Lacan e Descartes
Rosa Jeni Matz
Jacques Lacan, em Os quatros conceitos fundamentais da
psicanálise, afirma: “O encaminhamento de Freud é cartesiano – no sentido
de que parte do fundamento do sujeito da certeza”. A partir desta afirmação,
irei refletir sobre estes dois pensadores, Lacan e Descartes, esboçando
semelhanças e diferenças entre eles.
Lacan, partindo da análise de um sonho, introduzido por
Freud em A Interpretação dos Sonhos, capítulo VII, e da análise de
Hamlet, do seu fantasma, o fantasma do pai ideal, demonstra como Freud parte da
certeza, tendo a dúvida como apoio de sua certeza.
O sonho é o seguinte (narração de Freud): “Após algumas
horas de sono, o pai teve um sonho de que seu filho estava de pé ao lado de seu
leito, que o apanhou pelo braço e lhe sussurrou em tom de censura: “Pai, não vê
que estou queimando?“ Este pai ficara de vigília ao lado do filho enfermo
durante dias e noites, sendo que após a sua morte foi repousar no quarto
contíguo, estando o filho acompanhado por um velho, que rezava, e o seu corpo
cercado por velas altas. Ao acordar percebeu um clarão no quarto ao lado, sendo
que o vigia havia dormido, e o seu
filho estava com um dos braços queimado. Este sonho que pode ser considerado de
fácil compreensão, também contém a realização de um desejo. Qual? Primeiro, o
sonho tornou o filho vivo, depois percebemos como Lacan diz, que tanto este
sonho como o dilema de Hamlet referem-se ao “peso dos pecados do pai”, “... a
herança do pai é aquilo que nos designa Kierkegaard, é seu pecado”.
Freud, afirma que “... aquilo de que nos lembramos de um
sonho e sobre o que exercitamos a nossa arte interpretativa já foi mutilado
pela infidelidade de nossa memória, que parece muito especialmente incapaz de
reter um sonho e bem pode ter perdido exatamente as partes mais importantes de
seu conteúdo...quando procuramos voltar a atenção para um de nossos sonhos,
descobrimo–nos lamentando o fato de que, embora tenhamos sonhado muito mais,
não podemos recordar nada, a não ser um fragmento isolado, que ele próprio, é
relembrado com uma incerteza peculiar” (itálico meu).
Como Lacan afirma, “... é preciso superar o que conota tudo
que seja do conteúdo do inconsciente...o que...macula, põe nódoas no texto de
qualquer comunicação de sonho – Não estou
certo, tenho dúvidas”. E, como
Freud acentua: “A dúvida sobre se um sonho ou alguns de seus pormenores foram
corretamente relatados é mais uma vez um derivativo da censura onírica, da
resistência à penetração dos pensamentos oníricos na consciência”. Freud abre
uma nota de rodapé para o “mecanismo de dúvida“ no caso Dora, a dúvida na
histeria. Prossegue: “Essa resistência não foi exaurida nem mesmo pelos
deslocamentos e substituições que ocasionou; ela persiste sob a forma de dúvida
presa ao material que foi permitido passar... E, por isso que ao analisar um
sonho, insisto em que toda a escala de estimativas de certeza seja abandonada e
que a mais débil possibilidade de que algo desta ou daquela sorte possa ter
ocorrido no sonho seja tratada como uma certeza completa”.
