quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Sobre a sociedade positiva da transparência

O texto é sobre o capítulo 1, Sociedade positiva, do livro Sociedade da transparência de Byung-Chul Han.

Ele afirma que atualmente o tema da transparência domina o discurso público, que é evocado e conjugado com a liberdade de informação. A sociedade da negatividade sofreu desconstrução, e a sociedade da transparência se torna uma sociedade da positividade.
Elenca as mutações:
1 - As coisas se tornam transparentes quando qualquer negatividade é eliminada, encaixando-se bem ao curso raso do capital, da comunicação e da informação. As coisas abdicam da singularidade e se expressam unicamente pelo preço. O dinheiro desfaz o singular, igualando tudo. 
2- As ações se tornam transparentes quando se tornam operacionais, subordinadas ao cálculo, governo e controle.
3- O tempo se torna transparente pelo presente sempre disponível, o futuro será um presente otimizado, um tempo sem destino e sem evento. 
4- As imagens se tornam transparentes, quando se despojam de dramaturgia, coreografia e cenografia, da hermenêutica do sentido, e se transformam em pornografia, que é o contato direto entre imagem e olho. 
A sociedade da transparência é um abismo infernal do igual. 
A transparência não se relaciona apenas com corrupção e liberdade de informação. Ela é uma coação sistêmica que abarca todos os processos sociais provocando modificações profundas, acelerando e operacionalizando estes processos.
A desconstrução da negatividade caminha junto com a aceleração, o igual responde ao igual, formando uma reação em cadeia do igual.  A negatividade da alteridade, do que é alheio, ou a resistência do outro atrapalha e retarda a comunicação rasa do igual. A transparência estabiliza e acelera o sistema, eliminando o outro ou o estranho. Torna a sociedade uniformizada, sendo o "traço totalitário",  "traço uniforme" da transparência.
A linguagem humana contém uma intransparência constitutiva (Humboldt), possibilitando  a incompreensão e a divergência de pensamentos. Já a  linguagem da transparência é formal, mecânica, operacional eliminando a ambivalência, tornando-se maquinal. A coação por transparência, a violência da transparência,  transforma o homem num elemento funcional do sistema.
A alma humana é impermeável, precisa estar junto de si mesma, sem o olhar do outro. Uma iluminação total carboniza a alma e provoca um burnout psíquico. Somente a máquina é transparente.  A espontaneidade, capacidade de fazer acontecer,  e a liberdade não admitem a transparência.
Em nome da transparência a esfera privada é eliminada. A ideologia da post privacy é ingênua e equívoca. A transparência exige a eliminação da esfera privada, levando a uma comunicação translúcida. O ser humano não é transparente para consigo mesmo. "Segundo Freud, o eu nega precisamente aquilo que o inconsciente afirma e deseja irrestritamente". O id fica oculto no ego. Na psique humana é aberta uma fissura que não deixa o ego coincidir consigo mesmo. Essa fissura fundamental impossibilita a autotransparência. Fica então difícil criar uma transparência interpessoal, que mantenha viva a relação. A coerção da transparência não respeita à alteridade. Assim, frente o pathos da transparência que domina a sociedade atual é preciso exercitar o pathos da distância. Vergonha e distância não podem  ser integrados no círculo do capital,  da informação e da comunicação, para não serem eliminados pela transparência, que alcançando todos os refúgios, torna o mundo mais desavergonhado e desnudo.
Para Sennet a autonomia implica em aceitar o que não se compreende no outro. A relação transparente é uma relação morta, ausente de atração e vivacidade.
Uma maior quantidade de informações não implica em decisões mais acertadas.  A intuição transcende as informações. O abandonar e o esquecer pode ser produtivo. A sociedade da transparência não tolera lapsos de informação e nem lapso visuais, sendo que o pensamento e a inspiração necessitam de um vazio.
A palavra felicidade, Gluck provém de oco, Lucke. Assim, uma sociedade que não admite qualquer negatividade do oco seria
uma sociedade sem felicidade. O amor sem lacuna do ver é pornografia, e sem oco ou lacuna no saber o pensamento decai em cálculo.
Segundo Walter Benjamin para a beleza é necessária uma interligação entre velamento e velado. O objeto é belo em seu véu. Não existe beleza desnuda. A nudez se torna sublime quando vai além do belo, e não é pornográfica.
Mas o capitalismo acentua a pornografização da sociedade, ao enfatizar a hipervisibilidade e expor tudo como mercadoria, não conhecendo outro uso da sexualidade.
Byung-Chul Han se refere à diferença entre erótico e pornográfico. A exposição direta da nudez não é erótica. O movimento erótico surge da cena do focar e desfocar, a negatividade concede brilho à nudez (Eros em Freud, e a agalma, brilho do desejo desenvolvido por Lacan a partir da leitura realizada do Banquete de Platão no Seminário "A transferência"). A positividade da exposição da nudez é pornográfica, pois não apresenta o brilho erótico. O corpo pornográfico é raso, não sofre interrupção, que criaria uma imprecisão semântica, sendo esta erótica. "Não existe erotismo da transparência". Ao desaparecer o mistério em prol da exposição e do desnudamento total do corpo, de sua imagem, começa a pornografia. O processo de pornografização do visual se realiza hoje como uma desculturalização. Estas imagens são diretas, tácteis e infectivas. São pós-hermenêuticas. Não provocam leituras, mas contaminações. A sociedade pornográfica é uma sociedade do espetáculo.
