quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Sobre o discurso melancólico de Lambotte

                     Sobre o discurso melancólico de Lambotte
                    
                                                                    Rosa Jeni Matz

Introdução

Marie-Claude Lambotte aborda a melancolia em O discurso melancólico, partindo de três temas que surgiram em sua experiência clínica: a inibição, a problemática especular e o negativismo. Apoia-se no passo freudiano, que localiza em Neurose e Psicose (1924) a melancolia na categoria de neuroses narcísicas, categoria distinta das neuroses e psicoses. Citando Freud: “A neurose de transferência corresponde ao conflito entre o eu e o isso, a neurose narcísica ao conflito entre o eu e o supereu, a psicose entre o eu e o mundo exterior”.
Lambotte coloca entre parênteses o diagnóstico da melancolia como psicose. Aborda a melancolia através dos sintomas e do tipo de discurso que apresenta, da inibição à falha especular, do negativismo ao desmentido da realidade. Sua pesquisa se dá em três etapas: a primeira parte apresenta fundamentos energéticos da melancolia, centrando-se na dissociação do corpo e do espírito, que remete, por um lado, ao mecanismo de inibição, e por outro lado, à imagem do buraco. Menciona um funcionamento ideal excessivo no melancólico, mas a palavra aí se torna elemento sonoro mais do que consistente, apontando para uma falha de representação, uma insuficiência que impede o sujeito de apreender o objeto exterior sob a impulsão da projeção. O mundo se mostra vazio e desafetivizado ao sujeito, pois o imaginário não pode aí exercer, provando a especificidade originária da organização psíquica melancólica, uma desvitalização ou desrealização do mundo.
A segunda parte se dirige para o registro especular. A autodepreciação dos sujeitos melancólicos conduziu a autora ao estudo deste registro, à formação das instâncias ideais do eu, dirigindo-se a um tempo pré-especular, tempo da gênese da melancolia, que explica a patologia da imagem, a figura da moldura vazia. O modelo dinâmico do estádio do espelho de Lacan aponta para uma dupla identificação: a identificação com a forma da espécie, através do rosto da mãe (ideal do eu), e com o reflexo do espelho (eu ideal). O sujeito melancólico se encontrou com uma moldura vazia, dentro do qual não há imagem, nada. Portanto, “o eu não sou nada” do sujeito melancólico atesta a experiência traumática, significando o colapso da imagem especular e a condenação do destino. Somente pelo olhar do outro pousado em si que a criança pode se descobrir, sendo que na melancolia este olhar atravessou a criança sem a ver, resultando uma fixação na moldura vazia, no ideal do eu inacessível. Este vazio do olhar produz uma busca, por trás das coisas, de uma realidade inerte, uma verdade oculta, mas lá não há nada.  Por trás do espelho se tenta construir o cenário dessa estrutura, como reação primária de defesa de uma catástrofe: “a da desaparição do desejo no outro, já que o outro é quem deveria iniciar o sujeito na dialética do desejo”.
A questão da perda na melancolia dirige-se mais ao modelo original do que ao objeto, inacessível em sua exterioridade, sendo que a perda faz suceder uma identificação defeituosa do eu ideal, que em sua evanescência permanece suspenso confusamente aos traços de um ideal do eu potente. A instância ideal do eu determina a dinâmica melancólica, sendo que o ideal do eu, instância que corresponde à identificação parental e social, recobre quase totalmente o eu ideal, que corresponde à exaltação da singularidade do eu.  Seria uma falta de imagem singular, um “branco”, ou ainda uma “transparência”, utilizando a linguagem dos pacientes. É a falha especular que se apresenta, e com ela o sentimento de vazio, um vazio que parece não ter borda. Na ausência de uma moldura imaginária, que formaria a imagem primeira singular, elabora-se uma moldura simbólica, que dá ao discurso uma especificidade, ocorrendo uma dissociação entre a imagem e a palavra. O sentimento de vazio seria uma ausência de moldura imaginária, sendo que a desrealização no melancólico fica dependente do sentimento de vazio. Como diz um paciente: “sei que o mundo está aí, mas para mim, ele é somente uma cavidade, um vazio. ”Há uma impossibilidade do sujeito melancólico de projetar uma imagem narcísica dos objetos no mundo, pois seu lugar foi recoberto pela rigidez do ideal do eu. O sujeito “sente o “vazio” do mundo como uma desafetação, uma desvitalização, sem que, por isso, perca sua noção e sua estrutura”. As coisas e os seres desinteressariam o indivíduo, como se este não desejasse mais nada.
