quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

O vazio segundo Pierre Fédida


O vazio segundo Pierre Fédida – uma reflexão

                                                                     
                                                                                  Rosa Jeni Matz

Após a leitura do belíssimo texto de Fédida, “Une parole qui ne remplit rien”, comecei a pensar como poderia me aproximar deste vazio, um vazio tão poético, tão vital. Considerei que precisaria mergulhar em seu texto, no universo do seu estilo, entrar em seu mundo teórico, navegar em seus mares, como também, despir de toda uma roupagem que camuflaria o sentido que o autor busca encontrar para o vazio, para surgir a possibilidade de criar, aqui, um espaço vazio para a fala, a escuta, a escrita. O tecido do texto de Fédida é composto de um estudo metapsicológico (psicanalítico), entremeado à fenomenologia e à poesia. Assim é necessário para penetrar neste universo, semear essas três ferramentas, criando um espaço e tempo outro, para que o vazio possa se instalar.
Pierre Fédida é psicólogo, psicanalista e filósofo. Tem se dedicado ao estudo das questões atuais da depressão. Na sua apreensão do psíquico o tempo é outro, contrário ao da tecnologia, ”este tempo que não passa” (Pontalis), e aí se encontra a relação da depressão com o psíquico. Diante do depressivo, freqüentemente, encontra-se um “fechamento do tempo” no seu terreno psíquico. Há uma parada, imobilidade, fixidez na vivência depressiva, que nos remete a uma das formas mais primitivas do psiquismo, “...este tempo parado  talvez exponha o lugar e espaço, o fundo  em relação ao qual ecoa o tempo da psique. “. Pode ser que este seja o tecido de base que condicione o tempo da psique, formando a dimensão fenomenológica da tópica - o negativo, ou “o palco do acontecer psíquico”. A idéia de aparelho psíquico é coextensiva a uma idéia de depressão, podendo ser a depressão o paradigma da psique em sua totalidade. Ela toca a forma basal, aquilo que se situa no negativo do psiquismo.
Em seu trabalho O agir depressivo formula a seguinte hipótese: “a depressão solicita a fenomenologia em seus atos de compreensão do fundamento temporal da subjetividade“. Conceitos, que hoje aparecem em estudos sobre casos-limite e limites do analisável, como o vazio, o espaço subjetivo, a temporalidade depressiva, podem encontrar na fenomenologia seus fundamentos.
Husserl fundou a fenomenologia. Seria “o retorno às coisas elas próprias”.      Privilegia a concepção da intencionalidade da consciência, a consciência se orienta para as coisas, é “consciência de”, reabilitando o “direito da consciência ao conhecimento de si própria e do mundo”. Está atenta ao “vivido”, substituindo as situações explicativas para o descritivo do “que se passa” da perspectiva daquele que vive uma situação, orientando-se para o concreto, sendo a filosofia do vivido. Husserl confere papel fundamental à subjetividade. Funda uma compreensão racional do mundo, sob a forma de fenomenologia transcendental, ou idealismo do sujeito constituinte, apresentado nas Meditações Cartesianas (1930). Husserl diz que “a consciência ou o ser psíquico é todo o fenômeno que será preciso distinguir da coisa fenomenal que aparece. O fenômeno não é a aparição de qualquer coisa, é o próprio ser do aparecer; nele, “não há qualquer distinção entre aparecer e ser “. O fenômeno é caracterizado por Husserl  como o “vivido “(“a consciência não é experimentada como “aparecendo a si própria “, mas é absolutamente inerente a si própria“).  A “coisa fenomenal “pode ser considerada como aparência, como aparição, ela é visada como coisa. Não é parte do fenômeno, que não é uma coisa , mas é dada no fenômeno com o seu sentido e o seu ser, já que o fenômeno, relativamente à coisa, é esta intenção.  