quinta-feira, 25 de junho de 2015

A criança como sintoma dos pais


                     A criança como sintoma dos pais.                     
                                                                                          Rosa Jeni Matz

Lacan em Nota sobre a criança (1969), escrita à Dra. Jenny Aubry, publicado nos Outros Escritos, afirma que “o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar”[1]. O sintoma infantil pode representar a verdade do casal parental. Verdade da mãe em relação à sua falta, ao seu desejo, e verdade do pai como vetor da encarnação da lei no desejo.
O sintoma como efeito da subjetividade materna torna a criança correlata de uma fantasia, que é um enquadre da realidade, onde vai responder à falta na mãe, desviando a mãe de sua verdade própria, e muitas vezes a protegendo. O sintoma do filho tem como fim ocultar uma verdade ameaçadora. Não ocorrendo mediação da função paterna, a criança fica exposta às capturas fantasísticas, imaginárias, tornando-se objeto da mãe, e revelando a verdade deste objeto. A criança ocupa o lugar do objeto a na fantasia.

Fórmula da fantasia
$ ◊ a

A fantasia é fundamental porque articula o sujeito ($) ao objeto (a), objeto causa de desejo, sempre perdido, que escapa, mas que pode ser acionado como tampa da falta, gerando gozo. A fantasia sustenta o desejo.


Guillaume, a criança como objeto de gozo materno

Filme: Les garçons, et Guillaume, à la table (2013), direção de Guilhaume Gallienne.
Título em português: Eu, Mamãe e os Meninos.
“A primeira lembrança que tenho de minha mãe é de quando eu tinha uns quatro ou cinco anos. Ela chamou os filhos para o jantar, dizendo: “Les garçons, et Guillaume, à la table”  (“Meninos e Guillaume, à mesa!”).
Esta “sentença” de sua mãe traça o seu destino, caminho que Guillaume percorre, narrando a sua história.
Guillaume é o desejo do desejo do Outro (Mãe): uma menina. Encarna o desejo da mãe, uma menina. Mais tarde, na vida adulta, busca desvendar o enigma da sua sexualidade, até então enganado por uma suposta homossexualidade, através de encontros confusos e cômicos com homens. Mas, num jantar de uma amiga, uma mulher desperta o seu desejo. Neste momento, neste mesmo jantar, surge a enunciação que o reconhece e o coloca como sujeito em sua vida: “Les filles, Guillaume, à la table” (“As meninas, Guillaume, à mesa”); surpreendendo-o, colocando-o na posição de homem, trazendo assim o significante da diferença sexual, modificando uma alienação a que estava assujeitado.

Em Alocução sobre as psicoses da criança[2], 1968, Lacan afirma: “Toda formação humana tem por essência, e não por acaso, de refrear o gozo”, sendo “o princípio do prazer o freio do gozo”[3]. A mãe de Guillaume, ao tamponar a sua falta pelo filho, torna-o objeto de seu gozo.
Lacan discordou de alguns pós-freudianos que desconheciam a ação do significante na constituição do sujeito na relação dual mãe-criança, e também pelo não estabelecimento do enquadre da fantasia que conjuga sujeito, desejo e gozo. Diz que eles criaram uma fantasia postiça sobre a harmonia instalada no habitat materno.
Lacan formula a expressão “criança generalizada”, lançando uma questão ética, chamando a atenção para o declínio do pai em nossa cultura. Destaca a tendência a objetalização do sujeito, resultando então em irresponsabilidade quanto ao modo de gozo de cada um. A responsabilidade do sujeito adulto fica tomada pelo zênite do gozo (“todos somos crianças”). Assinala que o sintoma somático da criança desvela a não mediação paterna na relação mãe-criança, encarnando a verdade do Outro, sendo um recurso inesgotável para o encobrimento do sintoma parental, e garantindo o desconhecimento da verdade materna ao proteger a mãe.
A criança se torna um objeto familiar, impossibilitada de expressar o seu lugar de sujeito na família, colocando no corpo o gozo excessivo, devido à impossibilidade da cifra da linguagem. Conforme a sua posição nas estruturas: neurótica, perversa e psicótica, a criança pode saturar, ocupar o lugar deste objeto, substituindo a falta específica do desejo da mãe, podendo atestar a culpa (neurose), servindo de fetiche (perversão), ou encarnando a recusa primordial (psicose). O sintoma somático da criança pode ser o representante da culpabilidade inesgotável de seus pais. A criança colocada como fetiche dos pais encobre a castração, renegando a falta, sendo objeto da perversão parental. E, a criança, na psicose, pode ser objeto da rejeição dos pais, não ter sido desejada pela mãe, havendo recusa de seu nascimento.  
É preciso estar atento na clínica com crianças para a seguinte posição ética no dizer de Lacan: “se opor a que seja o corpo da criança que corresponda ao objeto a[4]. Que o corpo real da criança não sirva como objeto do Outro, a criança não pode ser capturada pelos caprichos maternos, como refém da mãe, assim apagando a sua posição de sujeito desejante. O analista de crianças se opõe ao gozo parental. Qualquer criança, no início de sua vida, é colocada no lugar de objeto materno, um objeto que pode ser precioso, mas que também pode ser lixo do Outro. O importante é a possibilidade do movimento advir: partindo inicialmente de objeto, assujeitado, para a posição de sujeito, onde tanto o desejo da criança como o desejo da mãe possam surgir.
O processo de subjetivação, o advento do sujeito, acontece em dois momentos. O primeiro momento é o da alienação, movimento simbólico que introduz a linguagem para a criança. Depois, num segundo momento, ocorre o mecanismo da separação, onde a criança percebe que ela não cobre totalmente a falta da mãe, e a mãe também aponta o seu desejo para outras direções diferentes da criança, mostrando a sua falta. O perigo está quando a criança fica fixada à posição de objeto materno, na alienação, não ocorrendo a possibilidade do mecanismo de separação. O fundamental é a castração materna, é esta mãe ser um ser para o sexo, cortada pelo significante Nome-do-Pai.

