsos sensíveis, motivado só pela razão, é chamado de
livre
arbítrio, e tudo que se conecta com ele é denominado prático. Há um poder
de dominar impressões que incidem sobre a faculdade sensível de desejar,
havendo reflexões pela razão sobre o que é bom, útil ou prejudicial destas
representações, fornecendo leis objetivas da liberdade, imperativos, que
exprimem “
o que deve acontecer,
embora nunca
aconteça, e distinguem-se
assim das leis naturais, que
apenas tratam
do que acontece, pelo
que são também chamadas leis práticas”
.
Kant supõe a existência das leis morais puras que determinam
a priori o uso da liberdade, sendo absolutas e necessárias.
Winnicott:
o brincar e a realidade
Winnicott em sua obra O
brincar e a realidade afirma que “é no brincar, e talvez apenas no brincar,
que a criança ou o adulto fruem sua liberdade de criação”.
Prossegue:
O
impulso criativo...é algo que pode ser considerado como uma coisa em si, algo naturalmente necessário a um artista
na produção de uma obra de arte, mas também algo que se faz presente quando
qualquer pessoa – bebê, criança, adolescente, adulto ou velho – se inclina de
maneira saudável para algo ou realiza deliberadamente alguma coisa, desde uma
sujeira com fezes ou o prolongar do ato de chorar como fruição de um som
musical. Está presente tanto no viver momento a momento de uma criança
retardada que frui o respirar, como na inspiração de um arquiteto ao descobrir
subitamente o que deseja construir, e pensa em termos do material a ser
utilizado, de modo que o seu impulso criativo possa tomar forma e o mundo seja
testemunha dele.
Podemos
aproximar este texto de Winnicott do conceito de espontaneidade
desenvolvido por Kant na Crítica da Razão Pura. Winnicott considera o
impulso criativo como uma coisa em si, como uma causalidade “natural” livre,
que gera uma ação eficiente. Ao se referir à inspiração do arquiteto e a
criação da obra de arte se aproxima das causas desenvolvidas por Aristóteles
sobre a existência de algo: a causa material é a matéria de que alguma coisa é
feita; a causa formal é a coisa em si, aquilo que o ser é; a causa eficiente é
o que constitui a coisa; e a causa final é o fim a que se destina a coisa. O
impulso criativo é a essência da criação.
O inconsciente
Ao justificar o conceito de inconsciente Freud cita Kant :
Assim
como Kant nos advertiu para não desprezarmos o fato de que as nossas percepções
estão subjetivamente condicionadas, não devendo ser consideradas como idênticas
ao que, embora incognoscível, é percebido, assim também a psicanálise nos
adverte para não estabelecermos uma equivalência entre as percepções adquiridas
por meio da consciência e os processos mentais inconscientes que constituem seu
objeto. Assim como o físico, o psíquico, na realidade, não é necessariamente o
que nos parece ser.
Observamos neste enunciado de Freud uma referência ao
fenômeno, ao parecer, e ao incognoscível, a coisa em si. Freud apresenta
características do sistema inconsciente que não se encontram no sistema
consciente. São elas: não há lugar para a negação, dúvida, ou graus de certeza,
havendo isenção de contradição mútua. O processo inconsciente é primário, sendo
atemporal, “não são ordenados temporalmente, não se alteram com a
passagem do tempo; não tem absolutamente qualquer referência ao tempo”
.
A referência ao tempo é característica do sistema consciente.
Para Kant o sujeito agente, de acordo com
o caráter inteligível, não se submete às condições temporais, sendo o tempo
condição dos fenômenos e não da coisa em si. Enquanto fenômeno, o sujeito se submete às leis da determinação causal,
mas enquanto númeno, não ocorre
mudança temporal. Assim, o inconsciente se aproxima das características
apresentadas por Kant da coisa em si. O sujeito como númeno é atemporal.
Fundamentação da Metafísica dos Costumes
Em 1785, Kant publica a
Fundamentação da Metafísica dos Costumes
, onde desenvolve os conceitos de vontade, liberdade, autonomia e moralidade.
Ao se referir à vontade afirma: “Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser
racional tem a capacidade de agir
segundo
a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma
vontade.”
.
Para derivar as ações das leis é necessária a razão, logo a vontade é razão
prática. O imperativo categórico se refere à forma e ao princípio da ação, mas
não à sua matéria. A proposição do imperativo categórico é: “Age apenas segundo
uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”
.
Kant diz que “a
vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto
racionais, e
liberdade seria a
propriedade desta causalidade, pela qual ela pode ser eficiente
independentemente de causas estranhas que a
determinem,
assim como a
necessidade natural é a propriedade da causalidade
de todos os seres irracionais de serem determinados à atividade pela influência
de causas estranhas”
.
O conceito de causalidade traz consigo o conceito de lei,
segundo o qual, através de uma coisa, a que chamamos causa, é colocada outra
coisa que se chama efeito, assim a liberdade, apesar de não ser uma propriedade
da vontade segundo leis naturais não é desprovida de lei, mas é uma causalidade
segundo leis imutáveis. Kant prossegue:
A
necessidade natural era uma heteronomia das causas eficientes; pois todo o
efeito era só possível segundo a lei de que alguma outra coisa determinasse à
causalidade a causa eficiente; que outra coisa pode ser, pois, a liberdade da
vontade senão autonomia, i.é, a propriedade da vontade de ser lei para si
mesma? Mas a proposição: «A vontade é, em todas as ações, uma lei para si
mesma» caracteriza apenas o princípio de não agir segundo nenhuma outra máxima
que não seja aquela que possa ter-se a si mesma por objeto como lei universal.
Isto, porém, é precisamente a fórmula do imperativo categórico e o princípio da
moralidade; assim, pois, vontade livre e vontade submetida a leis morais são
uma e a mesma coisa.
A
razão é autora de seus princípios, independente de influências estranhas. Como
razão prática ou como vontade de um ser racional é livre. A vontade não é
determinada por causas estranhas, obedece a uma lei, a lei moral, que a vontade
impõe a si mesma, sendo que vontade livre e vontade sujeita à lei moral são
expressões de idêntica significação. O determinismo dominante no mundo
fenomênico não tem lugar no mundo moral, domínio da liberdade e do dever à lei.
Kant afirma que a razão demonstra, através
das idéias, uma espontaneidade pura, e que a liberdade é a independência de
causas determinantes do mundo sensível. A idéia de liberdade, o seu pensamento,
é inseparável do conceito de autonomia e da moralidade:“...quando nos pensamos
livres, nos transpomos para o mundo inteligível como seus membros e
reconhecemos a autonomia da vontade juntamente com a sua conseqüência – a
moralidade; mas quando nos pensamos como obrigados, consideramo-nos como
pertencentes ao mundo sensível e contudo ao mesmo tempo também ao mundo
inteligível"
.
A autonomia é a propriedade da vontade que somente se determina pela sua
própria lei, que se conforma ao dever sentenciado pela razão prática, sendo o
seu princípio: “não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam
incluídas simultaneamente, no querer mesmo, como lei universal”
.
Crítica da
Razão Prática
Em
1788, Kant publica a
Crítica da Razão Prática,
onde o conceito de liberdade, demonstrado por uma lei apodítica da razão
prática, é situado como “pedra angular” do edifício da razão pura, mesmo da
razão especulativa, conectando-se aos conceitos de Deus e da imortalidade da
alma, que adquirem consistência e realidade objetiva. Mas, a liberdade é a
única, entre as idéias da razão especulativa, da qual se sabe a possibilidade
a
priori, pois ela é a condição da lei moral, sendo que as idéias de Deus e
de imortalidade, são apenas condições do objeto necessário de uma vontade
determinada por esta lei. Estas idéias são as condições da aplicação da vontade
moralmente determinada ao objeto, dado
a priori, o soberano Bem. A razão
prática, por si mesma, e sem se associar com a especulativa, confere realidade
a um objeto supra-sensível da categoria da causalidade, à liberdade (conceito
prático e de uso prático), não o considerando uma ficção, sendo seu conceito
vazio de conteúdo. Kant cita em uma nota de rodapé:
A
reunião da causalidade, como liberdade, com a causalidade enquanto mecanismo da
natureza, estabelecendo-se a primeira pela lei moral e a segunda mediante a lei
natural, num só e mesmo sujeito, o homem, é impossível, sem se representar
este, na relação à primeira como ser em si mesmo, mas relativamente à segunda
como fenômeno, aquele na consciência pura,
este na consciência empírica. Sem
isso é inevitável a contradição da razão consigo mesma.