O a priori da fenomenologia husserliana é o vivido, que se dá pela correlação entre os vividos e os objetos visados neles. A consciência não tem interior, está toda no aparecer do vivido, não havendo nem dentro nem fora. A evidência (ato de consciência), ou a intuição, seria a presença, o encontro da própria coisa, “a experiência vivida da verdade”. A evidência é definida por uma estrutura da consciência que “se preenche” na presença atual da coisa que ela visa.  A fenomenologia tem como objeto as essências. A essência é o preenchimento do sentido numa evidência. A essência é “fundada“, não plana acima das coisas reais: “a essência“ vermelho “exige a aparição do “momento” vermelho de uma coisa“;  “a coisa percebida, o indivíduo na sua irredutibilidade de ser, dados na experiência, são portanto o objeto originário da fenomenologia“. Esta reflexão em Husserl se denomina “redução”, seria colocar entre parêntesis, époché, ou “suspensão da tese do mundo”; a redução do mundo à sua imanência, como correlato intencional; seria a destruição do pré-dado na experiência. Revela a indissociável relação de duas “coisas” entre si, pela sua intencionalidade. O sujeito é sujeito para o mundo. O sujeito aparece como espectador de si e do mundo, como fonte e origem do sentido. A subjetividade, como doadora de sentido e sentido do ser é designada como subjetividade transcendental, sendo que a fenomenologia husserliana apresenta-se como um idealismo transcendental. Em Meditações Cartesianas diz que “...o ego transcendental ... contém todas as variantes do meu ego empírico, portanto, este ego como pura possibilidade”. A exploração do eidos do sujeito tem por corolário a do mundo. A subjetividade transcendental aparece como intersubjetividade, na “constituição” dos outros. “O outro é constituído num emparelhamento analógico, desenvolvendo-se contemporaneamente à constituição do meu próprio eu psicofísico, da minha corporeidade. Aparece no meu enquadramento imediato, pelo seu próprio corpo, pelos seus traços, numa “natureza primordial” ainda não objetivada. A sua presença estrutura o meu espaço. Já está  “acolá “ quando eu  estou “aqui “, modo particular de “ apresentação “ da “ própria coisa” ... É a este corpo de outrem que eu atribuo o “alter ego “ na sua dupla face empírica e transcendental. “ O inconsciente, compreendido, fenomenologicamente é “um modo limite da consciência “ (Logique).
Fédida formula a fenomenologia do vazio, relacionada à vivência depressiva, afirmando em O grande enigma do luto: a depressão define-se por “uma posição econômica que diz respeito a uma organização narcísica do vazio (segundo uma determinação própria à inalterabilidade tópica da psique), que se assemelha a uma “simulação” da morte para se proteger da morte” E, prossegue, afirmando que “a psique – ... talvez não seja nada mais do que a  metáfora depressiva do vazio”, e ainda  sobre o vazio :  “o vazio – protótipo depressivo do espaço psíquico. “
Em O agir depressivo afirma que “a depressão é uma figura do corpo. Figura cuja expressividade é desenhada ao vivo na impressão de um rosto, sensível como um espelho, no peso estirado ou tenso dos membros, na visibilidade aguda e dolorosa da pele... Esta figura do corpo assim abandonada à expressividade transparente de um traço é considerada como o limite que define a vigilância de um vazio chamado psique. Estranha  inversão paradoxal, que nos faz escutar que a psique – metáfora primitiva de toda depressão – poderia ser o vazio do qual o corpo é a figura imóvel de transparência.  A impressão é expressiva desde que o corpo desenhe ao vivo  - com toda a massa de sua imobilidade - os incessantes movimentos daquilo que aí se age. E a imobilidade do corpo, como se a ausência fizesse dela o signo de seu lugar, é a posição – talvez mesmo a postura  - de uma situação de vigilância no silêncio de uma noite que se agita.”
Fédida diz que o vazio é como o egoísmo, sendo impossível sair deles.
