segunda-feira, 28 de novembro de 2016

"A luz entre os oceanos" e a ética de Kant

"A luz entre os oceanos" e a ética de Kant.
                                        Rosa Jeni Matz

Filme de Derek Cianfrance com Alícia Vikander, Michael Fassbender, Rachel Weisz, baseado no livro de Stedman.

Trata-se de um filme sobre ética, amor, Bem e perdão.
Tom se torna faroleiro na ilha de Janus após voltar da guerra. Casa-se e leva a sua esposa para a ilha. Vivem bem felizes juntos até a esposa engravidar e abortar dois filhos.
Num certo dia surge do mar um barco com um homem, morto, e um bebê. A esposa insiste em ficar com a criança, embora Tom não concorde, mas cede diante da insistência da esposa. 
Mas, sendo um homem correto e com princípios morais, Tom começa a viver um pesadelo moral.
Tom é um personagem que transmite os princípios da ética kantiana. Aliás, o filme é uma aula sobre Kant.
Kant elimina do campo moral a determinação passional, qualquer motivo que tenha como fonte as paixões. As paixões se situam num plano particular, individual, e não universal. Para Kant a razão pura segue os princípios universais, assim a ação determinada pela lei moral se torna universal.
A ação moral é determinada somente pela razão pura, e essa determinação é uma lei.O único fundamento desta lei é a razão, e não algo externo à razão. Kant afirma que a razão pura é prática ao fornecer ao homem uma lei universal que é a lei moral, sendo lei incondicional. O homem deve agir de acordo com esta lei, sendo a lei um imperativo.
Um homem afetado por carências e paixões, pode se conflitar com a lei moral.Tom se deixa afetar pela carência da esposa preenchida pela criança vinda do oceano, e daí vive um conflito moral. Ama a sua esposa. Depois de alguns anos conhece a mãe real da menina, e o seu dever moral se fortalece frente à paixão.
Além dessa questão moral é um filme sobre amor, e sobre o Bem. Após conflitos, raiva ódio, o bem para o outro e do outro, o semelhante, prevalece. O perdão também é enfocado.
É um belo filme para pensar com a filosofia! 

Referências:

Kant, I.Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
Kant, I.Crítica da Razão Prática. Lisboa: Edições 70, 1999.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Transgeneridade e Psicanálise