Diferentemente do esquizofrênico as palavras não regrediram às coisas. O mundo permanece acessível à comunicação formal, mas não interessa ao sujeito. Esta questão do desinteresse nos conduz a erotização, investimento libidinal, processo narcísico que permite ao indivíduo amar o outro através de sua própria imagem, logo aquilo em que o objeto se torna desejável, sendo que no melancólico ocorre um vazio de desejo e um vazio de sentimento.
O sentimento do melancólico de indiferença generalizada pode se relacionar às vicissitudes da pulsão escópica. A criança, na origem se vê em um primeiro olhar, o olhar da mãe, e este lhe fornece uma moldura, em cujos limites se constituem as zonas erógenas e suas projeções libidinais. No melancólico ocorreu um não-desejo, “um olhar que não olha”, e por não tendo encontrado o olhar desejante do Outro se viu reduzido ao nada. A melancolia se caracteriza pela afirmação deste nada que responde à tensão do olhar, à busca do desejo, banindo o investimento do objeto.
A relação com o Outro define a posição do sujeito, conduzindo ao primeiro contato traumático com a exterioridade. A situação da imagem especular se apóia em uma situação pré-especular, onde a exterioridade teria lugar de causa primeira, de modelo traumático, que no melancólico seria um aquém do olhar. Este momento pré-especular esclarece a passagem do auto-erotismo ao narcisismo, onde será situada a falha estrutural do sujeito melancólico, assim como a origem do seu apelo ao vazio que o símbolo “nada” recobre imperfeitamente. Ele chega a distinguir o interior do exterior, mas não pode distinguir neste exterior os objetos de prazer e desprazer, sendo que os primeiros correspondem ao eu-sujeito, e os segundos ao mundo exterior, ocorrendo a indiferenciação generalizada no mundo exterior. Trata-se de uma indiferenciação afetiva, encontrando aí a imagem freudiana da hemorragia interna ou do esvaziamento do eu, que caracteriza a desolação dos afetos e a autocrítica, onde a autocrítica toma o lugar dos afetos.
O negativismo é o modo de defesa do melancólico, diverso do negativismo do psicótico, do esquizofrênico. A atitude do melancólico sugere uma atitude particular de negação, onde o sujeito não nega a realidade perceptiva, e tampouco age como se ela não existisse, reconhecendo seus benefícios para os outros, atribuindo a si a inutilidade de todas as coisas. Este tipo de negativismo é denominado de “renegação de intenção” que incide sobre a intencionalidade da relação do sujeito com o mundo, onde não se nega a existência da coisa, mas nega que ela possa concerni-lo em algo. Lambotte afirma: “Entre o recalque e a foraclusão, o tipo de recusa que o sujeito melancólico opõe à realidade encontrará talvez sua expressão no desmentido, termo que, sem negar a existência da coisa, nega entretanto que ela diga respeito no que quer que seja ao sujeito. E, atrás da negação se perfila a alternativa do melancólico no que esta se deve ao ideal ou à morte, ou seja, ao tudo ou ao nada da desaparição do outro que o sujeito assume sob a figura da falta. Não resta mais que encerrar um tal desenvolvimento, na medida em que o sujeito ignora que continua a viver os efeitos de uma catástrofe à qual não se podem aplicar as categorias da linguagem, e a referência ao destino substitui desde então a experiência do real, na convicção de deter a verdade: a da morte”.
Três temas, três figuras da melancolia: a inibição generalizada e a imagem do buraco, o desfalecimento especular e a imagem da moldura vazia, o negativismo e a imagem do raciocínio circular.

Inibição
Freud afirma em Inibições, Sintomas e Ansiedade (1926), que a inibição é uma restrição normal de uma função, não tendo necessariamente também pode ser um sintoma. Conclui que as inibições são restrições das funções do ego que foram impostas como precaução, ou acarretadas por um empobrecimento de energia. Os estados de depressão podem acarretar inibição geral, como a melancolia.