Considera o vazio como um investimento do eu, o eu investido como órgão. Na hipocondria, o órgão do doente somático está cheio demais, o eu se transforma em egoísta depois de produzir o vazio em torno dele, seria a retirada dos investimentos libidinais, corolário da doença orgânica (Freud). Pelo vazio, estar protegido do trauma? Pelo trauma sair do vazio. Paradoxo. Nomeia o vazio de psíquico, como hipótese do isolamento, da privação sensorial como meio de conservação de si, em estado de perigo. Diz que não devemos pressionar o paciente a sair da depressão: “ ...na verdade ele não tem que sair dela “. O sentimento de vazio, expresso pelo paciente durante a análise, é a experiência psíquica da instância, e da “espera de sentido que pode manter toda a existência em suspenso, como em condição de não- existência. “ Como Winnicott afirma , é um estado passado diverso do trauma, que não pode ser rememorado, correspondendo a  uma organização narcísica primária do eu “antes de começar a se preencher”. O vazio seria “uma condição prévia ao desejo de recolher”. Assim Fédida diz que a descoberta depressiva do vazio durante a análise pode ser o ponto de apoio da cura.
Assim, o vazio não é a morte. Mas, como a morte se garante na representação que dá ao corpo um espaço atemporal. Este espaço é descoberto não pela ausência, mas pelo retraimento, suspensão, da ausência. É o espaço de um corpo (figura lisa e plástica ) sem nenhuma inscrição, virgem.
Ao se referir a Michelle, encontramos o teatro do vazio, após o roubo de seus escritos íntimos dirigidos ao outro imaginário. O vazio se relaciona com o assassinato deste duplo imaginário, que suprime o luto e a nostalgia, “a amnésia do luto do duplo imaginário”.
Fédida questiona: “Seria o vazio a ausência ? ...aquilo que acontece com uma ausência cujo objeto foi perdido. Uma ausência sem ausente? Mas seria ainda ausência essa espera de nada, semelhante a um envelope vazio? A ausência pode existir fora do tempo? “
                 Diz que o luto é uma experiência interna de um tempo que faz crescer o espaço interior, logo o eu não está vazio. O paciente diz que o mundo ficou vazio pela morte, ou separação, do objeto amado. “O trabalho de luto restitui um projeto à projeção – ele abre um tempo“ O vazio está atrás das projeções. A espera protege, reconstitui um limite.  “Vazio, estado de suspensão, de flutuação como uma levitação“, diz uma paciente. O luto como possibilidade de sair do vazio, ou a vergonha. Outro paciente afirma: “o vazio é a vivência do presente que faz obstáculo à ameaça vindoura de um desabamento... e a ameaça do desabamento... é solicitada como constituinte (capaz de dar um conteúdo imaginário ao eu). “Desmoronamento melancólico como sangria do vazio, saída terapêutica da depressão. “O vazio não alimenta qualquer queixa, não se autodeprecia: ele é simplesmente nada e portanto não é nada”.
O vazio aparece como espaço possível de uma clínica, onde o brincar, o jogar, a palavra se instaura no conjunto falar e escutar, espaço onde só o vazio pode engendrar o movimento. Convido a vocês a pensar sobre um jogo, onde a possibilidade de jogar implica na existência de uma casa vazia. Os dados e as pedras são seus acompanhantes neste deslizar, só possível devido as casas vazias. Segundo Deleuze “somente encontramos o paradoxo da casa vazia; porque este é o único lugar que não pode nem deve ser preenchido, mesmo por um elemento simbólico. Deve conservar a perfeição do seu vazio para se deslocar em relação a si mesmo e para circular através dos elementos e das variações de relações. Simbólica, deve ser para si mesmo o seu próprio símbolo e privar-se eternamente da sua própria metade que seria suscetível de a vir ocupar. “
Fédida se refere à instalação do vazio pelo tratamento analítico. Pode ser expresso por metáforas corporais, mas estas metáforas corporais não designam o vazio, pois elas o mantêm no espaço, histérico ou hipocondríaco, de uma representação visual. “O vazio é instalado na sessão pelo intervalo – que chamamos tela – que engaja toda significação espacial do silêncio do analista no próprio interior da palavra do paciente”. Este espaço não é o modelo do continente, símbolo do corpo materno como lugar de regressão e de conter e elaborar as angústias projetadas. Não é o compreender de um continente, de se identificar com o desejo da mãe, e não mais sair do seu corpo, como se o corpo ignorasse o vazio. Continente só pode ser utilizado não como imagem, mas como dimensão da relação da palavra, onde o silêncio se torna o lugar do dito no mover do não dito, a relação da fala com a sua escuta e o que nela se escuta. A análise, analuein, é o duplo movimento recíproco e complementar do desligamento dos fios e do tecer do tecido.
