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sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Psicanálise e sociedades do cansaço e da transparência

O texto abaixo consiste na leitura dos livros Sociedade do cansaço e Sociedade da transparência de Byung-Chul Han. 

Em relação à psicanálise freudiana, Byung-Chul Han afirma que por estarmos num momento de positividade, e já que a psicanálise se refere à negatividade, estaria difícil ela dar conta do mundo atual.

A meu ver ele não se dedicou a pensar a psicanálise em sua historicidade, como exemplo em Lacan que desde 1970 já pensa e elabora o conceito de gozo como positividade, e inclusive como lidar com isso na clínica psicanalítica.

Começa o seu texto dizendo que não vivemos numa época viral, apesar do medo que temos de uma pandemia grupal, pois graças a técnica imunológica, esta época já passou. Prossegue: vivemos uma época de excesso de positividade, daí doenças neuronais como depressão, déficit de atenção, hiperatividade, burnout, que escapam das técnicas imunológicas. Traz a alteridade como categoria fundamental da imunologia, e que no momento há o desaparecimento do Outro, da alteridade. O paradigma imunológico não se coaduna com o processo de globalização e a dialética da negatividade é o traço fundamental da imunidade.

A sociedade disciplinar de Foucault não é mais atual segundo o autor. A sociedade do século XXI é uma sociedade de desempenho. Os sujeitos são do desempenho e da produção e não mais sujeitos da obediência. São sujeitos empresários de si mesmos. A sociedade disciplinar é uma sociedade da negatividade, gera loucos e delinquentes. A sociedade de desempenho produz depressivos e fracassados. Já habita no inconsciente social o desejo de maximizar a produção. Ocorre a positividade do poder mais do que a negatividade do dever. O inconsciente social do dever agora é registro do poder.

Cita Ehrenberg que coloca a depressão na passagem da sociedade disciplinar para a sociedade do desempenho. O depressivo é acossado pela exigência da iniciativa pessoal, é esgotado de ser ele mesmo.

O desenvolvimento cultural da humanidade deve à uma atenção contemplativa. Hoje há uma hiperatenção. Não há tolerância para o tédio profundo, importante segundo Benjamin para o processo criativo: "pássaro onírico, que choca o ovo da experiência". Seria o lugar do descanso espiritual. Nietzsche também assinala a importância do elemento contemplativo.

A sociedade do cansaço é uma sociedade ativa que se desdobra para uma sociedade do doping, que gera um desempenho sem desempenho. O homem se torna uma máquina do desempenho. A sociedade ativa e a sociedade do desempenho geram cansaço e esgotamento excessivos, efeitos do empobrecimento da negatividade e o excesso da positividade. Há um infarto da alma.

Byung-Chul Han afirma que o aparato psíquico freudiano é repressivo e impositivo. Sua estrutura é de uma sociedade disciplinar, logo abarca hospitais, asilos, presídios etc. Diz que a psicanálise freudiana só pode ser efetiva numa sociedade repressiva organizada pela negatividade das proibições. Hoje, a sociedade de desempenho se afasta da negatividade das proibições e se organiza como sociedade da liberdade, que se define pelo poder hábil. Este sujeito do desempenho é um sujeito da afirmação, sendo seu eu sem medo e angústia (segundo o autor).

O autor diz que o inconsciente freudiano não é uma configuração atemporal. É uma produção da sociedade disciplinar repressiva, que segundo ele estamos nos afastando. Aproxima o ego freudiano ao sujeito da obediência kantiano, como cumprimento de um dever. O sujeito de desempenho da modernidade tardia tem como máxima liberdade e boa vontade, e não mais a obediência, a lei e o dever. É um empreendedor de si mesmo. Mas a liberdade em relação ao outro vai transformar essa liberdade em novas coações. Esta falta de relação com outro provoca uma crise de gratificação. Richard Sennet afirma que esta crise da gratificação, do reconhecimento, vai se ligar a uma perturbação narcisista e à uma falta de relação com o outro. Coloca esta questão como distúrbio de caráter. O si-mesmo não encontra nada de "diferente". Byung-Chul Han critica Sennet quando ele diz que o aumento das expectativas impede o sujeito de alcançar uma meta, pois para ele no sujeito narcisista o sentimento de alcançar uma meta não se instaura, é incapaz de chegar a uma conclusão, pois é impulsionado pela coação de desempenho, não alcançando repouso. Vive constante num sentimento de carência e culpa. Sofre então um esgotamento, colapso psíquico, burnout. Afirma que este sujeito se realiza na morte.