Exemplo de inibição: “O inexplicável medo de “Little Hans” por cavalos era o sintoma e sua incapacidade de sair à rua era uma inibição, uma restrição que o ego do menino impusera a si mesmo a fim de não despertar o sintoma de ansiedade”.  Freud prossegue, dizendo que o que transformou a reação emocional em neurose foi “a substituição do pai por um cavalo...esse deslocamento, portanto, que tem o direito de ser denominado de sintoma”.
Em Luto e Melancolia (1917) Freud apresenta os traços distintivos da melancolia: desânimo profundo penoso, cessação de interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda e qualquer atividade, diminuição dos sentimentos de auto-estima, expressando auto-recriminação e auto-envilecimento, e culminando em expectativa delirante de punição.
O luto seria uma reação à perda de um ente querido, a uma abstração que ocupou este lugar. A perturbação de auto-estima está ausente no luto.
A melancolia pode se constituir por uma reação à perda de um objeto amado, e também reconhecida por uma perda de natureza mais ideal. O objeto pode não ter morrido, mas perdido enquanto objeto de amor. O paciente sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém. A melancolia estaria relacionada a uma perda objetal retirada da consciência, enquanto no luto nada existe de inconsciente a respeito da perda. No luto, a inibição e a perda de interesse são explicadas pelo trabalho de luto onde o ego é absolvido. Na melancolia a perda desconhecida resultará num trabalho interno semelhante, sendo responsável pela inibição melancólica, embora esta inibição nos parece enigmática, porque não percebemos o que se absorve tão completamente. “No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio, na melancolia é o próprio ego”. O melancólico apresenta uma diminuição da sua auto-estima, degradando-se frente a todos. No quadro clínico da melancolia a insatisfação com o ego constitui por motivos de ordem moral característica marcante. A chave do quadro clínico é que as auto-recriminações são recriminações feitas a um objeto amado, e deslocadas desse objeto para o ego do paciente.
Processo de constituição da melancolia: há uma escolha objetal através da ligação da libido numa determinada pessoa, mas devido a um desapontamento ou uma real desconsideração oriunda da pessoa amada, a relação objetal é destroçada. O resultado não é a retirada da libido desse objeto e o seu deslocamento para um novo objeto, o investimento objetal tem pouco poder de resistência, e é liquidado, sendo que a libido livre não é deslocada para outro objeto, dirige-se para o ego, estabelecendo uma identificação do ego com o objeto abandonado. Assim, a sombra do objeto caiu sobre o ego, sendo que o ego pode ser julgado por um agente especial como se fosse um objeto abandonado. A perda objetal se transforma numa perda do ego e o conflito entre o ego e a pessoa amada numa separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado pela identificação.
Surge uma contradição: forte fixação no objeto amado e o investimento objetal com pouco poder de resistência. Otto Rank afirma que esta escolha objetal tem uma base narcisista: o investimento objetal ao se defrontar com obstáculos retrocede para o narcisismo. A identificação narcisista com o objeto se torna substituta do investimento erótico, e apesar do conflito com a pessoa amada não é necessário renunciar a relação amorosa. Há uma regressão de um tipo de escolha objetal para o narcisismo original. A tendência a adoecer da melancolia reside na predominância de um tipo narcisista de escolha objetal. Seria uma regressão do investimento objetal para a fase oral narcisista da libido. O narcisismo, como referência o mito de Narciso, é o amor que se tem pela imagem de si mesmo. Surge na escolha de objeto dos homossexuais: “tomam-se a si mesmos como objeto sexual, partem do narcisismo e procuram jovens que se pareçam com eles, e a quem possam amar como a mãe os amou a eles”. No Caso Schreber (1911), Freud afirma que o narcisismo seria a fase intermediária entre o auto-erotismo e o amor objetal. “O indivíduo começa por tomar a si mesmo ao seu próprio corpo, como objeto de amor”.