Em
seu uso prático, a razão ocupa-se da vontade, dos princípios de sua
determinação, da sua causalidade, da sua lei a partir da liberdade. A forma da
lei, a forma legisladora universal, só pode ser representada pela razão, sendo
princípio determinante da vontade, completamente independente da lei natural
dos fenômenos, esta independência denomina-se liberdade, em seu sentido
transcendental, logo “uma vontade, à qual só a pura forma legisladora da máxima
pode servir de lei, é uma vontade livre”
.
Ao supor que uma vontade é livre, somente a forma legisladora universal
constitui o fundamento de determinação da vontade. “A liberdade e a lei prática
incondicionada referem-se, pois, uma à outra”
.
Kant questiona onde
começa o
conhecimento do incondicionalmente prático: se é na liberdade
ou na lei prática. Afirma que na liberdade não pode começar, “pois não podemos
nem dela tornar diretamente conscientes, porque o seu conceito primeiro é
negativo, nem
inferi-la da experiência, visto que a
experiência unicamente nos dá a conhecer a lei dos fenômenos, por conseguinte,
o mecanismo da natureza, que constitui precisamente o contrário da liberdade.
Portanto, é da lei moral que nos tornamos imediatamente conscientes...”
.
Assim, a “moralidade é a primeira a revelar-nos o conceito de liberdade”
.
Kant enuncia a lei fundamental da razão pura
prática:
“Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao
mesmo tempo como princípio de uma lei universal”.
A regra prática é incondicionada,
apresentada a priori como proposição categoricamente prática, pela qual
a vontade é determinada pela forma da lei, independente de condições empíricas.
Kant afirma que a consciência desta lei pode se chamar um fato da razão, não
podendo deduzi-la de dados anteriores da razão, como exemplo da consciência da
liberdade, pois não nos é dada previamente, impondo-se por si mesma como um
fato único da razão pura. A lei moral nos homens é um imperativo categórico, a
lei é incondicionada, designando uma ação chamada dever. O conceito de dever
implica, objetivamente, na ação em conformidade com a lei, mas subjetivamente,
exige o respeito pela lei, enquanto o único modo da determinação da vontade
pela lei, baseando-se aí a diferença entre a consciência de ter agido em
conformidade com o dever e por dever, logo, a partir do
respeito à lei.
A lei moral é o princípio determinante da vontade, sendo o
soberano Bem o fim supremo necessário de uma vontade moralmente determinada, e
o verdadeiro objeto da razão prática.
Lacan e a
ética da psicanálise
Lacan em
A ética da psicanálise
desenvolve o conceito de Coisa,
das Ding, o primeiro exterior como
estranho, de onde se orienta todo o encaminhamento do sujeito. Este objeto
das
Ding, enquanto Outro absoluto do sujeito, é o objeto para sempre perdido
que se tenta reencontrar. Neste seminário cita Kant, que segundo Lacan, “mais
do que qualquer outro, entreviu a função de
das Ding...”. Acrescentando:
No
final das contas é concebível que seja como trama significante pura, como
máxima universal, como a coisa mais despojada de relações com o indivíduo que
os termos de das Ding devam apresentar-se. É aí que devemos ver, com
Kant, o ponto de mira, de visada, de convergência segundo o qual uma ação, que
qualificaremos de moral, apresentar-se-á, e veremos o quão paradoxalmente ela
se apresenta, ela mesma, como sendo a regra de um certo Gute.
Lacan situa das Ding, como o correlato da lei da fala
em sua mais primitiva origem, estando lá no início, sendo a primeira Coisa
que se separou de tudo que o sujeito pode nomear e articular. Cita Freud ao se
referir ao fundamento moral que forneceu a lei fundamental, a lei da interdição
do incesto, lei primordial, onde se inicia a cultura em oposição à natureza
(Lévi-Strauss). A grande descoberta de Freud seria o correlato dessa
interdição, o desejo essencial, o desejo do incesto.
Neste seminário, Lacan se refere à obra
kantiana
A Crítica da razão prática, afirmando que a ética kantiana
surge devido à mudança que a física newtoniana ocasionou no pensamento, levando
a uma revisão radical da razão pura, propondo Kant, uma moral que se destaca de
qualquer objeto, da afeição, de um objeto patológico, isto é, um objeto de uma
paixão. Cita o imperativo categórico, a ação é moral quando comandada pelo
motivo articulado pela máxima: “
Age de tal modo que a máxima da tua vontade
possa sempre valer como princípio de uma legislação que seja para todos”
.
Para Lacan, Kant purifica o conceito de
moral, embora ideal, de todos os “interesses humanos, sensíveis e vitais”
.
A ética tradicional se relacionaria com o serviço dos bens. A ética de
Aristóteles se refere à moral dos mestres, às suas virtudes. Lacan pontua que
“a moral do poder, do serviço dos bens, é –
Quanto
aos desejos, vocês podem ficar esperando sentados”
;
enquanto que Kant transporta a ética para outro lugar, desinteressado: “para
que se trate do campo que pode ser valorizado como puramente ético, é preciso
que não estejamos, de modo algum, interessados em nada”
.
A moral tradicional se apoiava “no que se devia fazer
na medida do possível”
,
e Kant ao afirmar o imperativo moral não se refere ao que se pode ou não se
pode, mas sim, ao “
Tu deves incondicional”
.
E, prossegue: “Este campo adquire, precisamente, sua importância pelo vazio em
que o deixa, ao se aplicar rigorosamente a definição kantiana”
.
Lacan afirma “que nada mais é do que o impossível, onde
reconhecemos a topologia de nosso desejo”
.
Para Lacan não há desejo sem lei, a lei universal da proibição do incesto e o
seu correlato, o desejo essencial. Onde propõe: “a única coisa da qual se possa
ser culpado, pelo menos na perspectiva psicanalítica, é de ter cedido do seu
desejo”
.
Em
Kant com Sade
assinala: “É a liberdade de desejar que constitui um fator novo, não por
inspirar uma revolução – é sempre por um desejo que se luta e se morre -, mas
pelo fato de essa revolução querer que sua luta seja em prol da liberdade do
desejo”
.
O Desejo Puro
Baas, em seu livro
O desejo
puro,
comenta a expressão “desejo puro” apresentada por Lacan no final de
Os
quatro conceitos fundamentais da Psicanálise,
expressão intrigante e paradoxal, visando uma fundamentação teórica em fontes
filosóficas, principalmente em Kant.
O
texto conduz Lacan a Kant, devido à construção da faculdade de desejar
por Baas, que se baseia no modelo da filosofia transcendental kantiana, onde o
conhecimento se ocupa dos conceitos a priori dos objetos, portanto a
faculdade de desejar apresentaria um desejo puro, a priori,
anterior e independente de qualquer experiência. Para Kant o objeto é
constituído pela atividade unificadora do entendimento. As leis da natureza,
dos objetos, são conhecidas a priori, e
não pela generalização da experiência.
O
autor enfrenta a questão da possibilidade teórica de um desejo puro,
partindo de Platão, do conceito de prazer, chegando a Kant e a sua filosofia
transcendental. O desejo puro é apresentado por Lacan no
Seminário 11, e em Kant com Sade há uma discussão do desejo e do gozo na
obra sadiana, onde Lacan aproxima o imperativo categórico de Kant, lei formal,
ao “imperativo de gozo” de Sade.