Segundo Freud, diz Byung-Chul Han, o "caráter" é um fenômeno da negatividade, pois não se formaria sem a censura do aparato psíquico, sendo um "sedimento depositado de possessões objetuais renunciadas". O eu evita o conhecimento dessas possessões que estão no id pelo processo de repressão (o autor usa repressão em vez de recalque ou foi traduzido assim). "O caráter contém em si a história da repressão", reflete as relações entre id, ego e superego. 

A histeria seria uma doença típica da sociedade disciplinar enquanto a depressão seria amorfa, trazendo um homem sem características. Cita Carl Schmitt que diz que ter muitos amigos no facebook é indicação de falta de caráter, pois devido a divisão interior só se teria um inimigo verdadeiro e também um único amigo. O homem pós moderno, espelho da falta de forma, seria então um homem sem caráter, um homem flexível da positividade.

Afirma que nas doenças psíquicas atuais como depressão, burnout, déficit de atenção, síndrome de hiperatividade não se encontra repressão e processo de negação, pois remetem a um excesso de positividade, afirmando que "a psicanálise não oferece nenhum acesso a elas" (Cf. p.88). Também nos depressivos não se dá transferência já que não ocorre repressão. A sociedade do desempenho trabalha no desmonte de barreiras e proibições dadas pela sociedade disciplinar. Logo há uma promiscuidade generalizada. O inconsciente não influenciaria a depressão.

Afirma que Freud concebe a melancolia como uma relação destrutiva com o outro internalizado como parte de si-mesmo, gerando conflito internalizado no próprio eu, que levaria ao empobrecimento do eu e autoagressividade. Atualmente não há nenhuma relação conflitiva com o outro, de perda, anterior ao sujeito depressivo. A depressão que desemboca no burnout é resultado da autorelação exaltada, narcisista, que ganha traços depressivos. O sujeito de desempenho está cansado, esgotado de lutar consigo mesmo. Remói a si mesmo que o leva a autoerosão e ao esgotamento. Todas as suas ligações se rompem, não havendo luto, que surge quando se perde um objeto. Distingue a melancolia da depressão, sendo a primeira efeito da negatividade, enquanto a depressão aponta para o excesso de positividade.

Para Byung-Chul Han o burnout, que precede a depressão é resultado patológico da autoexploração, influência também do contexto econômico, pelo imperativo da expansão e oferta de produtos à identidade que é flexível.

Na transição da sociedade disciplinar para a sociedade do desempenho o superego se positiva em eu-ideal, que é sedutor. O sujeito de desempenho se projeta em "liberdade", mas ao tentar alcançar a perfeição deste eu-ideal se esgota, se consome, chegando ao suicídio.

E assim, a sociedade da negatividade se transforma em sociedade positiva, da transparência. A transparência surge quando se elimina a negatividade. As coisas, as ações, o tempo, as imagens se tornam transparentes ao se tornarem rasas, planas, operacionais, o presente é otimizado e imediatizado. A transparência é uma coação sistêmica. O movimento de aceleração responde ao igual, desconstruindo a negatividade, eliminando o diferente. Há predomínio do traço autoritário da transparência, que elimina a esfera privada. Cita Freud ao dizer que o eu nega o que o inconsciente afirma, logo o ser humano não é transparente consigo mesmo. Devido a transparência o mundo se torna desavergonhado e desnudo. 

Segundo Byung-Chul Han a "política" também é paralisada devido à necessidade de total transparência, dando lugar à violência de necessidades sociais, seguindo o veredicto da sociedade positiva: " me agrada". A verdade é afastada, já que implica na negatividade. Há uma ausência de saber.