Fédida questiona: “Como a palavra se inscreve no analista? E pode-se realmente falar de inscrição?... Qual é portanto a memória do analista, e o analista, ele pensa?“ Diz que o analista não é o vazio, e se fosse uma cavidade primordial, a imagem só seria a ilusão de querer saber como ele é feito. Ele não é vazio, mas é o vazio que dá corpo ao analista. O corpo do analista pode ser figurado como “uma presença que funda a linguagem no ato de escutar a ausência”.
O corpo na análise se refere ao negativo do vazio. É o contrário de um corpo sem órgão, o vazio poderia ser denominado o negativo do órgão – “inversão paradoxal do protótipo hipocondríaco do órgão genital que pode ser compreendido a partir de uma relação com um corpo sem órgão, ou ainda de um corpo reduzido a ser apenas um órgão. A imaginação corporal do vazio levaria, nessas condições, ao limite extremo de uma representação – espécie de representação que perdeu conteúdo e limite. O vazio seria o protótipo depressivo da psique – o órgão psíquico plenamente investido sem representação”.
Antonin Artaud traz o conceito de corpo sem órgãos, retomado por Deleuze, no sentido de corpo descodificado, onde há anulação dos órgãos, são fluxos descodificados, onde a oposição está em relação ao organismo, a este tipo de organização, que codifica os órgãos. Em A Introdução ao Narcisismo (1914), Freud afirma que “o hipocondríaco retira tanto o interesse quanto a libido - a segunda de forma especialmente acentuada – dos objetos do mundo externo, concentrando ambos no órgão que lhe prende a atenção”. E, continua: ”... o protótipo familiar de um órgão que é dolorosamente delicado, que de alguma forma é alterado e que, contudo, não está doente no sentido comum do termo, é o órgão genital em seus estados de excitação. Nessa condição, ele fica congestionado de sangue entumecido e umectado, sendo a sede de múltiplas sensações”.  A hipocondria poderia fornecer o modelo de um órgão psíquico vazio de representação: ao se falar de doentes somáticos incapazes de fantasmar, apesar de diferenças clínicas, há uma semelhança estrutural com a depressão do vazio, já que o corpo doente seria o objeto de representação para um pensamento vazio.
Nenhuma imagem é possível de falar do analista como continente. Qualquer metaforização espacial é impotente para designar o corpo como tempo. O vazio é o único espaço interior em que o tempo é restituído, “precisamente para que ele seja um espaço e não o vazio”.
As projeções são o não-dito na fala. Fédida afirma que a projeção seria uma restituição reparadora de um duplo numa problemática pessoal de identidade. Evidencia a importância dos mecanismos de identificação projetiva na constituição imaginária do duplo (única garantia de uma identidade), sendo que o vazio é o suporte funcional da projeção. Simone diz: “Sempre tive necessidade de preencher o meu vazio fabricando indefinidamente iguais, semelhantes, outros eu – mesma”. A impulsividade e a impaciência de Simone demonstram a “sua incapacidade de dar lugar em si própria a um vazio que seja tempo e silêncio”. Levanta a hipótese de que “o narcisismo significa-se primitivamente como a morte de um duplo imaginário com a vocação ideal (nos devaneios e fantasias) de ser o mesmo, o semelhante, o idêntico a si... Uma das maiores significações do vazio refere-se à falência da constituição temporal do outro numa relação implicando a ausência“ (itálicos meus). Os processos de identificação projetiva adquirem valor supletivo. Através da projeção ocorreria uma tentativa de restauração paliativa de uma identidade parcial. Assim, pergunta se o falso self seria a forma de atribuição de um duplo projetivo. Articula a temporalização subjetiva (o self) com a descoberta do outro enquanto ausente (organização do espaço interior).