Baas
constrói a faculdade de desejar, examinando o conceito de Coisa (das Ding),
e mostrando a diferença entre a falta de objeto e o objeto sensível, o epithumène
platônico, abrindo a possibilidade de pensar o desejo puro.
Inicia
o texto através de Platão e a sua expressão “prazer puro” apresentada no
diálogo
Filebo. Platão distingue os estados de prazer, de dor e o
neutro. O estado neutro se refere à “harmonia”, enquanto a dor seria a
dissolução da harmonia, e o prazer o movimento que busca recuperar a harmonia.
O estado neutro, da harmonia, seria o da vida divina. O sábio, o filósofo, de
vida absolutamente boa, não poderia ficar estranho ao prazer, conhecendo os
prazeres puros, que não são precedidos de dor, mas precedidos de desejo.
“Porque a alma do filósofo deseja o bem, o saber e a verdade”
.
O
desejo puro seria anterior ao prazer. Baas localiza neste enunciado
o
desejo puro, movimento da alma desacompanhada da dor, falta presente nos
outros desejos, os desejos impuros; embora assinale que Platão não enuncia
literalmente a expressão “desejo puro”. O prazer que buscaria o conhecimento,
independente de qualquer dor, seria o prazer puro, quinhão de poucos homens. Ao
prazer puro corresponderia o desejo puro, que Platão denominaria de “desejo verdadeiro”.
No
Filebo, Sócrates traz a seguinte questão para Protarco: “Que diremos que está
mais próximo da verdade: o puro e sem mistura, ou o violento, múltiplo, grande
e suficiente?”
. Baas cita
o exemplo fornecido por Sócrates do gênero da brancura, onde questiona “como é”
e “em que” consiste a pureza da brancura, respondendo que o branco mais
verdadeiro e o mais belo de todos é o isento de qualquer mistura, embora não
sendo o maior e o mais numeroso. Portanto, “todo prazer estreme de dor, por
menor e mais raro que seja, é mais agradável, belo e verdadeiro do que os
freqüentes e grandes”
.
Baas comenta que Platão não responde a questão sobre o que seria o desejo puro
da pura brancura, subsistindo esta dificuldade, porque Platão tentou pensar o
puro na ordem empírica, logo: “Platão não é Kant”
.
Baas
assinala que para Kant o puro (razão pura) e o empírico são organizações
heterogêneas. Assim, falar de ”desejo puro” em Kant seria uma impossibilidade.
O desejo é um movimento em direção aos objetos empíricos, proveniente da
inclinação ou do amor de si, não podendo ser puro. Para Kant a pureza é do
âmbito da razão. A filosofia transcendental kantiana trata das condições de
possibilidade a priori da razão na ordem do conhecimento e da ação.
Apesar
das dificuldades, Baas afirma, que falar de “desejo puro”, embora sabendo que é
estar “contra Kant”, também poderia estar “com Kant”, levando-o, assim, a
estabelecer um ponto de vista transcendental do sujeito do desejo. Kant
distingue a faculdade de conhecer do objeto conhecido, assim “trata-se de
distinguir, no desejo, entre o objeto do desejo e a
faculdade de
desejo”
.
A faculdade de desejar será
a priori, o desejo será ocasionado pelo
objeto, objeto sensível, mas não
causado por ele. Baas introduz a
palavra
epithumène, utilizada por Platão como a “relação a um objeto
desejado”
, fazendo
analogia ao que é o fenômeno para o conhecimento. A faculdade de desejar, como
desejo puro, seria anterior ao objeto do desejo, antes do
epithumène.
Baas
conjuga o que Kant separou: “o a priori e o desejo”, realizando
uma teoria transcendental do desejo ao cruzar a psicanálise e a filosofia
transcendental. Afirma que Freud quase fez este cruzamento, citando O Eu e o
Isso, onde Freud se refere ao imperativo categórico kantiano como herdeiro
do complexo de Édipo, o supereu.
Assinala
que esta questão é a visada de Lacan no Seminário 11, Os quatro conceitos
fundamentais da Psicanálise, ao empregar “o desejo em estado puro”,
equivalendo-o à lei formal de Kant. Após citar Spinoza, enfatizando o desejo
como essência do homem, Lacan se aproxima de Kant nesta citação:
A experiência nos mostra que Kant é mais verdadeiro, e eu provei que a
sua teoria da consciência, como ele escreve da razão prática, só se sustenta ao
dar uma especificação da lei moral que, examinada de perto, não é outra
coisa senão o desejo em estado puro, aquele mesmo que termina no
sacrifício, propriamente falando, de tudo que é objeto do amor em sua ternura
humana – digo mesmo, não somente na rejeição do objeto patológico, mas também
em seu sacrifício e em seu assassínio
(itálicos meus).
Com
o intuito de examinar a questão enunciada por Lacan, da relação entre o “desejo
puro” e a lei formal kantiana, Baas se dirige para a filosofia moral de Kant.
Cita a nota de Kant na Crítica da Razão Prática, onde define a faculdade
de desejar (Begehrungsvermögen):
Viver é o poder de um ser agir segundo as leis da
faculdade de desejar. A faculdade de desejar é o poder que ela tem de ser,
pelas suas representações, causa da realidade (Wirklichkeit) dos objetos
(Gegenstände) dessas representações.
No
mesmo texto Kant define o sentimento do prazer:
O prazer é a representação da concordância do objeto
ou da ação com as condições subjetivas da vida, isto é, com o poder da
causalidade de uma representação em relação à realidade do seu objeto (Objekt).
Em
a Fundamentação da metafísica dos costumes, Kant se refere ao
“amor patológico”:
Pois que o amor enquanto inclinação não pode ser
ordenado, mas o bem-fazer por dever, mesmo que a isso não sejamos levados por
nenhuma inclinação e até se oponha a ele uma aversão natural e invencível, é
amor prático e não patológico, que reside na vontade e não na
tendência da sensibilidade, em princípios de ação e não em compaixão lânguida.
É só esse amor que pode ser ordenado.
Enuncia,
também, neste texto a seguinte proposição:
Uma ação praticada por dever tem o seu valor moral, não
no propósito que com ela se quer atingir, mas na máxima que a determina;
não depende portanto da realidade do objeto da ação, mas somente do princípio
do querer segundo o qual a ação, abstraindo de todos os objetos da
faculdade de desejar, foi praticada.
Observamos
nestes textos a purificação realizada por Kant da ação moral, que não tem
qualquer relação com objeto sensível, denominado de patológico.
Para
Kant a “boa vontade” é boa somente pelo querer em si mesmo, e não como meio de
uma intenção. A ação é moral quando executada
por dever. A razão, como
faculdade prática, exerce influência sobre a vontade, tendo como destino produzir
uma vontade boa em si mesma. Esta vontade terá de ser o bem supremo “e
condição de tudo o mais, mesmo de toda a aspiração de felicidade”
.
Somente a
representação da lei em si mesma, que só
no ser racional se
realiza, determina a vontade, lei universal das ações que serve como
princípio à vontade: “devo proceder sempre de maneira que
eu possa querer
que também a minha máxima se torne uma lei universal”.
O imperativo categórico é o imperativo da “boa vontade”.
A
ação moral é independente do desejo que advém do patológico. Como Baas afirma a
análise de Kant se fundamenta numa identificação do sujeito com a lei e sobre a
sua “apatia”, enunciada por Lacan como a “rejeição radical do patológico”.
Em
Kant com Sade, Lacan aproxima
A filosofia na alcova e a Crítica da razão
prática. Lacan afirma que para Kant o princípio do prazer se torna a lei do
bem-estar (
Wohl), e
das Gute é o bem como objeto da lei moral,
sendo incondicional: “seu peso só aparece por excluir, pulsão ou sentimento,
tudo aquilo de que o sujeito pode padecer em seu interesse por um objeto, o que
Kant designa como “patológico” ”
.
