O
gozo na contemporaneidade
Rosa Jeni Matz
O conceito
de gozo em Lacan se aproxima do conceito de gozo em Freud. Freud utiliza o
significante Genuss, gozo, em sua
conotação sexual. Freud afirma que o aparelho psíquico é governado por um
princípio regulador, princípio do prazer, que visa o esvaziamento de tensão, homeostase,
equilíbrio, e quando ocorre um excesso de energia, que é sentido pelo sujeito
como desprazer, entramos na dimensão do gozo, o além do princípio do prazer (Além do princípio do prazer, 1920).
Freud se refere ao ganho secundário da doença,
que é a vantagem, o lucro, que a doença pode trazer ao sujeito. Versa sobre o ganho primário e o ganho secundário da
doença. O ganho primário de uma doença poupa o indivíduo de um conflito
psíquico. Já o ganho secundário é o ganho que surge quando um sujeito sofre, por
exemplo, um acidente no trabalho, é penoso porque ele fica sem o trabalho, mas
no momento que ele recebe a indenização pelo acidente, ele pode não querer
retornar ao trabalho. Surge um ganho de gozo nesta condição. É importante
frisar que o adoecimento que se traduz em ganhos primários e secundários é
inconsciente, e o ganho secundário é gozo.
Freud
diz que há uma tendência do psiquismo para a repetição, compulsão à repetição,
que ultrapassa o princípio do prazer, que aponta à pulsão de morte. Surge o
novo dualismo pulsional: pulsão de vida e pulsão de morte. O sujeito sofre uma
coação de repetir experiências dolorosas, traumáticas, de desprazer, experiências
recalcadas, que o sujeito não recorda, e que são repetidas como vivências
atuais em sua vida. O conceito de compulsão à repetição traz o além do
princípio do prazer, como tentativa de assimilar o traumático, aproximando a
pulsão de morte à inércia, estado anterior do ser vivo. A pulsão de morte surge
em estados de gozo do sujeito quando ele ultrapassa a barreira do prazer, o
limite, a lei, indo de encontro à morte. O princípio do prazer é limite ao
gozo.
Em
Lacan o conceito de gozo é fundamental. Apresenta o gozo como fora da linguagem,
não tem representação. O aforismo lacaniano “o inconsciente é estruturado como
uma linguagem” apresenta o Outro como um lugar, onde a cadeia significante
desliza, e no intervalo se situa o desejo. Mas, nem tudo é linguagem, nem tudo
são palavras, no ser humano, há gozo. O lugar do gozo é no corpo.
No
seminário A ética da psicanálise
(1960), o conceito de gozo é importado do campo jurídico, jouissance (usufruto), que é um direito dado a uma pessoa de
gozar ou fruir de um bem cuja propriedade pertence a outrem. Diferente do
desejo, que aponta para o próprio. Neste livro Lacan traz o das Ding, a Coisa, de Freud, como
estatuto do gozo inicial, de uma fusão inicial bebê-mãe, que equivale ao desejo
incestuoso, sem limite. O gozo estaria do lado da Coisa.
O
desejo é desejo do Outro, sendo o Outro lugar do significante. O desejo se articula
com a lei, Nome-do-Pai, lei primordial da interdição do incesto. O desejo,
submetido à lei, é defesa do sujeito em sua relação com o gozo. O gozo é uma
transgressão da lei.
O
gozo permanece nesse campo central da Coisa, cujo o acesso é impossível ao
sujeito, pois abole o sujeito. A lei barra o gozo, que só pode ser dito entre
linhas (inter-dito) pelo sujeito dividido entre o desejo que vem do Outro e o
gozo que está na Coisa.
No Seminário 20, Mais ainda (1973), Lacan apresenta tentativas de cifrar o gozo, em
diferentes modalidades, como também as fórmulas da sexuação.
Tipos
de gozo:
Gozo
do Outro – lugar de proibida entrada porque falamos. Seria a satisfação
absoluta do desejo. Gozo mítico, ligado à Coisa, não simbolizado. Busca de um
gozo completo, pleno, de fazer Um com o outro. Santa Teresa D’Avila expressa o
êxtase na escultura de Bernini, gozo dos místicos.
