sexta-feira, 3 de junho de 2022

O gozo na contemporaneidade

 

                                            O gozo na contemporaneidade

                                                                                   Rosa Jeni Matz

 

O conceito de gozo em Lacan se aproxima do conceito de gozo em Freud. Freud utiliza o significante Genuss, gozo, em sua conotação sexual. Freud afirma que o aparelho psíquico é governado por um princípio regulador, princípio do prazer, que visa o esvaziamento de tensão, homeostase, equilíbrio, e quando ocorre um excesso de energia, que é sentido pelo sujeito como desprazer, entramos na dimensão do gozo, o além do princípio do prazer (Além do princípio do prazer, 1920).

 Freud se refere ao ganho secundário da doença, que é a vantagem, o lucro, que a doença pode trazer ao sujeito. Versa sobre o ganho primário e o ganho secundário da doença. O ganho primário de uma doença poupa o indivíduo de um conflito psíquico. Já o ganho secundário é o ganho que surge quando um sujeito sofre, por exemplo, um acidente no trabalho, é penoso porque ele fica sem o trabalho, mas no momento que ele recebe a indenização pelo acidente, ele pode não querer retornar ao trabalho. Surge um ganho de gozo nesta condição. É importante frisar que o adoecimento que se traduz em ganhos primários e secundários é inconsciente, e o ganho secundário é gozo.

Freud diz que há uma tendência do psiquismo para a repetição, compulsão à repetição, que ultrapassa o princípio do prazer, que aponta à pulsão de morte. Surge o novo dualismo pulsional: pulsão de vida e pulsão de morte. O sujeito sofre uma coação de repetir experiências dolorosas, traumáticas, de desprazer, experiências recalcadas, que o sujeito não recorda, e que são repetidas como vivências atuais em sua vida. O conceito de compulsão à repetição traz o além do princípio do prazer, como tentativa de assimilar o traumático, aproximando a pulsão de morte à inércia, estado anterior do ser vivo. A pulsão de morte surge em estados de gozo do sujeito quando ele ultrapassa a barreira do prazer, o limite, a lei, indo de encontro à morte. O princípio do prazer é limite ao gozo.

Em Lacan o conceito de gozo é fundamental. Apresenta o gozo como fora da linguagem, não tem representação. O aforismo lacaniano “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” apresenta o Outro como um lugar, onde a cadeia significante desliza, e no intervalo se situa o desejo. Mas, nem tudo é linguagem, nem tudo são palavras, no ser humano, há gozo. O lugar do gozo é no corpo.

No seminário A ética da psicanálise (1960), o conceito de gozo é importado do campo jurídico, jouissance (usufruto), que é um direito dado a uma pessoa de gozar ou fruir de um bem cuja propriedade pertence a outrem. Diferente do desejo, que aponta para o próprio. Neste livro Lacan traz o das Ding, a Coisa, de Freud, como estatuto do gozo inicial, de uma fusão inicial bebê-mãe, que equivale ao desejo incestuoso, sem limite. O gozo estaria do lado da Coisa.

O desejo é desejo do Outro, sendo o Outro lugar do significante. O desejo se articula com a lei, Nome-do-Pai, lei primordial da interdição do incesto. O desejo, submetido à lei, é defesa do sujeito em sua relação com o gozo. O gozo é uma transgressão da lei.

O gozo permanece nesse campo central da Coisa, cujo o acesso é impossível ao sujeito, pois abole o sujeito. A lei barra o gozo, que só pode ser dito entre linhas (inter-dito) pelo sujeito dividido entre o desejo que vem do Outro e o gozo que está na Coisa.

 No Seminário 20, Mais ainda (1973), Lacan apresenta tentativas de cifrar o gozo, em diferentes modalidades, como também as fórmulas da sexuação.

Tipos de gozo:                             

Gozo do Outro – lugar de proibida entrada porque falamos. Seria a satisfação absoluta do desejo. Gozo mítico, ligado à Coisa, não simbolizado. Busca de um gozo completo, pleno, de fazer Um com o outro. Santa Teresa D’Avila expressa o êxtase na escultura de Bernini, gozo dos místicos.