O narcisismo primário é o estado precoce em que a criança investe toda a sua libido em si mesma. Entre 1910-15 Freud coloca esta fase entre o auto-erotismo e o amor do objeto, contemporânea ao aparecimento do ego, a unificação do indivíduo. Na segunda tópica é um primeiro estado de vida, antes da formação do ego, e é suprimida a distinção entre auto-erotismo de narcisismo.
O narcisismo secundário é o retorno da libido ao ego, retirada dos investimentos objetais.
A melancolia toma do luto alguns de seus traços e do processo de regressão outros. A perda do objeto amoroso manifesta a ambivalência, e se o amor pelo objeto se refugiar na identificação narcisista, o ódio entra em ação no objeto substitutivo, o degradando. 
Através da análise da melancolia se observa que o suicídio acontece devido ao retorno do investimento objetal para o ego, tratando-se a si mesmo como objeto, portanto, dirigindo para si mesmo a hostilidade do objeto que se torna mais poderoso que o ego.
A melancolia se comporta como uma ferida aberta atraindo para si a energia proveniente de outras direções, e esvaziando o ego até este se tornar totalmente empobrecido.
Nos Manuscritos E e G das Cartas a Fliess (1895) Freud assinala que a grande tensão ou excitação sexual psíquica, que parece estorvar o psiquismo, cava uma espécie de furo no psiquismo, pelo qual a energia sexual psíquica, a libido, não cessa de escoar. Na melancolia a apresentação (da coisa) inconsciente do objeto foi abandonada pela libido”.
São três as pré-condições da melancolia: perda do objeto, ambivalência, e regressão da libido ao ego, sendo que o último fator é responsável pelo resultado.
Freud afirma em Neurose e Psicose (1924): “A neurose é o resultado de um conflito entre o ego e o id, ao passo que a psicose é o desfecho análogo de um distúrbio semelhante nas relações entre o ego e o mundo externo”.
 Há doenças que se baseiam num conflito entre o ego e o superego. A melancolia é um exemplo deste grupo, denominado de “psiconeuroses narcísicas”. Separa a melancolia das outras psicoses.
Assim, as neuroses de transferência expressam o conflito entre ego e id; as neuroses narcísicas, o conflito entre ego e superego; e as psicoses, o conflito entre ego e o mundo externo.

A catástrofe narcísica

Para Lambotte, a trama causal da melancolia deve ser buscada aquém de uma perda ocasional, nos avatares da formação do eu. Em 1916, em Algumas idéias sobre o desenvolvimento e regressão – etiologia” (conferência XXII), Freud acrescenta um terceiro modelo de regressão referente às neuroses narcísicas: a regressão quanto a organização do eu. Afirma que há dois tipos de regressão encontradas nas neuroses de transferência: o retorno aos objetos que inicialmente foram investidos pela libido, que são de natureza incestuosa (histeria); e o retorno da organização sexual, como um todo, a estádios anteriores, como a neurose obsessiva, onde a regressão da libido se dirige à fase preliminar da organização sádico-anal. Lambotte vai explicitar os fundamentos estruturais da melancolia, que são compreendidos como matriz egóica conflitual e defeituosa do sujeito, e os processos psíquicos resultantes de defesa e sustentação do sujeito.
A fase fálica é o momento do desenvolvimento infantil onde culmina o complexo de castração. 
Lacan apresenta o -φ em relação com a castração. Na castração a falta é no objeto, falta algo à mãe, enquanto é situada no lugar do Outro, o falo falta à mãe. Correspondendo ao desejo, na castração, o – φ é o objeto imaginário, o falo na relação de objeto. O – φ seria o que falta no objeto, e não a falta de objeto. Seria um momento imaginário da falta do objeto imaginário. Imaginário é reconhecer que a mãe tem falo. O – φ é a negativização do falo. Quando opera o falo simbólico Ф (phi maiúsculo) é possível o – φ. Quando a função fálica opera é possível o reconhecimento da castração na mãe, negativizando o falo. O filho deixa de ser o objeto real de satisfação da mãe.
Em a Subversão do sujeito e dialética do desejo (1960), Lacan afirma que o princípio do sacrifício é simbólico, a infinitude do gozo marca uma proibição, que para ser constituída implica um sacrifício, sendo o falo o símbolo. O falo, a imagem do pênis, é negativizado em seu lugar na imagem especular. Isto predestina o falo a dar corpo ao gozo na dialética do desejo.