Gozo
fálico – gozo parcial, que o sujeito se contenta parcialmente. O falo fazendo
barreira ao gozo do Outro. Representa a perda de gozo devido à castração.
Mais-de-gozar - equivale a mais-valia de Marx.
Faz borda para uma falta. É o excesso de gozo como recuperação de uma perda. No
processo de constituição do sujeito existe uma renúncia ao gozo do corpo,
implicada na divisão do sujeito, sendo o objeto a resto deste sujeito barrado. O objeto a é captura de gozo.
Gozo
da fala (jouis-sense) – gozo do sentido, ao falar, ao produzir sentido o
sujeito goza. Também j’ouis sense (eu ouço sentido).
O
outro gozo, gozo feminino, suplementar – gozo além do falo, gozo a mais, suplementar.
Como
pensar o gozo na contemporaneidade? Podemos nos aproximar do momento atual como
um estado de gozo. Gozo do imediato, pela velocidade, não permitindo a entrada
do mediato, que seria o terceiro, que colocaria um limite na relação do sujeito
com o outro. Ocorre a falência do Nome-do-Pai, da lei, da castração, operação
necessária para barrar o sujeito, descompletá-lo, gerando a falta, para dar
lugar ao desejo. O sujeito é falta-a-ser, não é completo, desejo é movimento,
desejo de outra coisa. Hoje o gozo tapa a falta.
O
Outro da linguagem, dimensão do simbólico, se desvanece, ocorrendo um gozo
autístico, onde o Outro é excluído.
Atualmente
os sujeitos usufruem de seus corpos, muitas vezes, sem limites. O discurso capitalista
busca reproduzir um estado irrecuperável de completude. O laço social, relação
entre os sujeitos, se sustenta do discurso, apresentando os modos de gozo de uma
época, de uma cultura determinada. A cultura regula o gozo, como Freud já dizia
no seu artigo o Mal-estar na Cultura (1930),
fazendo com que o sujeito possa habitar com limites em sua época.
Mas,
neste momento assistimos a queda dos ideais, que se apresenta pela falência do
Pai, que se reflete no imaginário, inclusive na educação. Professores e pais
não ocupam mais o lugar de autoridade. O autoritarismo, a tirania, substitui a
autoridade, como o pai da horda, em Totem
e Tabu (1913) de Freud, que é o pai autoritário que gozava das mulheres e
dos filhos.
A
falta que aponta para o desejo, hoje, é preenchida por objetos de consumo, como
celulares, tablets, alimentos,
drogas, etc. O sujeito não suporta a falta tão essencial para a estruturação da
subjetividade. A cultura utilitária pós-moderna baseia-se na compulsão ao
consumo, na busca em excesso do ter para camuflar a falta-a-ser. Uma sociedade
narcisista, voltada para o espetáculo, onde a fronteira entre o
público e o privado desaparece. Somos olhados o tempo todo, e objeto olhar
ganha lugar de zênite, de apogeu, de gozo nas imagens oferecidas pela mídia.
Podemos
observar o aumento de casos de anorexia e bulimia na atualidade. O modelo
imaginário do corpo ideal, como supereu mundial, dita as normas do gozo do
corpo perfeito. A anoréxica reage à demanda de se deixar alimentar através da recusa
da demanda, já que não é signo de amor. Ela luta pelo seu desejo, querendo
também furar o Outro do desejo. A bulímica goza em sua fome de boi, mas vomita
para abrir espaço do desejo. Duas faces de desejo e gozo. O gozo da anoréxica
pode conduzi-la à morte. Impulsões que apontam para a clínica do real, onde o
gozo está localizado no corpo.
Nós,
psicanalistas precisamos pensar a nossa época, onde o corpo, sede do gozo, devido
à queda do simbólico, está capturado pelo Gozo do Outro, se tornando cada vez
mais um espetáculo!
Nota:
Sobre
os tipos de gozo: Maria Cristina Ocariz,
O sintoma e a clínica psicanalítica, SP: Via Lettera Ed, 2003.