A significação temporal da relação projeção-elaboração: “O dito do não-dito é fundado no analista como capacidade de um espaço interior. ”Esta tomada de consciência por Jacques, se refere a descoberta do que está “atrás do analista como dimensão temporal de uma inscrição: sem representação, a palavra, na análise, não tem memória mas passa por traços que dão ao termo associação o poder de atualizar o inatual do vivido infantil com relação a uma atenção”. E Fédida acrescenta: “e se colocarmos a questão da inscrição, na memória, de suas falas, tal memória atribuída ao analista não poderia nem registrar, nem conservar, sem aprisionar a fala”. O por trás escreve o roteiro de uma cena primária. O atrás para Jacques provoca o retorno de sensações e lembranças passadas. “O atrás é o lugar temporal (imaginário) de constituição (ou de re-constituição) da ausência cuja toda projeção vem a ser compreendida, na própria palavra, pela elaboração que a ausência torna possível.”
 O espaço interior é então a obra de um dito que engaja o légein (dizer e falar), no sentido que Heidegger dá ao fragmento de Heráclito, como “pousar”, ”estender diante” e “recolher”; o dito é obra do tempo para ser ouvido, de uma escuta que faz “da ausência a única pousada possível para uma fala tentando manter-se em seu dito”, de uma palavra com o poder de colher e guardar. O texto de Heidegger é o Logos, e encontramos a seguinte tradução de Carneiro Leão do fragmento 50 de Heráclito : “Auscultando não a mim mas o Logos, é sábio concordar que tudo é um.” Heráclito afirma a unidade de todas as coisas. Heidegger traduz o logos como o ”pousar que recolhe”, o legein como “deixar-estendido-diante-em-conjunto”. O dizer dos mortais realiza-se, desde os primórdios, como pousar. ”Dizer é o ato recolhido que recolhe e que deixa as coisas estendidas uma perto das outras... O escutar é o primeiro o ouvir recolhido... É no legein enquanto homologein que se desdobra, em sua essência, o escutar propriamente dito... O Logos desvela e vela... é em si ao mesmo tempo um desvelar e um velar”. É dizer e escutar, como uma unidade. O logos tem aqui o sentido do que aparece, o que se estende diante de nós, e que também recolhe. Mas, como escutar o logos? Pousando e recolhendo. É através de uma atitude de escuta, sendo que não é ouvir sons, mas poder escutar até o silêncio. A fala não encontraria o poder do seu dizer se escapasse ao silêncio, e ao se abrir a fala encontra, de início, o vazio.
Fédida questiona: ” - Seria conveniente falar do vazio nos moldes do projeto de uma metapsicologia negativa? Já que dele só pode-se dizer o que ele não é ou o que ele não pode ser”.
-         “Seria o vazio o negativo do órgão designado por Freud como protótipo hipocondríaco no modelo do órgão genital?... o vazio como protótipo depressivo do espaço psíquico, o órgão psíquico sem representações”.
-         O vazio poderia adquirir o valor de um conceito, referindo-se ao negativo na teoria. Pode ser reportado a experiências primitivas, como a separação pelo nascimento (vazio como o negativo do corpo materno), o desmame, o afastamento da mãe... O vazio é um estado empírico de uma conservação sem espera, por uma insensibilização às excitações internas e externas, por uma redução das tensões até um equilíbrio inerte, onde a atividade psíquica parece ser subtraída.
     Na clínica, o vazio aparece não só como desinvestimento nas coisas externas, e nos objetos internos de pensamento, mas também como desilusão. O falso self procura mascará-lo, proteger um interior como forma de vazio.
O vazio seria a impossibilidade de um espaço, que possa ser o tempo de espera e de projeto, “o tempo de um corpo que possa elaborar o que é recebido”. Pudor e vergonha representam a temporalização subjetiva de um corpo e a sua história, não encontram lugar no vazio.