A fantasia contém o -φ (phi minúsculo), função imaginária da castração, que se insinua no neurótico sob o $ da fantasia. A castração imaginária, sofrida no início pelo neurótico sustenta o seu eu forte.
O esquema ótico pode evidenciar os lugares da falta (-φ), e do resto, o objeto a. Em seu seminário sobre A Angústia (1962), Lacan vai precisar a interação de a e de –φ, manifestações do objeto a como falta, o objeto a sob a forma do -φ. No transvasamento libidinal do ego ao outro, subsiste um resto, o a. Nem todo investimento passa pela imagem especular, há um resto, em tudo que há determinação imaginária, o falo virá em forma de uma falta, de um –φ. O falo é uma reserva operatória, que não é representada no nível do imaginário, apartada da imagem especular. A reserva traduz-se no espelho como –φ. Não participa do imaginário senão sob a forma de falta. O objeto a não aparece no espelho, pois não é especularizável. Não há imagem da falta. No decorrer da transferência da libido narcísica para libido de objeto, no lugar do resto a, surge a falta no outro –φ. A falta no Outro provoca o desejo no sujeito. E, ao contrário, o que falta ao sujeito no lugar do a, sua reserva narcísica suscita o desejo do Outro. No registro imaginário o falo aparece como falta, o –φ. O falo é uma reserva operatória, que não é representada no nível do imaginário, que é cortada da imagem especular. O –φ não entra no imaginário.
Em O mal-estar na cultura (1930) Freud afirma: “O Destino é encarado como um substituto do agente parental. Se um homem é desafortunado, isso significa que não é mais amado por este poder supremo, e ameaçado por esta falta de amor, mais uma vez se curva ao representante paterno em seu superego, representante que, em seus dias de boa sorte, estava pronto a desprezar”.
Lacan, em seu seminário A Angústia (1962-1963), através do estudo de um caso sobre a homossexualidade feminina apresentado por Freud, A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher (1920), comenta o tema da janela - (fênetre – podemos associar com faire naître = fazer nascer), como marcando um limite ilusório desse mundo do reconhecimento, daquele que é denominado de cena. Introduz o niederkommt que aparece no texto analisado por Freud como cair e dar a luz, onde a tentativa de suicídio da jovem faz surgir o desejo inconsciente de ter o filho do pai e a realização de uma autopunição. “A confrontação desse desejo do pai, sobre qual tudo em sua conduta está construído, com essa lei que se presentifica no olhar do pai, é isso pelo qual ela se sente definitivamente identificada, e ao mesmo tempo rejeitada, dejetada fora da cena”. Dá-se o “deixar cair, o deixar-se cair”. Para Lacan, Freud negligenciou neste caso o lugar do pequeno a, pois o objeto a se constitui na relação do sujeito com o Outro, se separando dele como resto.
Esse “deixar cair” (niederkommen lassen) se relaciona com a passagem ao ato. No momento de maior embaraço, a emoção desordenando o movimento, o sujeito se precipita da onde está, do lugar da cena, para fora da cena. A passagem ao ato está na fórmula da fantasia do lado do sujeito, $◊a, onde aparece ao máximo apagado pela barra, o sujeito se deixa cair, em vez de deixar cair o a. Caracteriza-se pela evasão da cena.
Na melancolia, a janela é o limite entre a cena e o mundo, sendo que através do ato do suicídio o sujeito faz retorno à sua exclusão fundamental. Na passagem ao ato o sujeito se identifica em absoluto ao a, ao qual ele se reduz. O melancólico afirma a castração num recobrimento do imaginário e do real, nunca a colocando em dúvida, num negativismo absoluto, dirigindo-se ao real, que não falta nada, que se basta a si mesmo, e “que ele se apressa em atravessar como o primeiro olhar fizera com o seu próprio corpo”, repetindo no suicídio o seu nascimento.                                                                                                                             A afirmação da negaçãoo negativismo apresenta o paradoxo de fornecer ao sujeito o meio de defesa contra as agressões exteriores. “Eu não sou nada”. O negativismo surge na incidência do desfalecimento da constituição especular, mecanismo primário de defesa que a desaparição súbita do Outro em relação ao sujeito desencadeou. Dizer “não” é uma forma de ser contra. O sujeito repele as possibilidades de investimento, afirmando que elas não lhe estão destinadas.