A sociedade positiva não é dialética e hermenêutica. A dialética repousa na negatividade, que nutre a vida do espírito segundo Hegel. Só se torna possível pousar no negativo se se demorar nele. O espírito é lento. O sistema da transparência elimina a negatividade a fim de se acelerar, para se precipitar em vertigem no positivo.
A sociedade positiva não admite qualquer sentimento negativo. Esquece-se como se lida com o sofrimento e a dor. Para Nietzsche a alma é profunda e grande ao se demorar no negativo. A alma em sua infelicidade acende a sua fortaleza, o suportar, perseverar, e interpretar a infelicidade. 
A sociedade positiva quer reorganizar a alma humana  de um modo novo, inclusive o amor no sentido positivo se torna um arranjo de sentimentos agradáveis sem consequências, em fórmulas de consumo e conformidade, o ferimento sempre deve ser evitado, como afirma Alain Badiou em Louvor do amor, chamando atenção aos sites de encontro de casais. Sofrimento e paixão são figuras da negatividade, e em seu lugar entram figuras psíquicas como esgotamento, cansaço e depressão, que remetem ao exagero da positividade.
A teoria em sentido enfático  é uma manifestação da negatividade. É um campo que tem limites, estabelece o que pertence e nao pertence a ela. É narrativa, e traça uma senda de distinção, tornando-se violenta. Separa o que está misturado. Sem a negatividade da distinção as coisas podem chegar à promiscuidade generalizada. A teoria se aproxima da cerimônia, separando o iniciado do não iniciado.
Byung-Chul Han diz que é um erro admitir que a massa positiva de dados e informações torne supérflua a teoria, que o nivelamento dos dados substitua os modelos. A teoria como negatividade se estabelece antes dos dados e informações positivas e dos modelos. A ciência positiva baseada em dados não é a causa, mas consequência do fim da teoria iminente. Não ocorre uma substituição da teoria pela ciência positiva, pois esta não possui a negatividade da decisão, que decide o que é e o que deve ser. A teoria como negatividade faz com que a realidade se manifeste cada vez de modo diferente de súbito, no qual aparece uma nova luz.
Afirma que a política é um agir estratégico, logo possui uma esfera oculta. Uma total transparência a paralisa. Segundo Carl Schmitt a política precisa de mais "coragem para o oculto", sendo o fim do mistério o fim da política.
Byung-Chul Han diz que o partido dos piratas, partido da transparência, faz avançar a pós-política, que se iguala a despolitização. "É um antipartido, o primeiro partido sem cor". A transparência não possui cor. Não há ideologias mas apenas opiniões sem ideologias. As opiniões nao geram consequências, não apresentam negatividade de repercussão. A sociedade de opinião não toca no que já existe. A liquid democracy só troca cores dependendo da situação e o partido dos piratas  é um partido de opinião sem cores.
A política dá espaço à violência das necessidades sociais, que deixa intocáveis as relações socioeconômicas já existentes. O partido dos piratas  não tem condições de articular uma vontade política e produzir novas coordenadas sociais.
A coerção por transparência estabiliza o sistema existente. A transparência é positiva em si. Não há dentro dela qualquer negatividade que possa questionar o sistema político-econômico vigente. Está cega ao exterior do sistema, confirma e otimiza o que já existe. Logo a sociedadeda transparência caminha junto com a pós- política. "Totalmente transparente só pode ser o espaço despolitizado". 
O veredicto da sociedade positiva é "me agrada". O Facebook nega a introdução de um emotion de dislike, pois a negatividade paralisa a comunicação e prejudica o valor econômico. O que vale é a quantidade e velocidade das informações, elevando assim o valor da mercadoria.
Transparência e verdade não são iguais. A verdade é uma negatividade que se põe e impõe declarando tudo o mais como falso. Informações não produzem verdade, pois nao apresentam direção, saber, e sentido. "É precisamente em virtude da falta de negatividade do verdadeiro que se dá a proliferação e massificação do positivo".  A hipercomunicação e hiperinformação geram à falta de verdade, a falta de ser. A falta de precisão do todo é intensificada.

No Seminário "A transferência" Lacan afirma;
"É próprio das verdades  nunca se mostrarem por inteiro. Em suma, as verdades são sólidos de uma opacidade bastante pérfida. Elas sequer têm, ao que parece, essa propriedade que somos capazes de realizar nos sólidos, a transparência; elas não mostram ao mesmo tempo suas arestas anteriores e posteriores. É preciso que se lhes dê a volta, e diria mesmo, é preciso o passe de mágica".
(Lacan, 1961).

Bibliografia 

Han, Byung-Chul. Sociedade da transparência. RJ: Vozes, 2017.

Lacan, J. A transferência. RJ: Jorge Zahar Ed., 1992.

 

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