                                            Transgeneridade e Psicanálise

                                                                                         Rosa Jeni Matz

O jornal informa a descoberta de uma nova espécie de humano antigo, o Homo naledi[1], que apresenta a mistura de características dos humanos modernos com hominídeos mais arcaicos. Também, a foto de um transgênero é publicada, não mais resultado de uma mistura de características do macaco e do Homem, mas uma mistura de características masculinas e femininas.
Outra notícia do jornal é a afirmação da educadora finlandesa sobre a contemporaneidade: “Pensar e resolver problemas não é mais suficiente”[2]. A Finlândia está se preparando para mudanças em seu modelo educacional, pois devido ao acesso de informações facilitado atualmente pela tecnologia, o professor não é mais “o cálice sagrado do conhecimento”. Há um foco na criatividade da criança, na responsabilidade social, no pensar diferente, e na transdisciplinaridade.
Alguns professores do Colégio Pedro II, Rio de Janeiro, utilizaram “x” no lugar das vogais “a” e “o”, criando o neologismo “alunxs”[3], em vez de alunos/alunas, com o intuito de assinalar a não distinção de gêneros. Este neologismo foi utilizado em avisos de parede e cabeçalhos de provas.
Diferença sexual?
A transgeneridade é a condição onde a expressão de gênero ou identidade de gênero de uma pessoa é diferente daquelas atribuídas ao sexo biológico, e também ao gênero, designado ao sujeito no nascimento.
Falamos hoje em identidades. E por onde anda o conceito de identificação? O conceito de identificação estaria mais próximo à neurose e ao recalque, sendo resultado da Metáfora Paterna, operação de substituição do significante do desejo da mãe pelo significante Nome-do-Pai. Ocorre a identificação a um traço paterno, traço unário (freudiano e lacaniano).
No momento atual nos referimos às identidades, pois em vez do Nome-do-Pai nomear, o parlêtre tem a possibilidade de fazer o seu próprio nome, se nomear. Através de estudos sobre James Joyce e os nós borromeanos, Lacan se aproxima de nossa época, cuja questão é “fazer-se um nome”, ter uma identidade singular.
O transgênero aponta para esta identidade de “fazer-se um nome”. Não só um nome, mas um sujeito. Transforma o sintoma, antes considerado patológico, em Sinthoma, fazendo um novo nó, que pode ser um Nome-do-Pai, e daí constrói a sua vida como sujeito. Lacan no seu último ensino fala de Nomes-do-Pai: Imaginário, Simbólico, Real e Sinthoma.
Para Freud no inconsciente só há uma libido, a masculina, não existindo representação da mulher no inconsciente. Só há Um. Na psicanálise o falo é o símbolo sexual por excelência, apontando à falta e à castração. O falo se refere à falta do pênis na mulher. Se todo sujeito é efeito de uma posição masculina, que termos são esses homem e mulher em uso na cultura? Os termos caminham para o desuso.
Freud pensa o falo através da fase fálica, contemporânea ao complexo de Édipo. Em seu texto ”Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” (1925) [4] escreve:
“A diferença entre o desenvolvimento sexual dos indivíduos dos sexos masculino e feminino no estádio que estivemos considerando, é uma consequência inteligível da distinção anatômica entre seus órgãos genitais e da situação psíquica aí envolvida; corresponde à diferença entre uma castração que foi executada e outra que foi simplesmente ameaçada”.
Freud assinala a presença da percepção visual na discriminação dessa diferença. Em relação às meninas: “Elas notam o pênis de um irmão ou companheiro de brinquedo, notavelmente visível e de grandes proporções, e imediatamente o identificam com o correspondente superior de seu próprio órgão pequeno e imperceptível, dessa ocasião em diante caem vítimas da inveja do pênis”.
Enfatiza a ameaça da castração como fator fundamental para a dissolução deste complexo no menino, enquanto na menina a fantasia da castração já é “consumada”. Afirma que na saída do complexo de Édipo, em “casos normais, ou melhor, em casos ideais, o complexo de Édipo não existe mais, nem mesmo no inconsciente; o superego se tornou seu herdeiro”.
O pai, nos velhos tempos, representava a moral, a lei, fazendo a função de um Outro consistente. O Outro atualmente não proíbe nada, incita a gozar (Goze! Voz do supereu) e a ultrapassar limites, gozo do Outro. O que se manifesta na atualidade é o gozo, do supereu, o super-homem. Logo, o que herdamos hoje é o superego dos pais como caminho do gozo, e para o gozo, e não mais ideais.
No texto de 1924, “A dissolução do complexo de Édipo[5], Freud associa também outras duas experiências sofridas pelas crianças que “as preparam para a perda de partes altamente valorizadas do corpo” (p. 219), que são a retirada do seio materno e a exigência de soltarem os conteúdos do intestino.  Mas, só após o surgimento de uma “nova” experiência em seu caminho, que a criança avalia a possibilidade de sua castração, que ocorre principalmente através da “visão dos órgãos genitais femininos”.
Através desta afirmação de Freud sobre a “ameaça de perdas valorizadas do corpo” podemos encontrar o gancho para pensar o complexo de Édipo na atualidade. A ênfase hoje é no gozo, na perda de gozo. Os objetos a: seio, fezes, olhar e voz, representam estas partes perdidas do corpo infantil, mas que hoje se tornam zênite de gozo. A castração agenciada pelo pai real implica numa perda de gozo, do gozo incestuoso mãe-criança. A entrada do significante produz uma perda real. O que hoje acontece é o sujeito não aceitando esta perda necessária para estruturá-lo, o sujeito hoje tenta driblar esta perda de gozo. Busca tapar a falta do Outro com esta parte de gozo perdida, renegar a castração. O sujeito se iguala ao objeto. O S1 se torna a. A questão: Como posso melhor gozar?
Estamos num momento diferente do significante falo como significante do desejo do Outro. O gozo é do Um sem o Outro, solitário, autista e assexuado.
Logo, pode não implicar a sexualidade como diferença, já que o significante é o elemento diferencial último. O S1 é a marca da diferença no Outro, resultado da metáfora paterna, e identificação ao traço unário. Há apagamento do Outro, ficando o sujeito solitário frente ao objeto, mais além do Édipo.
No seminário 20, Encore (1972/3)[6], nas fórmulas da sexuação, apesar de Lacan eleger a função fálica como operador da castração, ele posiciona tanto o homem e a mulher em qualquer dos dois lados, abrindo assim o leque para diferentes identidades. O homem pode se posicionar no lado da Mulher, do gozo suplementar, ilimitado; e a mulher que é não-toda fálica pode se posicionar no lado Homem, do gozo fálico.
Père-version, as várias versões do pai. Respostas ao Um do pai. Cada sujeito vai ter a sua versão. Há vários Nomes-do-Pai. A neurose, a psicose e a perversão são posições diferentes diante da questão do Pai.
No seminário 4, A relação de objeto (1956)[7], Lacan comenta o caso da jovem homossexual de Freud, e assinala outras formas das vias perversas do desejo. Na perversão o sujeito busca esconder a falta fálica da mãe através do véu. O véu esconde que a mãe não tem o falo, mas ao mesmo tempo é onde se projeta a imagem do falo simbólico, a mãe tem o falo. No fetichismo, o fetiche é uma imagem projetada, deste falo ausente, simbólico.
Nestas vias pode ocorrer a identificação com a mulher, o sujeito se situando no lugar da mãe. No travestismo ocorre uma identificação com a mãe que tem o falo. No homossexualismo a ênfase é no seu falo, mas que deve ser buscado no outro. O homossexual se identifica com a mãe que deve ter o falo, a mãe que faz a lei para o pai. Identificação com o gozo da mãe, e não com o desejo e o amor. Várias leis?
Os lacanianos chegaram a aproximar os transexuais à psicose, devido à confusão entre o falo e o pênis, entre o significante e o órgão, reduzindo o falo ao pênis real, ao próprio órgão; e pela foraclusão da castração simbólica, buscando uma intervenção cirúrgica de fato ao nível corporal. Mas, Catherine Millot[8] traz uma proposta interessante de que assumindo uma identidade de “A Mulher” o transexual limita o gozo do Outro, colocando o significante “A Mulher” como função do Nome-do-Pai. Mas, este sujeito se coloca fora do sexo, encarna o sexo dos anjos, já que o significante da diferença sexual, o falo é desconsiderado. 
Assim, vários Nomes-do-Pai. Como diz Lacan: varité. Condensa verdade (vérité) e variável/variedade (variété), criando o neologismo “varité”, variedades da verdade. A verdade não é única, tem variedades.  
                                                                                                                                                          


[1] Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 11/09/2015
[2] Ibid., 12/09/2015
[3] Ibid., 26/09/2015

[4] Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969.
[5] Ibid.
[6] Lacan. J (1972/3). Seminário 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.
[7] Lacan, J (1956/7). A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
[8] Dor, Joel. Estrutura e perversões. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1991.