Na falta de uma imagem narcísica, o melancólico encontra o nada que o define. Descobre a verdade da ilusão do eu. Defende-se de uma catástrofe original, recusando qualquer investimento do objeto. O sujeito não nega a realidade perceptiva, reconhece seus benefícios para os outros, atribuindo a si a inutilidade de todas as coisas.
Lacan afirma no seminário A transferência (1960-61) que “o sujeito não pode investir contra nenhum dos traços daquele objeto que não se vê, mas nós analistas ...podemos identificar alguns deles: Nada sou, não sou mais que um lixo”. E prossegue: “não se trata nunca de imagem especular. O melancólico não diz a vocês que tem má aparência, ou uma cara feia, ou que é corcunda, mas sim que é o último dos últimos, que acarreta catástrofes para toda a sua parentela, etc. Em suas auto-acusações, ele está inteiramente no domínio do simbólico. Acrescentem aí o ter: ele está arruinado”. Para Lacan o melancólico está no simbólico, do lado do ser estão as auto-acusações, do lado do ter é a ruína, o ‘eu não sou nada”. O sujeito é destacado da realidade não pela percepção, mas pelos afetos.
Ocorre o suicídio do objeto: “Um remorso, portanto, a propósito de um objeto que entrou, de algum modo, no campo do desejo e que, por sua ação, ou por qualquer risco que ocorreu na aventura, desapareceu”.Mal se introduziu no campo do desejo, na suspensão ao desejo do Outro, o sujeito melancólico se confronta com o desaparecimento do Outro, identificando-se com o nada como o único resto do Outro. O significante “nada” atesta o traço deixado pelo Outro e garante ao sujeito melancólico a sua inscrição na cadeia simbólica, afirmando a castração mais do que a renega. São duas as modalidades do nada melancólico: “eu não sou nada” e “eu sou nada”. “Eu não sou nada” implica que poderia ter sido alguma coisa, enquanto “eu sou nada” caracteriza a sua identidade.
A suspensão de um movimento in statu nascendi arremessa o sujeito na sideração, tendo como defesa primária a este trauma a rejeição de todo investimento à realidade e da realidade. Ignorando que sucumbe aos efeitos da catástrofe original, não resta outro recurso senão apelar para um Destino que ele fornece a onipotência do Pai mítico, e sob o qual se perfila a crueldade de um supereu arcaico. Faz do destino o significante da castração, aquele que deveria sempre faltar, dando a castração uma origem mítica, impedindo-o de dar uma origem pessoal. No lugar faltoso, que seria ocupado pelo acaso dos signos, o melancólico coloca o significante destino, tendo como uma das funções manter a coerência do discurso.
“O sujeito melancólico se encontra colocado frente a algo inscrito em negativo, sem significação e sobretudo sem denominação”. Lambotte interroga “se este traço inominável de algo que teria desaparecido depois de ter freqüentado um lugar que o desejo não teve tempo de especificar não teria caído inteiramente neste resto irrepresentável que Lacan designa com o símbolo –φ, espécie de reserva libidinal que não se projeta e que indica, no entanto, a fragilidade da imagem especular e a inconseqüência do Outro ( “Não há Outro do Outro”) “. E, questiona: “Teria ele, pois este traço sem nome, carregado com ele a imagem do melancólico a ponto de que este mais não reconheça seus próprios traços e que não espere mais nada do mundo? “.