René Descartes, em 1619, após um dia de intensa atividade
intelectual, sonha três sonhos sucessivos que interpreta ”...como símbolos da
iluminação que recebera e, ao mesmo tempo, como indicação da missão a que
deveria consagrar a vida. Essa missão era a de unificar todos os conhecimentos
humanos a partir de bases seguras, construindo um edifício plenamente iluminado
pela verdade, por isso mesmo, todo feito de certezas racionais”. Grande parte
da obra de Descartes é consagrada a ciência, sendo que a partir desses sonhos
de novembro de 1619, procura unificar o vasto campo dos conhecimentos, tendo
que antes teria que preparar o terreno “... de modo a que nele não medrasse
qualquer dúvida. Só então a árvore da sabedoria poderia expandir-se com pleno
viço da certeza”. Procura o desafio da dúvida, buscando combatê-la a qualquer
preço. Duvida metodicamente de tudo. Amplia a dúvida ao máximo, tornando-a
hiperbólica: “passa a duvidar até mesmo das idéias claras e distintas, que o
espírito espontaneamente admite como evidentes. ”Lança a hipótese do malin
génie, como se a realidade fosse regida por um gênio maligno, que
provocaria erros ao homem quando ele pensa que está acertando. Levanta a
questão da objetividade dos conhecimentos científicos. Mas à medida que a
dúvida prossegue, a cada caminhada, das idéias obscuras de impressões sensíveis
às idéias claras universais, chega-se a uma certeza, “se duvido penso”. Em Meditações,
Descartes cita Arquimedes: “Arquimedes,
a fim de tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para
outro, não pedia nada mais que não fosse um ponto fixo e certo. Portanto, terei
o direito de alimentar grandes esperanças, se for bastante feliz para encontrar
apenas uma coisa que seja segura e incontestável”. Continua: “Presumo, então,
que todas as coisas que vejo são falsas... Então, o que poderá ser considerado
verdadeiro? A proposição “eu sou, eu existo”. Prosseguindo: “Mas o que sou eu,
agora que presumo que existe alguém que é espantosamente poderoso e, se me
atrevo a dizê-lo malicioso e ardiloso, que emprega todas as suas forças e todo
o seu empenho em enganar-me? Entre os atributos da alma, alcança o pensar e
verifica que “...o pensamento é um atributo que me pertence; somente ele não
pode ser separado de mim. Eu sou, eu
existo: isto é certo...eu sou alguma coisa verdadeira e verdadeiramente
existente, mas que coisa?... uma coisa que pensa”. Questiona o que é uma coisa
que pensa: “é uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que
quer, que não quer, que imagina também e que sente”. Se da máxima incerteza
surge uma primeira certeza, “penso”, esta é ainda uma certeza a respeito de
própria subjetividade. Nada fica garantido em relação a uma realidade exterior
ao pensamento. Surge o Cogito: “Penso, logo existo (Cogito ergo sum)”.
A existência do eu depende do pensamento.
O Cogito traz a certeza da existência do eu enquanto ser
pensante.
Na Terceira Meditação, Descartes reflete sobre Deus.
Baseando-se no princípio de causalidade, prova a existência de Deus: “... só
existindo realmente Deus (causa) pode-se explicar a existência de um ser finito
e imperfeito – o eu pensante- porém dotado da idéia de infinito e de perfeição
(efeito). Essa idéia estaria na mente do homem como “a marca do artista
impressa em sua obra“. “Pelo nome de Deus entendo uma substância infinita,
eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente e pela qual eu próprio e
todas as coisas que são (se é verdade que há coisas que existem) foram criados
e produzidos”. Assim, conclui: “... a certeza e verdade de toda ciência
dependem apenas do conhecimento do verdadeiro Deus: de maneira que, antes que
eu O conhecesse, não podia saber perfeitamente nenhuma outra coisa. E, agora
que O conheço tenho o meio de adquirir uma ciência perfeita...” (Quinta
Meditação). Logo, Deus se torna garantia de qualquer subsistência, e fundamento
absoluto da objetividade. Assim o meditador passa do conhecimento subjetivo
isolado de sua própria existência ao conhecimento do mundo externo, sendo Deus
garantia da verdade. Já que o intelecto é criação divina, e Deus é um ser
perfeito, logo não pode ser instrumento incerto para discernir a verdade. Em si
o intelecto não é perfeito, ignora muitas coisas, mas estas deficiências são
meras ausências, sendo que os seus poderes positivos (limitados) são
confiáveis, pois têm origem em Deus: “...do simples fato de que Deus não é
embusteiro e que, por conseguinte, não permitiu que pudesse haver alguma
falsidade nas minhas opiniões, que não me tivesse dado também alguma faculdade
capaz de corrigi-la, penso poder concluir com segurança que possuo os meios de
conhecê-las com certeza... não resta dúvida de que tudo que a natureza me
ensina contém alguma verdade. Porque, por natureza considerada em geral, não
entendo agora outra coisa a não ser o próprio Deus, ou a ordem e disposição que
Deus estabeleceu nas coisas criadas. E, por minha natureza em particular, não
entendo outra coisa senão o encadeamento ou o conjunto de todas as coisas que
Deus deu” (Sexta Meditação).