Um paradoxo, segundo Lacan, pois o sujeito
encontraria
uma lei quando não tem diante de si objeto algum. Sade coloca a apatia como
negação da sensibilidade que conduz ao “gozo soberano”. Lacan correlaciona o
imperativo categórico de Kant ao imperativo sadiano de gozo:
Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode-me dizer
qualquer um, e exercerei esse direito, sem que nenhum limite me detenha no
capricho das extorsões que me dê gosto de nele saciar.
Este
direito ao gozo ignora toda piedade e compaixão, implicando a apatia como
condição própria. “Este direito é a afirmação de um dever que exclui qualquer
outra motivação fora daquela que implica sua própria injunção”
.
Assim, como Kant reconhece no imperativo categórico a rejeição do patológico e
a pura forma da lei, também Sade, para Lacan, afirma uma máxima que propõe ao
gozo sua regra universal, independente do patológico, sendo apática. Ambos os
imperativos, de maneira latente, solicitam a ordem a partir do Outro. A lei
moral seria a fenda do sujeito operada pela intervenção do significante. A
máxima sadiana seria para Lacan mais honesta do que a voz interior, “por se
pronunciar pela boca
do Outro”
,
desmascarando a fenda escamoteada do sujeito. Para Lacan, o discurso do direito
ao gozo instaura a liberdade do Outro como sujeito da enunciação, sujeito do
inconsciente. O Outro no discurso sadiano é livre.
Baas
comenta a relação entre desejo e lei, enunciada por Lacan, que em Kant com
Sade surge como uma diferença tipográfica, onde há duas escritas de “lei”:
Lei e lei. Lacan acentua que a Lei é outra coisa, diferente da lei mitológica
do supereu. Baas se remete ao seminário A ética da psicanálise, onde
Lacan desenvolve o conceito de das Ding, a Coisa. Além de um
desejo articulado a um objeto desejado, denominado por Baas de epitúmeno,
há a Coisa. A Coisa é o objeto perdido, que se relaciona à experiência de
satisfação, em Freud experiência originária. Baas enfatiza o originário como um
problema que surge aí. Afirma:
Para Freud, há experiência originária, onde os
traços mnêmicos constituem uma espécie de imagem desfeita do objeto
satisfatório, tal qual ela determina a elaboração do desejo do sujeito e o
compele a procurar o que foi perdido, segundo uma lógica de identidade
(identidade de percepção e/ou identidade de pensamento).Trata-se, pois, de uma
originalidade empírica, de um vivido, como se diz.
Torna-se,
então, necessário questionar: “o que é que, no sujeito, torna possível a perda
que precede o desejo?”
Esta questão é a que deve colocar uma teoria
transcendental do desejo. Segundo Baas, Lacan responde a esta questão:
Lacan emprega esta palavra: “a Coisa”, das Ding,
precisamente porque das Ding não é dizível, ainda menos figurável,
porque dar um conteúdo a esta Coisa, já é entrar no jogo dos significantes, já
é entrar no jogo confundir a coisa com o objeto desejado, a reduzir a um
epítumeno. Ora, a Coisa é além do jogo significante pela qual se trama a função
desejante do sujeito, mesmo se – ou antes, porque ela é a condição da
possibilidade. Ela é diz Lacan, o “fora-significado” .
Assim,
a Coisa nomeada por Lacan não é o significado original que constitui os desvios
significantes. Este processo de desvio se refere ao “desejo entendido como
desejo de um objeto desejado, como desejo epitumenal”
.
Das Ding se situa além do desejo epitumenal, além da lei do supereu, “a
perda é anterior ao que é perdido... a perda é ela própria a origem”
.
Das Ding é a perda em si. O objeto do desejo é sempre objeto
reencontrado, este
epitúmeno não se confunde com a Coisa. A este objeto,
epitúmeno, se articula a lei, a lei do supereu. A Lei (com L maiúsculo)
está do lado da Coisa, a própria perda, falta fundamental original, pura falta
que constitui o sujeito dividido. Por isso para Lacan, no apólogo da forca de
Kant, onde o indivíduo prefere renunciar ao seu desejo a ser enforcado, diz que
a forca não é a Lei, só é a pequena lei (l minúsculo), que se dirige ao
Wohl,
ao bem-estar,
pathos do sujeito.
Baas
comenta a passagem efetuada por Lacan na teoria do desejo, de Hegel a Kant,
sendo o primeiro abordado pela questão do reconhecimento do desejo no estágio
especular, consistente, enquanto em Kant, o desejo é purificado, tendo uma
perspectiva formal
a priori, questão transcendental, que busca a pura
forma da Lei. Não há consistência na Coisa, na Lei. “A Coisa é o ponto de
articulação da Lei porque, de um ponto de vista estrutural, ela ocupa o lugar
exato disto que Kant chama “o incondicionado absoluto”, termo que Lacan não
teria renegado”
.
Na
Crítica da Razão Pura de Kant, na ordem do conhecimento, a categoria da
causalidade é aplicada aos fenômenos pelo entendimento, onde os fenômenos
constituem uma série causal, cada fenômeno é causa e condição de um efeito. Por
esta série "não parar nunca”, acima do entendimento, que estabelece o
conceito puro de causalidade, se situa a razão, trazendo a idéia do
incondicionado absoluto, Deus.
Portanto:
Incondicionado absoluto (Deus) ®
Faculdade de conhecimento = entendimento puro (a priori) ®
Fenômeno.
Baas
elabora uma lógica transcendental do desejo. Afirma que na ordem do
desejo, analisada por Lacan, a faculdade de desejar se aplica aos objetos do
desejo, epitúmenos, que são sensíveis e desejados, onde se dá a
cadeia metonímica do desejo, sendo que acima dela há a Coisa, pura falta, o
incondicionado.
Logo:
Incondicionado absoluto (Coisa) ® Faculdade de desejar (a priori) ®
Epitumeno.
Baas
conjuga o discurso filosófico com o discurso psicanalítico, autorizando três
observações decisivas para a compreensão da teoria lacaniana do desejo, e da
correlação entre o desejo e a Lei, problemática ética:
1. A
crítica kantiana da metafísica estabelece a ilegitimidade da pretensão do
entendimento de conhecer o incondicionado, que só é pensável. O incondicionado
absoluto (Deus) é uma idéia que regula a faculdade de conhecer.
De modo homólogo, em Lacan, a Coisa não é
articulável, “se o desejo é sustentado pela Coisa, ele não tem como objeto a
Coisa”
,
mas sim os epitúmenos, objetos figuráveis. A Lei proíbe fazer da Coisa um
objeto desejável.
2. A segunda observação se refere à estrutura
kantiana da razão em seu uso prático. “A vontade livre e autônoma relaciona-se
à ação empírica, exigindo que a máxima desta ação seja universalizável”
.
A universalização, como condição da moralidade, implica na rejeição do
patológico.
3.
Baas
afirma que nas três estruturas expostas (razão teórica, razão prática e desejo
puro), se distingue, por um lado, uma faculdade
a priori (entendimento,
vontade, faculdade de desejar), e por outro lado, elementos empíricos,
a
posteriori (fenômeno, ação empírica, o epitúmeno). No conhecimento, na ação
moral e no desejo se trata de realizar a
unidade do elemento
a priori
e do elemento empírico, unidade de dois elementos de natureza heterogênea,
a
síntese. Kant traz a teoria do
esquematismo para explicar a síntese.
O esquema é “a representação de um procedimento geral da imaginação produtora”
,
por um lado
homogêneo à
categoria, ao entendimento puro, e por outro
lado homogêneo ao fenômeno, sendo de um lado intelectual, e de outro sensível.