A depressão pode ser compreendida, a partir do conceito do vazio, na relação bebê e mãe. O vazio aí aparece, se instala “entre um olhar e o rosto que não responde, entre um corpo de bebê e o gesto materno pensando em outra coisa, de alguma forma ausente, entre si e o outro que permanece fechado ou só devolve uma imagem enganosa – uma imagem na qual o bebê não se reconhece. O vazio vem no lugar desse inter que prefixa a subjetividade e que chamamos intersubjetividade”. É na construção, ou descoberta, do vazio como espaço entre, que o analista e o paciente podem encontrar o intervalo necessário entre dois corpos para a fala e a escuta. Este intervalo é fundamental para a reconstrução de um espelho que reflete a imagem justa. Assim, o vazio pode se escutado como o tempo que foi retirado de um rosto e um gesto abandonados a imagens. “Tudo o que acontece, e sobretudo, que se fala entre uma mãe e seu filho é esse tempo: o vazio é aí espaço. Se o tempo for subtraído, o vazio não pode ser mais espaço: torna-se para a criança a ameaça invasiva de não ser nada, de não-existir. Esse vazio é abstração frígida de um ambiente que se transformou em cenário”. O vazio é encontrado na espera depressiva, adquirindo fundamento metapsicológico, e na prática clínica como constituindo um espaço interior.
Observações retiradas da clínica psicanalítica:
1) O vazio como ruptura da intersubjetividade conduz a fenomenologia. O vazio como protótipo de espaço interior. As Meditações Cartesianas de Husserl, como referência na construção da subjetividade, baseada na intersubjetividade. O vazio decorre de uma problemática do tempo, também relacionada ao corpo em sua formação e desenvolvimento a partir de uma intersubjetividade.
2) “O espaço interior é instalado pela análise neste lugar denominado sessão e pelo intervalo designado pela relação da palavra com seu silêncio. O vazio se abre nesta palavra entendida num silêncio: o que vem a ser dito aí vem do poder de ouvir o que se fala...a palavra se elabora, ao longo do tratamento, como o espaço interior capaz de se estabelecer pelo seu próprio dito”. A análise dos processos transferenciais e contratransferenciais passa pela interpretação do que ocorre no intervalo de falar e escutar. O corpo do analista, a partir de Fédida, pode ser compreendido como uma superfície, a criação de um espaço, onde há lugar para elaborar o falar em relação ao escutar, o lugar da palavra e do silêncio.
3) A posição depressiva (Winnicott atribui a esta posição o desenvolvimento da capacidade de estar só), distinta da depressão, associada ao desmame, é a entrada em cena da ausência. O vazio coloca em xeque a ausência. A posição depressiva é o momento criativo da constituição temporal da ausência, a mobilização do corpo no jogo, o uso pelo corpo da negação, e da exploração da relação intersubjetiva. O vazio se refere a uma depressão arcaica, anterior a posição depressiva, impedindo o acesso à posição depressiva, à uma temporalização subjetiva e intersubjetiva pela ausência (capacidade de ficar só ao lado da mãe). O jogo da presença e da ausência acontece aí. A palavra, como lugar aquém e além do jogo de carretel, será o lugar cênico do jogo da ausência. Se ocorrer uma ameaça de perda, separação, abandono, ela é significada por uma função primária da projeção. “Esta é subentendida por uma parte ativa do rejeitar, do perder do abandonar ou do manipular”. Da  projeção, que assegura a fantasia do vínculo, que Fédida questiona, se o indivíduo teria dificuldade de se separar. A manipulação surgiria numa falha de construção de um espaço lúdico, onde o vazio se instala. A análise pode ser concebida como a construção da posição depressiva, permitindo o paciente depressivo a ela aceder. Escutar é na fala obra de disjunção, que é desligamento , deixando um fio para brincar, comunicar. A disjunção se sustenta, na fala pelo seu escutado, sobre seu  ausente. O silêncio, presente para a fala, nela constitui o tempo da ausência.
A ausência não é o vazio. O vazio é formado pela anulação da ausência, ou de uma ausência sem objeto. O espaço interior é um tempo fundador do poder de dar sentido a escuta pela ausência. O lugar da ausência, como espaço da transferência (espaço do jogo transicional dentro do intervalo) e tempo da repetição, indicada pela atenção flutuante (nada ouvir), possibilita a escuta analítica.