Lacan demonstra a analogia de Descartes e Freud, dizendo que
Freud, partindo dos seus sonhos, duvida, pois acredita que por trás do conteúdo
manifesto do sonho um “pensamento está lá, pensamento que é inconsciente, o que
quer dizer que se revela como ausente”. E, Lacan prossegue: ”é a este lugar que
ele chama, uma vez que lida com outros o eu
penso pelo qual vai revelar-se o
sujeito. Em suma, Freud está seguro de que esse pensamento está lá,
completamente sozinho de todo o seu eu sou, se assim podemos dizer, - a menos
que, este é o salto, alguém pense em seu lugar “.
É aí que Lacan articula a dessimetria entre Freud e
Descartes. Não se funda no encaminhamento inicial da certeza inaugural do
sujeito, mas “... nesse campo do inconsciente, o sujeito está em casa”. E, por
este progresso freudiano, o mundo é modificado “para nós”. A partir da
descoberta do inconsciente podemos falar em pensamento inconsciente, lugar da
verdade. Onde Lacan conclui: “Descartes não sabia, a não ser que fosse o
sujeito de uma certeza e rejeição de todo saber anterior – mas nós, nós sabemos
graças a Deus, que o sujeito do inconsciente se manifesta, que isso pensa antes
de entrar na certeza”. O correlativo do sujeito para Lacan não é mais da ordem
do Outro enganador (gênio maligno), mas da do outro enganado. Isto se observa
na experiência de análise, onde o sujeito teme entrar numa pista falsa. E
Freud, na análise dos sonhos, diz que é preciso considerar todo o sonho para
alcançar o seu conteúdo latente, lugar do pensamento inconsciente. Segundo
Lacan, “a diferença do estatuto que dá ao sujeito a dimensão descoberta pelo
inconsciente freudiano se prende ao desejo... Tudo que anima, o de que fala
toda enunciação, é desejo”.
Assim, tanto Freud como Descartes partem de um método comum
para atingir uma certeza. Descartes chega ao Cogito, “penso, logo sou“. Mas,
por não conhecer a descoberta freudiana de inconsciente, afirma “... o corpo,
por sua própria natureza, sempre divisível e o espírito, totalmente
indivisível. Porque, de fato, quando considero meu espírito, ou seja, eu
mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa que pensa, não posso aí distinguir
partes algumas, mas me concebo como uma coisa única e inteira” (Sexta Meditação
– itálico meu). Já Freud, que atribui instâncias ao aparelho psíquico, introduz
no pensamento o homem dividido.
Como Lacan afirma: “Não digo que Freud introduz o sujeito no
mundo... pois é Descartes quem o faz. Mas direi que Freud se dirige ao sujeito
para lhe dizer o seguinte, que é novo – Aqui, no campo do sonho, estás em casa.
Wo es war, soll Ich werden”. Lacan contesta a tradução
freudiana: ”o eu deve deslocar o isso”, aproximando a fórmula aos
pré-socráticos (de difícil interpretação), pois não se trata do eu ( ego) no soll
Ich werden, mas do lugar da rede dos significantes, isto é, o sujeito. “Lá
onde estava, o Ich - o sujeito deve advir”.
Descartes traz a luz, no século XVII, o mundo da
subjetividade. A consciência, no sentido cognitivo, pode ser uma invenção
cartesiana, tornando possível considerar a sua obra uma filosofia do eu (ego).
Freud, ao descobrir o inconsciente, traz a cena o pensamento inconsciente.
Lacan se refere a um sujeito, que é efeito do significante, “o inconsciente é
estruturado como uma linguagem”. O inconsciente é a grande descoberta
freudiana, que dá o salto para o sujeito do inconsciente.
Bibliografia
Cottingham, J. Dicionário Descartes. RJ: Jorge Zahar
1995.
Descartes, R.. Meditações. In Os Pensadores. SP: Nova
Cultural, 1999.
Freud, S.. A Interpretação de Sonhos. RJ: Imago,
1972. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud, 5).
Lacan, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
RJ: Jorge Zahar, 1996.
Laplanche e Pontalis. Vocabulário da
Psicanálise. Santos: Livraria Martins Fontes, 1970.
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