Enfatiza que o espaço do sagrado, da paz, não são transparentes, são sinuosos, como também o objeto do desejo no amor cavalheiresco é um "buraco negro" em torno do qual se adensa o desejo. Cita Lacan ao afirmar que este objeto do desejo é inacessível, indecifrável, o que se observa na anamorfose, cuja imagem surge deformada. Não é evidente, sendo a "Coisa" (das Ding) sem imagem devido a sua impenetrabilidade e ocultamento, e não tendo representação.

Em Sociedade da transparência Byung-Chul Han desenvolve temas importantes como exposição, pornografia, intimidade, informação, narração, que sofrem profundas modificações pela coação transparente, acarretando desculturalizaçao.

A sociedade do cansaço e da transparência são sociedades da positividade que tomou o lugar da negatividade.

O autor afirma que o pensar não é transparente. Segundo Hegel, uma negatividade habita o pensar, que permite o transformar. O tornar-se outro é constitutivo para o pensar.


Embora a psicanálise freudiana siga o paradigma da negatividade, ela abre espaço fundamental nesta nossa sociedade atual, do cansaço e da transparência, como uma teoria e práxis que busca o esvaziamento de gozo. 

Os estudos do último Lacan sobre o inconsciente real, trazendo outras leituras de conceitos como trauma, repetição, nó  borromeano, sinthoma, nos possibilita meios de aproximação  dos problemas  que  esta sociedade positiva apresenta. 

O gozo do Outro, o autoritarismo, são temas desta  sociedade positiva que cobrem a  alteridade e a autoridade. A psicanálise através de Totem e Tabu de Freud já  denunciava os excessos da civilização.



Referência bibliográfica

 

Han, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

______________. Sociedade da transparência.  Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

 

 

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

A violência neuronal na sociedade do cansaço

Em Sociedade do Cansaço, Byung-Chul Han afirma no capítulo sobre a violência neuronal, que cada época possui enfermidades fundamentais. Diz que não vivemos mais numa época viral, que é uma época da negatividade. Por uma perspectiva patológica, o século XXI não é mais definido como bacteriológico e viral, mas sim como neuronal. Doenças neuronais como a depressão, transtorno do déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (TDAH), Transtorno de personalidade limítrofe (TPL), ou a Síndrome de Burnout (SB) são as patologias do início do século XXI. Não são infecções, mas enfartos provocados pelo excesso de positividade. Vivemos numa época de positividade.