Na Crítica da razão pura, Kant
enuncia que a síntese das representações repousa na imaginação, mas a unidade
sintética, solicitada pelo juízo, se situa na unidade da apercepção. As formas a priori puras da intuição, tempo e
espaço, por si mesmas, não podem criar as condições necessárias para a
possibilidade de juízos sintéticos a
priori, e nem também, os conceitos ou categorias a priori puros do entendimento fornecem por si mesmos esta
possibilidade. É preciso que os juízos sintéticos a priori reúnam elementos intuitivos e conceituais para que o juízo
se torne possível. Para um
conhecimento ter realidade objetiva, isto é, referir-se a um objeto, este
objeto tem de ser dado de algum modo, sem essa possibilidade os conceitos são
vazios. As intuições sem os conceitos são cegas, recebem dados, mas não
conseguem conectar estes dados. Os conceitos sem as intuições são vazios, não
se referem a objetos. Assim, as condições da possibilidade da experiência,
entendimento e sensibilidade, conceitos e intuições, são as mesmas condições da
possibilidade dos objetos da experiência, pois os objetos da experiência são
constituídos pelos conceitos e intuições.
Baas
afirma que na lógica transcendental do desejo também se apresenta a questão da
síntese, questionando qual é o elemento mediador que efetua a síntese entre a
faculdade
a priori de desejar e o objeto do desejo. Como em Kant, Baas
diz que por um lado este elemento mediador é homogêneo a faculdade de desejar
a
priori, enquanto procede do incondicionado da Coisa, e de outro lado é
homogêneo ao objeto da sensibilidade, epitúmeno. Este elemento mediador tem
como função tornar desejável o objeto sensível, de tal modo que “na sua
ausência, o objeto não seria desejável, e o desejo seria sem objeto (estrutura
exatamente equivalente àquela que sugere Kant: intuição cega – pensamento
vazio)”
. Ao
articular o desejo a um objeto, faz deste objeto um “epitúmeno”, e o elemento
mediador é ‘causa do desejo”. Surge a distinção entre o objeto desejado e o
“objeto causa do desejo”, qualificado como Lacan de “
objeto a”:
O objeto a ocupa assim, na estrutura do desejo, o lugar homólogo
àquele do esquema na estrutura do conhecimento. Assim como o esquema não está no
objeto do conhecimento, mas constitui (isto é causa) este conhecimento, o objeto
a não pertence ao objeto desejado (epitúmeno), mas constitui (‘causa’) o
desejo deste objeto.
Na
clínica lacaniana o objeto a é um objeto destacável: seio, fezes,
olhar e voz.
Se
o objeto a não é redutível ao objeto do desejo, também não é
identificado ao sujeito do desejo. É articulado ao sujeito do desejo enquanto
sujeito dividido. A divisão acontece
porque o desejo não surge de nada de consistente, mas pela pura falta da Coisa.
É a falta da Coisa que o barra: $; e o sujeito se articula ao objeto a na
fórmula da fantasia: $à a, fantasia que sustenta o desejo. O desejo tem
um pé no A (Autre), o pé que conta, pois o pé mancante, do Édipo, é movido de
início pela faculdade de desejar, que procede da falta absoluta da Coisa.
A
fantasia possibilita a síntese da faculdade
a priori de desejar e do
objeto empírico
, síntese realizada pelo
objeto a ao se
articular ao sujeito barrado do desejo. “É exatamente o mesmo dispositivo de onde
procede a síntese transcendental na teoria kantiana do conhecimento”
.
Baas
conclui:
Na ordem do conhecimento e na ordem do desejo, a unidade necessária do a
priori e do empírico é realizada pela articulação do sujeito dividido ao
objeto transcendental, aqui esquema da síntese, aí objeto a
do fantasma.
O
tema do texto, o desejo puro, desenvolvido por Baas, lança problemas que
devem nos acompanhar desde o início de sua leitura. Podemos pensar o desejo
puro de Lacan tomando como modelo a Analítica Transcendental de
Kant? Podemos conhecê-lo (o desejo puro)? Não, não é um fenômeno.
Ele é um conceito que segue uma forma de construção semelhante aos conceitos
puros, a priori, do entendimento? Até que ponto o desejo em Kant se
refere à inclinação do homem, ligado à sensibilidade, logo não poderia ser
puro, mas patológico?
Surge,
ainda, esta questão: O desejo pio, puro, apresentado por Kant, em sua obra
Antropologia
de um ponto de vista pragmático,
se aproxima do conceito lacaniano de desejo puro?
Kant,
ao se referir aos princípios concernentes ao caráter na obra acima citada, onde
afirma que “o estabelecimento de um caráter é unidade absoluta do princípio
interno da conduta da vida em geral”
,
orienta uma possível resposta à questão. Contestando os poetas, os cortesãos e
os eclesiásticos quanto à firmeza do caráter, diz que “portanto, ter um caráter
interno (moral) é e permanecerá sendo só um
piedoso desejo”
(itálicos meus). Portanto, podemos pensar a partir desta afirmação de Kant em
um
desejo puro (pio)
, a priori, próximo ao
caráter inteligível
do “sujeito transcendental”, independente do
caráter sensível, empírico,
fenomenal. E, clarifica a conexão efetuada por Lacan entre desejo e lei:
“da
lei moral que, examinada de perto, não é outra coisa senão o desejo em estado
puro...”, pois,
pelo enunciado de Kant, um caráter moral (inteligível) é um piedoso desejo.
Podemos
realizar uma ponte entre o desejo puro e o desejo impuro, este baseado na
experiência, e o primeiro no além/aquém, independente da experiência, surgindo
um novo paradoxo. É aquém ou além? O desejo puro é “aquém”, pois a Coisa é
anterior à experiência. Este “aquém” é além, pois é piedoso? E, só pode ser
pensado? Aquém e além se aproximam...
Várias
questões surgem. Considerar Kant com Lacan implica em encontros e desencontros,
cabendo ao filósofo e ao psicanalista, defenderem Kant de qualquer ousadia
teórica que conduzisse ao gozo, o que implicaria no fim de qualquer conceito de
desejo, puro ou impuro
Este
modelo construído por Baas nos possibilita pensar o desejo puro como uma espécie de causalidade anterior ao sujeito do
inconsciente, apresentando a liberdade como propriedade desta causalidade. A faculdade de desejar,
como desejo puro, seria anterior ao objeto do desejo, antes do epithumène, que
é desenvolvido por Freud.
A liberdade e a antropologia
pragmática de Kant.
No Livro terceiro da
Antropologia de um ponto de vista pragmático,
“Da faculdade de desejar”, na seção “Da inclinação à liberdade como paixão”,
Kant apresenta a
paixão como a “inclinação pela qual a razão é impedida
de comparar essa inclinação com a soma de todas as inclinações em vista de uma
certa escolha”
. E, comenta
que as paixões são prejudiciais à liberdade, pois se unem à reflexão tranqüila,
deitando raízes, coexistindo com argumentações sutis, abolindo a liberdade e o
domínio sobre si mesmo. Kant enfatiza que a razão não cessa de convocar a
liberdade interna. Atribui à paixão a condição de ”doença”, um encantamento que
exclui o aperfeiçoamento, inclusive o aperfeiçoamento da espécie, obedecendo à
máxima: “de agir segundo um fim que lhe é prescrito pela inclinação”
,
embora estando em ligação com a razão.
Kant divide as paixões em paixões de inclinação natural (inatas) e
paixões que procedem da civilização (adquiridas). As primeiras, ardentes,
incluem a inclinação à liberdade e a inclinação sexual, e as
segundas, qualificadas como frias, são a ambição, o desejo de poder e
cobiça. Assinala que as paixões são desejos dirigidos apenas de homens a
homens.
Sobre a inclinação à liberdade como paixão, Kant a considera demais
violenta no homem natural, quando ele não pode evitar o confronto entre as suas
reivindicações e a dos outros. Afirma: “Quem só pode ser feliz conforme a
escolha de um
outro (por mais benévolo que este possa ser) sente-se com
razão infeliz. Pois que garantia tem ele de que o juízo de seu poderoso
semelhante concorda com o seu?”
.