Lambotte afirma, baseando-se em Lacan, que este signo –φ, “que se mostra inteiramente operatório para a nossa construção metapsicológica, não se investe na imagem especular; irredutível ao corpo próprio, ele se revira no narcisismo primário...à nível do auto-erotismo, à nível de um gozo autista...permanecendo aí como eventualmente o que intervirá como instrumento na relação com o Outro”. No que se refere ao sujeito melancólico esta reserva libidinal –φ, mais do que nutrir, parece ”ter lançado contra ele todas as fontes e todos os investimentos do sujeito, assim contribuindo para empobrecê-lo sem consideração, até tirar-lhe sua identidade. “Eu não sou nada, não pára de repetir o melancólico, e o nada se escava em proveito dessa reserva sem lugar...suspensa, cuja energia alimenta o negativismo automático do sujeito, sem que ele próprio possa suspendê-lo ou pô-lo em movimento”. Associa este estado com a hemorragia interna das Cartas a Fliess, com o esvaziamento do Luto e Melancolia, sendo que o buraco no psiquismo aponta para esta relação ao Outro, à imagem especular, e à castração. 
O sujeito melancólico busca seus próprios traços no rosto do Outro, a quem concede um modelo ideal (ideal do eu), que o avalia como nada. Este buraco que se escava, na melancolia, ilustra o movimento da energia libidinal que não tem objeto para se ligar, por causa desta primeira morte, o suicídio do objeto. O desaparecimento precoce do objeto teria desviado o melancólico do mundo, e faz surgir a repetição do mesmo traumatismo sob a forma do negativismo, que afirma o inelutável da castração. Impedido do investimento especular, o sujeito permanece num gozo auto-erótico, caracterizado pela falta da imagem de si, quanto pela fixação em pulsões parciais, sendo o negativismo um puro prazer de órgão sob a forma de expulsão. Falta de si = falta da forma completa (auto-erotismo).
No momento da constituição da imagem narcísica o objeto a se destaca, cai, figura este resto, que não cessa de alimentar a tensão do desejo em direção ao Outro, retirando da reserva libidinal -φ, energia para a sua ação. O ponto do desfalecimento melancólico do desenvolvimento do eu, o a, objeto causa de desejo, aparece no melancólico assimilado a um resto. Este resto sem ligação, o nada, pode se confundir com a reserva designada pela letra –φ, local do “turbilhão melancólico e operação de recobrimento”, delineando-se a posição masoquista que o sujeito ocupa frente ao Destino, “a única referência exterior que ele é levado a reconhecer”.
Para o masoquista o desejo do Outro faz a lei, não interrogando a falta que tal desejo deve deixar aparecer, pensa o Outro como modelo absoluto. O sujeito melancólico parece adotar esta atitude, já que se nega, respondendo a ordem do destino, que ocupa o lugar do objeto de desejo desaparecido de seu campo, primitivamente, adquirindo como “única identidade o nada”, o “último papel”, que é o ”refugo que a potência anônima ainda defende e mantém”. Lacan diz que o masoquista aparece na função de dejeto, aparência do a, do jogado ao lixo, sem poder colocar o objeto “alhures”. E onde colocar este a, questiona Lambotte, já que o sujeito retirou seus investimentos do mundo exterior, e a obstrução libidinal não tem onde se fixar? O melancólico por falta de identificação e de imagem narcísica, seria conduzido a perceber o objeto diretamente, isto é, como nada se a “lógica do destino não figurasse uma mediação graças à qual um certo efeito de racionalização e um certo modo de gozo arcaico pode se instalar”. Daí a defesa contra a diluição do eu através do destino, numa lógica da negação/expulsão, acompanhada de um prazer de órgão (satisfação auto-erótica das pulsões parciais – através da excitação de uma zona erógena encontra o seu apaziguamento no próprio lugar em que se produz, ex.: o chupar). O melancólico não teve acesso a “nova ação psíquica” (Freud - Introdução ao Narcisismo), a passagem do auto-erotismo ao narcisismo, como diz Lacan, a esta “nova...Gestalt”.
                                                                   
Bibliografia
Dor, J. Introdução à leitura de Lacan. Porto alegre: Editora Artes Médicas Sul, 1992.
Freud, S.. Além do princípio do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
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Freud, S.. Inibições, Sintomas e Ansiedade. Rio de Janeiro: Imago,1976.
Freud, S.. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
Kaufmann, P.. Dicionário enciclopédico de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
Lacan. A Angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
Lacan, A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
Lambotte, M.-C.. O discurso melancólico. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1997.
Palacios, S. A. A ética do desejo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1991.

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