Gozo fálico – gozo parcial, que o sujeito se contenta parcialmente. O falo fazendo barreira ao gozo do Outro. Representa a perda de gozo devido à castração.

 Mais-de-gozar - equivale a mais-valia de Marx. Faz borda para uma falta. É o excesso de gozo como recuperação de uma perda. No processo de constituição do sujeito existe uma renúncia ao gozo do corpo, implicada na divisão do sujeito, sendo o objeto a resto deste sujeito barrado. O objeto a é captura de gozo.

Gozo da fala (jouis-sense) – gozo do sentido, ao falar, ao produzir sentido o sujeito goza. Também j’ouis sense (eu ouço sentido).

O outro gozo, gozo feminino, suplementar – gozo além do falo, gozo a mais, suplementar.

Como pensar o gozo na contemporaneidade? Podemos nos aproximar do momento atual como um estado de gozo. Gozo do imediato, pela velocidade, não permitindo a entrada do mediato, que seria o terceiro, que colocaria um limite na relação do sujeito com o outro. Ocorre a falência do Nome-do-Pai, da lei, da castração, operação necessária para barrar o sujeito, descompletá-lo, gerando a falta, para dar lugar ao desejo. O sujeito é falta-a-ser, não é completo, desejo é movimento, desejo de outra coisa. Hoje o gozo tapa a falta.

O Outro da linguagem, dimensão do simbólico, se desvanece, ocorrendo um gozo autístico, onde o Outro é excluído.

Atualmente os sujeitos usufruem de seus corpos, muitas vezes, sem limites. O discurso capitalista busca reproduzir um estado irrecuperável de completude. O laço social, relação entre os sujeitos, se sustenta do discurso, apresentando os modos de gozo de uma época, de uma cultura determinada. A cultura regula o gozo, como Freud já dizia no seu artigo o Mal-estar na Cultura (1930), fazendo com que o sujeito possa habitar com limites em sua época.

Mas, neste momento assistimos a queda dos ideais, que se apresenta pela falência do Pai, que se reflete no imaginário, inclusive na educação. Professores e pais não ocupam mais o lugar de autoridade. O autoritarismo, a tirania, substitui a autoridade, como o pai da horda, em Totem e Tabu (1913) de Freud, que é o pai autoritário que gozava das mulheres e dos filhos.

A falta que aponta para o desejo, hoje, é preenchida por objetos de consumo, como celulares, tablets, alimentos, drogas, etc. O sujeito não suporta a falta tão essencial para a estruturação da subjetividade. A cultura utilitária pós-moderna baseia-se na compulsão ao consumo, na busca em excesso do ter para camuflar a falta-a-ser. Uma sociedade narcisista, voltada para o espetáculo, onde a fronteira entre o público e o privado desaparece. Somos olhados o tempo todo, e objeto olhar ganha lugar de zênite, de apogeu, de gozo nas imagens oferecidas pela mídia.

Podemos observar o aumento de casos de anorexia e bulimia na atualidade. O modelo imaginário do corpo ideal, como supereu mundial, dita as normas do gozo do corpo perfeito. A anoréxica reage à demanda de se deixar alimentar através da recusa da demanda, já que não é signo de amor. Ela luta pelo seu desejo, querendo também furar o Outro do desejo. A bulímica goza em sua fome de boi, mas vomita para abrir espaço do desejo. Duas faces de desejo e gozo. O gozo da anoréxica pode conduzi-la à morte. Impulsões que apontam para a clínica do real, onde o gozo está localizado no corpo.

Nós, psicanalistas precisamos pensar a nossa época, onde o corpo, sede do gozo, devido à queda do simbólico, está capturado pelo Gozo do Outro, se tornando cada vez mais um espetáculo!

 

Nota:

Sobre os tipos de gozo: Maria Cristina Ocariz, O sintoma e a clínica psicanalítica, SP: Via Lettera Ed, 2003.