Observamos nesta citação a manifestação do conceito de
alienação desenvolvido
posteriormente por Hegel e Marx, e por Lacan, onde a
alienação surge
como uma primeira operação na relação do sujeito com o Outro (A) para a
instauração de sua subjetividade, e a instituição da ordem simbólica. Expressa
uma determinada positividade, pois a criança ao se assujeitar ao Outro,
torna-se sujeito da linguagem. Seria uma “escolha forçada”, pois a escolha da
sujeição ao Outro se torna necessária para o indivíduo advir como sujeito. Mas,
o indivíduo pode negar o acesso a este momento de assujeitamento ao Outro, o
que acontece na psicose, daí nos referirmos ao termo escolha. A segunda
operação neste processo é a
separação, onde há um confronto do sujeito
alienado com o Outro, através do seu desejo.
Em
Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise,
Lacan se refere à liberdade, mostrando como a liberdade do sujeito é
sacrificada pela alienação, que corresponde ao assujeitamento do outro à
linguagem. Analisa o advento do sujeito através de dois processos: alienação e
separação. Na alienação, primeira operação que funda o sujeito, a criança é
assujeitada ao Outro, da linguagem. A alienação é um
vel que condena o
sujeito a aparecer por um lado como sentido, produzido pelo significante, e do
outro como afânise. Este
vel da alienação implica numa escolha, que
qualquer que seja a escolha, ocorre “nem um nem outro”. O “ou” alienante está
na linguagem. Lacan exemplifica: “A bolsa ou a vida! Se escolho a bolsa, perco
as duas. Se escolho a vida, tenho a vida sem a bolsa, isto é, uma vida
decepada”
.
Lacan traz Hegel como indicação deste
vel
alienante, onde o homem entra na via da escravidão: “A liberdade ou a vida!
Se ele escolhe a liberdade, pronto, ele perde as duas imediatamente – se ele
escolhe a vida, tem a vida amputada da liberdade”
.
Ao falar da “liberdade ou a morte!”, Lacan diz que se produz um efeito de
estrutura diferente
, no caso terá os dois: “vocês escolhem a
liberdade, muito bem! É a liberdade de morrer... a única prova
de liberdade que vocês podem
fazer nas condições que lhes indicam, é justamente a de escolher a morte, pois
aí, vocês demonstram que vocês têm a liberdade de escolha”
.
A segunda operação é a de separação, que
parte da percepção pela criança que o Outro (A) é barrado, dividido. A criança
tenta preencher a falta do Outro materno com a sua própria falta, ao perceber o
seu desejo por algo mais, tentativa frustrada pela operação da metáfora
paterna. A intervenção do significante Nome-do-Pai efetua o corte na relação
bebê-mãe, tornando o infans sujeito dividido, ato instituinte da lei do
pai, e da proibição do incesto.
A lei da interdição do incesto, universal, aproxima-se do modelo
kantiano da lei moral. A proibição do incesto institui o homem na cultura, pela
Linguagem. Não há desejo sem lei, a lei funda o desejo no inconsciente. O
inconsciente é estruturado como uma linguagem, uma cadeia significante que
segue as leis da linguagem. Neste mesmo tecido está o desejo. A lei é um
significante, o Nome-do-Pai, interdita o desejo, que permanece vivo no inconsciente,
como desejo e força libertária.
Em Hegel, encontramos a “consciência infeliz”, cindida dentro de si,
sendo inicialmente “unidade imediata” de duas consciências-de-si, uma simples e
imutável, enquanto a outra, mutável de várias formas e inessencial. Sendo ela,
a consciência dessa contradição, se identifica, de início, com a parte mutável
e múltipla, mas, ao se perceber, também, como consciência da imutabilidade ou
da essência simples, se depara com a relação de luta entre a essência (o
imutável) e o inessencial, suprassumindo, então, o mutável, o inessencial. Luta
dolorosa, pois há perda do seu contrário, luta entre o singular e o imutável,
existência singular que se reencontra consigo mesma no imutável, tornando-se
Espírito, conciliação do singular com o universal.
Em Freud, encontramos a luta entre
o ego e o supereu, este último agente de uma lei feroz, exigindo do ego
subserviência.
Assim,
percebemos a acuidade do ponto de vista kantiano, e a relevância da obra Antropologia
de um ponto de vista pragmático. Prosseguindo neste texto, encontramos esta
seguinte afirmação:
A criança que
acaba de ser tirada do ventre materno parece entrar no mundo gritando,
diferentemente de todos os outros animais, porque vê como coerção sua
incapacidade de se servir de seus membros, e anuncia no mesmo instante seu
direito à liberdade (da qual nenhum outro animal tem uma representação) (Kant
2006, 166).
Kant desenvolve este argumento, numa nota de rodapé, sobre a
criança recém-nascida:
...nela o sentimento de incômodo não procede da
dor corporal, e sim de uma idéia obscura (ou representação análoga a esta)
da liberdade e do obstáculo a ela, a injustiça, isso se descobre
pelas lágrimas que vêm se unir ao grito alguns meses após o nascimento,
o que revela uma espécie de amargura, quando se esforça por se aproximar de
certos objetos ou simplesmente por modificar seu estado, e se sente impedida de
fazê-lo. – Esse impulso a ter vontade própria e a apreender o impedimento como
uma ofensa também se distingue especialmente por seu tom e deixa transparecer
uma maldade que a mãe se vê obrigada a castigar, mas habitualmente se replica a
isso com gritos ainda mais veementes. Exatamente o mesmo acontece quando cai
por sua própria culpa. Os filhos de outros animais brincam, os do ser humano
brigam prematuramente uns com os outros, e é como se um certo conceito de
direito (referente à liberdade externa) se desenvolvesse ao mesmo tempo que a
animalidade e não se aprendesse pouco a pouco
(negrito meu).
Comenta adiante:
Assim, o conceito de liberdade sob leis morais
não apenas desperta uma afecção, denominada entusiasmo, mas a mera
representação sensível da liberdade exterior aumenta a inclinação de persistir
nela ou, pela analogia com o conceito de direito, a amplifica até torná-la uma paixão
impetuosa.
Nos meros animais, mesmo a inclinação mais
veemente (por exemplo, da cópula) não se denomina paixão, porque não possuem
razão, a única que fundamenta o conceito de liberdade e com a qual a paixão
entra em colisão, paixão cujo surgimento pode, portanto, ser imputado ao ser
humano (negrito
meu).
Kant retrata agudamente o sentimento do desamparo infantil,
a angústia que emerge, e a partir daí, a dependência ao outro. Mas, o que
pretendo destacar na citação acima, é a presença de uma
representação de
liberdade, embora
obscura, e de uma oposição a ela. Kant mostra o
aparecimento de uma representação natural de liberdade, não clara, “talvez”
inconsciente, uma representação relacionada a um impulso a ter “vontade
própria”, na razão. Encontramos, em Freud, o termo “idéia”, em alguns textos,
tendo o sentido de representação, na acepção de “reprodução interna de
seqüência de imagens sensoriais” (
Vorstellungen), como também, em outros
textos, surge como “representação imagética interna” (
Vorstellung)
.
Portanto, podemos pensar numa idéia a priori de
liberdade, conceito que a criança já dispõe, como fazendo parte do
“dispositivo” a priori do sujeito transcendental, formal, que ganha conteúdo,
pelas impressões intuitivas da sensibilidade.
As intuições sem os conceitos são cegas, recebem dados, mas
não conseguem conectar estes dados. Os conceitos sem as intuições são vazios,
não se referem a objetos, ganham sentido pela síntese realizada pela faculdade
de imaginação (segundo Hanns,
Vorstellung tem também o significado de
imaginação em alguns textos freudianos). A síntese das representações repousa
na imaginação ao relacionar os conceitos com as “imagens”. Como Kant afirma na
Crítica
da faculdade do juízo: “Ora, a uma representação pela qual um objeto é dado,
para que disso resulte conhecimento, pertencem a
faculdade de imaginação
(Einbildungskraft), para a composição do múltiplo da intuição, e o
entendimento,
para a unidade do conceito, que unifica as representações”
.