O paciente, fala do vazio, vazio de pensamento, quando há um cessar de excitação auto-erótica. O vazio seria a amnésia de um estado de luto, um luto não elaborado, sem respostas. Vazio comparado a amentia. Freud afirma que “a amência é uma reação a uma perda que a realidade afirma, mas que o ego tem de negar, por achá-la insuportável...o ego rompe sua relação com a realidade; retira as catexias do sistema de percepções, Cs... Com este desvio da realidade, o teste de realidade é posto de lado, as fantasias carregadas de desejo (irreprimidas, inteiramente conscientes) são capazes de exercer pressão avançando para dentro do sistema, sendo ali consideradas como uma realidade melhor”. O luto, que tem relação com o pudor e a vergonha, é a experiência temporal que fundamenta a subjetividade. O vazio seria a amnésia do duplo imaginário, “a amnésia do único ser que provoca perda na infância. A infância se torna objeto de um assassinato, por alguém que é ninguém, que rouba da criança o imaginário do que é semelhante, idêntico a si, suprimindo o luto e a nostalgia. “O duplo imaginário - criança ou anima - era o parceiro ideal do jogo e da palavra”. Fédida questiona: “O analista já teria encontrado o lugar que lhe convém? “
A escuta analítica acontece não para substituir o ausente, nem preencher o vazio do seu lugar, mas para fundar a relação da ausência, que o paciente desconhece. A análise é um intervalo, espaço potencial ou transicional; “folha branca como o silêncio - superfície ainda vazia, mas pronta para receber, colocada entre a criança e o psicoterapeuta. Ou então, entre divã e poltrona – para falar em termos dos móveis -, o intervalo singular dessa estranha intimidade onde os corpos não podem se arrebatar nem tampouco se atacar. Cada um sempre vai embora com seu corpo, no qual permanece sozinho”.
Foucault diz: “Já não se pode pensar senão no vazio do homem desaparecido. Porque esse vazio não institui uma carência, não prescreve uma lacuna a preencher. Ele é, nem mais nem menos, o desdobramento de um espaço onde, enfim, se torna possível pensar de novo”.
Creio, que através da reflexão do vazio é possível abrir um novo espaço para pensar sobre os indivíduos que buscam a psicanálise neste final de 1999, e que serão os pacientes do novo século XXI. Fédida, através desse estudo, nos remete a possibilidade de “conhecer” o vazio, queixa tão freqüente em nossos consultórios, e refletir sobre a possibilidade de que os indivíduos do mundo atual, provavelmente, estão tendo mães, ou funções de mãe, que estão assassinando o duplo imaginário e a potencialização de construção de um espaço para brincar. Como a histeria no século de Freud, a depressão é, hoje, a doença mais freqüente. Será que o problema está mais atrás? Mudanças no comportamento da mulher ocorreram neste final de século, movimentos feministas, crescimento da mulher no mercado de trabalho, acontecimentos contrários a repressão da mulher no início do século XX, das pacientes histéricas tratadas por Freud. A mulher mudou? A pergunta: “o que quer uma mulher?” (questão histérica), pode ser acrescida pelo “atualmente”: “o que quer uma mulher atualmente?” O atual mente? Assinalo mais atrás, no sentido de que o trauma, que instaura o vazio, que Fédida analisa em seu texto, ser mais primitivo, mais originário no desenvolvimento do indivíduo, já que Fédida o coloca anterior a posição depressiva.
                                                                                   
Bibliografia
Carneiro Leão, E., e Wrublewski, S.. Os Pensadores Originários. Petrópolis: Vozes, 1999.
Châtelet, F.. História da Filosofia. Lisboa: Publicações Dom Quixote,1995.
Fédida, P.. Depressão. SP: Escuta,1999.
Fédida, P. Une parole qui ne remplit rien. Figures du Vide, Nouvelle Revue de Psycanalyse, n.º 11.
Freud, S. Artigos sobre Metapsicologia. Rio de Janeiro: Imago, 1974. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14).
Heidegger, M. Logos. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural.

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