Mostra que a sociedade disciplinar e repressora do século XX descrita por Michel Foucault não está mais atuante, sendo substituída por uma nova forma de organização coercitiva, que é a violência neuronal, onde os indivíduos se cobram para apresentar resultados, tornando-se carrascos e vigilantes de suas ações.
O século passado foi imunológico. Havia uma divisão nítida entre dentro e fora, amigo e inimigo, próprio e estranho. A Guerra Fria seguia este esquema imunológico. O paradigma imunológico dominava o vocabulário desta guerra através de um dispositivo militar. A ação imunológica se define por ataque e defesa. Pela defesa se afasta o que é estranho. A estranheza é objeto da defesa imunológica. O estranho é eliminado pela sua alteridade, sendo a alteridade a categoria fundamental da imunologia. 
Byung-Chul Han diz que hoje em dia no lugar da alteridade entra em cena a diferença, que não provoca reação imunológica. A diferença pós-imunológica, a diferença pós- moderna já 
não faz adoecer. Hoje falta à diferença a estranheza, que provocaria violenta reação imunológica. A estranheza se neutraliza no consumo. O estranho cede lugar ao exótico, e o turista visita o exótico, não é mais um sujeito imunológico.
O imigrante hoje não é mais um outro, não é um estrangeiro, que representaria perigo real ou causasse medo. Os imigrantes são mais um peso do que uma ameaça. O vírus do computador não tem mais tanto impacto social.
O paradigma imunológico não se coaduna com o processo de globalização. A alteridade atuaria contra a suspensão de barreiras. O mundo organizado imunologicamente apresenta uma topologia específica, com barreiras, passagens, cercas, trincheiras e muros. Hoje a promiscuidade geral está em todos os âmbitos da vida, e a hibridização domina o atual discurso teórico-cultural.
A dialética da negatividade é o traço fundamental da imunologia. Aí o outro é o negativo que penetra no próprio e procura negá-lo.
A profilaxia imunológica, a vacinação, segue a dialética da negatividade. Apenas fragmentos do outro é introduzido no próprio a fim de provocar imunorreação. 
O desaparecimento da alteridade significa que estamos numa época empobrecida de negatividades. Os adoecimentos neuronais deste século são resultados de um exagero de positividade.
A violência pode provir do igual, e não apenas do outro e do estranho.
Byung-Chul Han cita Baudrillard que diz "quem vive do igual, também perece pelo igual" (A transparência do mal), e que se refere também à "obesidade de todos os sistemas atuais": sistemas de informação, comunicação e de produção. Mas Byung-Chul Han diz que Baudrillard afirma o totalitarismo do igual a partir da perspectiva imunológica, sendo esta a debilidade de sua teoria. Para Byung-Chul Han o igual não forma anticorpos. Num sistema onde o igual domina não tem sentido fortalecer os mecanismos de defesa. Distingue rejeição (abstossung) imunológica e não imunológica. A última implica num excesso do igual, um exagero de positividade. Não há aí negatividade. Já a rejeição imunológica exclui o outro.
A violência da positividade, neuronal, é resultado da superprodução, do superdesempenho, da supercomunicação. A rejeição frente ao excesso de positividade não gera defesa imunológica, mas uma ab-reação  neuronal-digestiva, que é uma rejeição. Também o esgotamento, a exaustão e o sufocamento frente à demasia não são reações imunológicas. São todas elas manifestações de uma violência neuronal.
Critica a teoria da violência de Baudrillard pois ela descreve imunologicamente a violência da positividade ou do igual. Baudrillard afirma que a violência da rede e do virtual é viral, ele descreve a genealogia da inimizade em vários estágios. De início o lobo, inimigo externo, que ataca e nos defendemos pela construção de muros; depois o inimigo toma forma de rato, que é combatido pela higiene; em seguida o estágio do besouro, depois o estágio do vírus de difícil defesa pois está no coração do sistema, que se infiltra no poder. A violência viral aparece como células terroristas. Para Baudrillard o terrorismo é a principal figura de violência viral.
Para Byung-Chul Han a genealogia da inimizade não coincide com esta genealogia da violência. A violência da positividade neuronal não pressupõe nenhuma inimizade. Desenvolve numa sociedade permissiva e pacificada. É mais invisível que uma violência viral. Habita o espaço livre do igual, sem polarização entre inimigo e amigo, entre interior e exterior.
Atualmente o modo de ser do indivíduo se constitui numa organização social que privilegia vertentes do mercado neoliberal, produzindo novos corpos dóceis e autoexplorativos, o empresariamento de si. 
A positivação do mundo faz surgir novas formas de violência, que são imanentes ao sistema. Sendo imanentes não evocam a defesa imunológica. A violência neuronal é o terror da imanência, que se distingue do horror ao estranho no sentido imunológico. Não tem negatividade, não é privativa mas saturante, não excludente mas exaustiva. É inacessível a uma percepção direta.
A violência viral, que segue o esquema imunológico do interior e exterior ou do próprio e outro, pressupondo singularidade ou alteridade hostil ao sistema, não tem condições de descrever enfermidades neuronais como depressão, TDAH ou SB.
A violência neuronal não parte de uma negatividade estranha ao sistema. É uma violência sistêmica, violência imanente ao sistema. Estas enfermidades apontam para um excesso de positividade. Burnout é uma queima do eu por superaquecimento devido a um excesso de igual. O hiper da hiperatividade é uma massificação do positivo.

Bibliografia 

Han, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. RJ: Vozes, 2017.



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