Kant se refere a uma representação de liberdade, e a uma
outra representação sensível, de paixão, que se colide com ela. Assim, para
melhor compreensão, penso que é interessante discutirmos o conceito de
grandezas
negativas, que se refere às representações, que embora positivas, em si, se
opõem, de um modo real, a outras. Segundo Caygill, no D
icionário Kant,
em um dos textos pré-críticos,
Ensaio para introduzir a noção de grandezas
negativas em filosofia,
Kant se refere ao conceito de representação inconsciente. Neste texto, Kant
enuncia que a oposição pode ser lógica (ao afirmar e negar algo de uma única e
mesma coisa, ao mesmo tempo), sendo contraditória; e pode ser real, sem
contradição. Em uma oposição real, algo se suprime pelo que é posto pelo outro,
mas a conseqüência é
algo. As grandezas negativas não são negações de
grandezas, mas “algo em si mesmo verdadeiramente positivo, algo que apenas se
opõe a outra coisa”
.
O desprazer não é só uma ausência de prazer (Kant define a negação baseada na
ausência
como uma não exigência de um fundamento positivo, apenas ausência dele;
enquanto a negação baseada na
privação possui um fundamento positivo
verdadeiro, e um fundamento igual
que lhe é oposto), mas um fundamento positivo que suprime em parte ou
totalmente o prazer proveniente de um outro fundamento, logo um
prazer
negativo.
Na terceira seção sobre as grandezas negativas Kant se ocupa
da questão “como algo que é deixa de ser”:
Neste momento,
por exemplo, mediante a formação de minha imaginação, a representação do Sol
existe em minha alma. No instante seguinte, deixo de pensar neste objeto. Essa
representação, que existia, cessa em mim, e o próximo estado é o zero do
anterior. Quisesse fornecer como razão para isso a explicação de que o
pensamento cessou, porque, no momento seguinte, deixei de suscitá-lo, a
resposta não se diferenciaria da pergunta, pois a questão aqui é justamente,
como uma ação, que efetivamente ocorre, pode interromper-se, isto é, pode
cessar de ser.
Afirmo assim,
que
toda desaparição é um nascimento negativo, isto é, que, para
suprimir algo de positivo, que existe, é requerido um fundamento real tão
verdadeiro quanto é necessário para produzi-lo, se ele inexiste
.
E, mais adiante:
Assim, deve-se
julgar que o jogo das representações e, em geral, de todas as atividades de nossa
alma, na medida em que seus efeitos previamente existentes deixam de existir,
pressupõe ações opostas, das quais uma é a negativa da outra, em virtude de
certas razões que introduzimos, apesar do fato de que nem sempre a experiência
interna possa nos informar sobre isso
.
Sobre a
luta de forças opostas, Kant afirma:
...no que
concerne à supressão de
algo existente, não pode haver diferença entre
os acidentes da natureza espiritual e os efeitos de forças eficientes no mundo
corporal. Estas jamais podem ser suprimidas a não ser mediante uma verdadeira
força motriz oposta
por algo outro; um acidente interno, um pensamento
da alma, não pode cessar sem uma força verdadeiramente ativa do
mesmo
sujeito pensante
.
No final do livro Antropologia de um ponto de vista
pragmático, Kant trata do caráter da espécie. Ao se referir à disposição
moral, sobre a questão se o homem é por natureza bom ou mau, afirma
que o ser dotado da faculdade da razão prática e da consciência da liberdade de
seu arbítrio, apesar da presença das mais obscuras representações se percebe
nessa consciência sob uma lei do dever, sendo este o caráter inteligível
da humanidade, e o homem, segundo sua disposição inata, bom. Mas, como
revela uma predisposição a desejar o ilícito, a propensão para o mal, percebida
tão cedo quanto o homem faz uso de sua liberdade, também inata, o ser humano deve ser julgado mau quanto
ao seu caráter sensível, não sendo contraditório
ao se referir ao caráter da espécie (como vimos no conceito de grandezas
negativas), pois se admite que a destinação natural consiste no
progresso contínuo da espécie até o melhor.
Prosseguindo, Kant ao se referir, novamente, à vontade
própria, afirma que ela subitamente se manifesta como hostilidade ao próximo, e
a todo instante tenta realizar sua pretensão à liberdade incondicional do ser,
não só independente, mas como soberana sobre os outros seres de mesma natureza,
como é observado na criança, pelo motivo que na criança a natureza a conduz a
uma cultura, cujos fins se acordam com a moralidade, mas partindo da cultura
para a moralidade, e não da moralidade e de sua lei, como a razão prescreve,
produzindo uma tendência contrária aos fins.
Kant, numa nota de rodapé, discute novamente sobre os gritos
de uma criança recém-nascida, que não têm o tom de queixa, mas de indignação e
cólera, não por dor, mas porque alguma coisa a contraria, “provavelmente porque
quer se mover e sente sua incapacidade de fazê-lo como grilhões que tolhem a
liberdade”
. Depois,
reflete sobre a intenção da natureza em fazer a criança vir ao mundo aos
gritos, que anuncia ruidosamente a sua existência, supondo que a sabedoria da
natureza pretende desse modo conservar a sua espécie.
Podemos observar o desenrolar do movimento do antagonismo na
obra kantiana, que surge no texto acima como uma oposição entre a representação
da liberdade, presente no caráter inteligível do sujeito, e a representação
oposta, sensível, relacionada ao caráter sensível, e a positividade expressa,
por Kant, em cada uma dessas representações. Ambas são necessárias para o
aperfeiçoamento da espécie.
Kant
desenvolve em sua obra
Idéia de uma
história universal de um ponto de vista cosmopolita
o tema de que a cultura nasce do antagonismo das disposições naturais. Entende
por antagonismo a
insociável sociabilidade
dos homens, tendência para entrar em sociedade ligada a uma oposição que
ameaça a dissolução desta sociedade. A inclinação do homem para se associar se
dá por se perceber mais humano neste estado, através do desenvolvimento de suas
disposições naturais. Mas, também, tem uma tendência a se isolar, pois tem em
si uma qualidade insociável, buscando conduzir a vida em seu proveito, se
opondo aos outros homens. Assim, partindo da rudeza se atinge à cultura, valor
social do homem, havendo uma progressiva iluminação (
Aufklärung), que funda uma maneira de pensar, modificando as rudes
disposições naturais para que possam atingir uma sociedade conforme a lei
moral. A insociabilidade funciona, no antagonismo,
como face importante do motor ao desenvolvimento, pois faz com que o homem não
permaneça na inércia.
Para Kant, a representação que expressa a
autonomia da criança (infans), do ser humano, é anterior à capacidade do
seu corpo de poder responder ao Outro, através da fala e de movimentos
coordenados, mas ainda assim, ela luta contra os grilhões que a aprisionam. O
estádio do espelho, de Lacan, é o campo onde, também, podemos perceber esta
luta. A estruturação do eu é um processo que se dá pela percepção de um modelo
(ideal do eu), lugar da lei que se enlaça à liberdade (caráter inteligível), e,
também, através da presença do outro, a mãe, é antecipado, e transmitido à
criança uma representação da unidade corporal, sensível, que expressa a
“liberdade” corporal, de postura e de movimentos, unidade de ação.
Kant, ao se
referir ao “gosto artístico”, à poesia e eloqüência, enuncia uma interessante
“definição” sobre a sua antropologia pragmática: “onde se procura conhecer o
ser humano segundo aquilo que se pode fazer dele”
.
Conclusão
Podemos considerar a liberdade
inconsciente, a partir do conceito de n
úmeno de Kant, como uma
propriedade do inconsciente pensado em si mesma, como uma coisa em si. A Coisa,
objeto sempre perdido, é
ek-sistente, sendo incognoscível. O
determinismo opera como uma causalidade das leis do fenômeno, isto é, opera
na
passagem daquilo que vem do inconsciente para o consciente, mas
o
inconsciente como instância em si mesmo é livre. No inconsciente não há
contradições. O inconsciente é atemporal, não segue as leis do fenômeno, não
ocorrendo sucessão temporal, expressando a lei em conexão com a liberdade.
Segundo Kant, o sujeito, quanto ao caráter inteligível, não está sob condições
temporais, pois o tempo é condição dos fenômenos, mas não das coisas em si
mesmas. Enquanto fenômeno, o sujeito
estaria submetido às leis da determinação de ligação causal, mas enquanto
númeno,
não apresentaria mudanças no tempo, sendo livre e independente de toda
necessidade natural. A liberdade e a natureza se encontrariam, sem conflito,
nas mesmas
ações, conforme referência à sua causa
sensível ou inteligível. Freud, em O Inconsciente
,
afirma que os processos mentais podem ser inconscientes em si mesmos.
Freud precisava tornar a psicanálise uma ciência, já que em
sua época o modelo científico imperava. O conceito de determinismo trouxe
legitimidade à psicanálise, inserindo-a no processo das leis da causalidade
científica. Devido ao determinismo, a idéia de liberdade em psicanálise ficou
isolada. Observamos a liberdade no pensamento psicanalítico, quando Lacan
separa “o pensar” do Cogito cartesiano e o coloca no lugar do
inconsciente, fundamento do sujeito da enunciação, sujeito do inconsciente,
sujeito do desejo, que ao falar plenamente, enuncia a verdade (meia-verdade),
como uma expressão libertária.
Freud conceitua energia livre e ligada, termos que exprimem pela perspectiva
econômica psicanalítica, uma distinção entre processo primário e secundário. No processo primário, situado no inconsciente, a energia é
livre, pois caminha para uma descarga rápida e direta. No processo secundário,
a energia é ligada, sendo o seu movimento retardado ou controlado para a
descarga. Para Freud o estado livre da energia precede ao ligado.
Para Lacan, o desejo está em relação com a
lei. O inconsciente é estruturado como uma linguagem. A linguagem tem as suas
leis. A lei funda o desejo. O desejo, como força libertadora do sujeito, é
inseparável da lei. A práxis psicanalítica caminha em direção à liberdade do
sujeito, liberdade em conexão com a lei. Lacan questiona em
A direção do
tratamento e os princípios de seu poder.
Para onde vai a direção do tratamento? 1. Que
a fala tem aqui todos os poderes, os poderes especiais do tratamento; 2. Que
estamos muito longe, pela regra, de dirigir o sujeito para a fala plena ou
discurso coerente, mas que o deixamos livre para se experimentar nisso (
a
liberdade do analisando na travessia de sua análise, mas em relação com a
regra, a regra fundamental, a lei da associação livre, lugar que a liberdade de
expressão pode se dar) 3. Que essa liberdade é o que ele tem mais
dificuldade de tolerar...”(itálico
meu)
Lacan prossegue
enfatizando a necessidade de colocar a demanda entre parêntesis, excluindo a
hipótese de sua satisfação pelo analista, e a “atenção” dirigida ao desejo no
tratamento é uma atenção flutuante, atenção livre, belo paradoxo!
Há no inconsciente uma espontaneidade absoluta. Kant afirma que é preciso
admitir uma espontaneidade absoluta na série das causas posteriores, uma
liberdade transcendental. A idéia transcendental de liberdade constitui a
absoluta espontaneidade da ação. Kant questiona se é na liberdade ou na lei
prática onde se inicia o conhecimento do incondicionalmente prático.
Afirma que não se inicia na liberdade, pois não podemos ter consciência
diretamente dela, porque o seu conceito primeiro é negativo, nem podemos
inferi-la da experiência, pois a experiência nos dá o conhecimento da lei dos
fenômenos, contrária à liberdade. Assim, nos tornamos conscientes da lei moral.
Mas, a lei moral aponta para o conceito de liberdade. O conhecimento do prático
incondicional se dá primeiro pela lei moral, sendo o conceito da liberdade
negativo (inconsciente). A liberdade habita o inconsciente num modo latente.
A lei funda o desejo inconsciente.
A liberdade é inseparável da lei, que na psicanálise é a lei da interdição do
incesto, imperativo, dever. Desejo em psicanálise não é vontade kantiana, esta
última consciente, mas podemos construir Lacan com Kant, pois Lacan segue a
trilha kantiana ao fazer a relação do desejo e a lei moral, através do emprego
do modelo apresentado por Kant da relação entre vontade e lei moral. Em
psicanálise, a lei moral é a da proibição do desejo incestuoso, lei universal.
Através do recalque, o desejo se torna inconsciente, mas permanece a sua
potência libertadora, atuando de diversas maneiras, para se libertar do
aprisionamento das forças opressoras. Logo, o desejo, como a vontade em Kant,
apresenta a propriedade da liberdade, sendo uma espécie de causalidade. Como
Baas apresentou em seu texto, a Coisa é a Causa.
Penso que o determinismo está presente no
inconsciente, mas como uma causalidade das leis do fenômeno, isto é, na passagem daquilo que
vem do inconsciente para o consciente, mas o inconsciente apresenta uma
causalidade livre enquanto númeno.
Bibliografia
Baas, B. “O
Desejo Puro”, in O Desejo Puro. Rio de Janeiro: Revinter, 2001.
Caygill, H. Dicionário
Kant. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
Dor, J. Introdução à leitura de Lacan. Porto Alegre: Artes
Médicas Sul, 1989.
Freud, S. A psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro:
Imago, 1976. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud, 6).
Freud, S. O inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 1974. (Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14).
Freud, S. Psicologia de grupo e a análise do ego. Rio de Janeiro:
Imago, 1976. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud, 18).
Habermas, J. Conhecimento
e interesse. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
Hanns, L. A. Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
Hegel, G.W.F. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 1997.
Japiassú,H. e Marcondes,D. Dicionário
básico de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
Kant, I.“Ensaio para introduzir a noção de grandezas negativas em
filosofia”, in Escritos pré-críticos. São Paulo: UNESP 2005.
Kant, I.Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
Kant, I.Crítica da Razão Pura. In Os pensadores. São Paulo: Nova
Cultural, 1999.
Kant, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições
70, 2001.
Kant, I.Crítica da Razão Prática. Lisboa: Edições 70, 1999.
Kant, I.Crítica da
Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
Kant, I.Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. São
Paulo: Martins Fontes, 2004.
Kant, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático. São Paulo:
Iluminuras, 2006.
Lacan, J.A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1991.
Lacan,J.Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
Lacan, J.Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
Laplanche, J. e Pontalis, J.B. Vocabulário
da Psicanálise. Santos: Livraria Martins Fontes,1970.
Mannoni,O. Freud: uma biografia ilustrada. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1997.
Platão. Filebo, cópia
Rezende,
A. (org.). Curso de Filosofia. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
Roudinesco, E.Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um
sistema de pensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
Winnicott,D.W.. O brincar e a realidade, Rio de Janeiro: Imago,
1975.
Japiassú,H. e Marcondes,
D.. Dicionário básico de filosofia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 68.
Japiassú,H.
e Marcondes,D.. Dicionário básico de filosofia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1996, p.101.
Ibid., p.636 ibid., p.638
Kant, I. Fundamentação da
metafísica dos costumes, Lisboa: Edições 70, 2001.
Kant, I.. Crítica da Razão
Prática, Lisboa: Edições 70 Ltda., 1999.
Lacan, J. A ética da
psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
Lacan, J.. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
Baas, B. O Desejo Puro. Rio de Janeiro: Revinter, 2001.
Lacan,J.. Os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
Lacan,J.. Os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995,
p.260.
Lacan, J.. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 777-778.
Kant, I.. Antropologia de um ponto de vista pragmático. São Paulo: Iluminuras, 2006.
Hanns, L. A.. Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Caygill, H.. Dicionário
Kant. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2000.
Kant, I.. Idéia
de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. São
Paulo: Martins Fontes, 2004.
Freud, S.
O
inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 1974.