Lacan, ao comentar o objeto transicional de Winnicott  diz que o importante “não é que o objeto transicional preserve a autonomia da criança, mas que a criança sirva ou não de objeto transicional para a mãe”[5]. A estrutura deste objeto é “a de um condensador para o gozo na medida em que, pela regulação do prazer, ele é despojado do corpo”[6]. O “objeto transicional” da criança, como o paninho ou o ursinho, não é o representante nem da criança, nem da mãe, nem da ausência física da mãe, mas representa o significante da falta da mãe (Seminário 4: A relação de objeto), representa o objeto materno. Assim, o falo imaginário da mãe não fica colocado no corpo da criança, seu desejo não se realiza no corpo de seu filho, o que seria extremamente perigoso. O desejo materno permite que a criança possa investir nesse outro objeto. É importante que a criança também seja transicional para a mãe, que apesar de ter sido proveniente do corpo da mãe possa se tornar separada desta. 
Vivemos num momento de novas famílias. Novos arranjos acontecem, embora a família se mantém. O que mudam são os que ocupam estes lugares. Os lugares parentais podem ser ocupados por casais heterossexuais, como também por casais homossexuais como a homopaternidade e a homomaternidade. A questão da criança como sintoma dos pais, desenvolvida por Lacan no final da década de 1960, ainda vigora em nossa cultura atual, também nestas novas famílias, pois o que ele denuncia é o perigo do corpo da criança ser tomado como objeto do gozo do Outro. O importante é a sustentação da falta do objeto, isto é, permitir que o desejo singular de cada membro familiar esteja vivo. Esta é uma questão fundamentalmente ética na clínica psicanalítica de crianças, e nós psicanalistas, temos como tarefa frear o gozo parental e desvelar a verdade do desejo singular, tanto da criança como de seus “pais”, pois o desejo é o melhor remédio contra o gozo.

Maud Mannoni busca no mito familiar a causa, a origem, do sofrimento da criança. Para ela o fundamental é como a criança foi gerada, recebida pelos seus pais e conduzida para a costura de suas pulsões. Antes da criança chegar ao mundo familiar as bases edípicas já estão colocadas. O mito familiar aparece através de “certo feixe de palavras”, discurso que a criança recebe dos pais. Este feixe de palavras alimenta uma repetição sintomática, daí a tese de Mannoni sobre a importância do tratamento psicanalítico dos pais. O problema é os pais, sendo a criança apenas efeito. Durval Checchinato em seu livro Psicanálise de pais: crianças, sintomas dos pais enfatiza a análise dos pais da criança-sintoma, pois a criança responde e está alienada à demanda e desejo do Outro: “Como o filho pode querer desejar se o desejo dos pais, ou de um deles, é tão imperativo, abafador?”[7]
Mannoni, ao se referir à psicose, assinala a emissão de uma palavra mortífera que a criança se defrontou no início de sua vida, que lançou uma maldição sobre a criança. A criança se torna refém dessa palavra de seus pais, impedindo que o seu desejo surja. Assim, a análise dos pais consiste em detectar esta palavra mortífera, significante que aprisiona a criança. Ao se desembaraçar a palavra mortífera dos pais o núcleo patogênico da criança se dissipará, havendo um movimento contrário a impressão da “marca ao nível do corpo”, tendo acesso tanto a criança como os pais ao simbólico. Ocorre aí uma operação de castração, libertando o sujeito ao seu desejo próprio. 
Mannoni enfatiza a importância da análise dos pais devido ao efeito que é a criança como depositário das palavras dos pais, que aprisionam a criança em seu discurso. Por mais que se trate a criança, ela está inserida em seu contexto familiar, e se o feixe das palavras parentais não forem decifradas retornarão constantemente nos sintomas infantis. Ao descobrir o significante devastador do desejo parental, ou de um dos pais, o sintoma da criança se desfaz. 
Questão: Como praticar uma análise de criança sem a análise parental?
Não nos referimos ao acompanhamento dos pais, mas a análise dos pais.
A análise dos pais se torna fundamental e indispensável para o processo de decifração do sintoma infantil.


Bibliografia:
Checchinato, Durval. Psicanálise de pais: crianças, sintomas dos pais. R J: Cia de Freud, 2007.
Lacan, J. A relação de objeto (Seminário 4). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
Lacan, J. Alocução sobre as psicoses da criança. Outros Escritos. R J: Jorge Zahar Ed., 2003.
Lacan, J. Nota sobre a criança. Outros Escritos. R J: Jorge Zahar Ed., 2003.
Filme: Les garçons, et Guillaume, à la table (2013), direção de Guilhaume Gallienne, França/Bélgica, 2013.

Notas

[1] Lacan, J. Outros Escritos. R J: Jorge Zahar Ed., 2003, p.369.
[2] Lacan, J. Outros Escritos. R J: Jorge Zahar Ed., 2003, p.359. 
[3] Ibid., p.362.
[4] Ibid., p.366.
[5] Ibid., p.366.
[6] Ibid., p.368.
[7] Checchinato, Durval. Psicanálise de pais: crianças, sintomas dos pais. R J: Cia de Freud, 2007, p.119.

terça-feira, 24 de março de 2015

Dois lados do amor - The disappearance of Eleanor Rigby

Dois lados do amor - The disappearance of Eleanor Rigby
de Ned Benson, 2014.
Com James McAvoy  e Jessica Chastain.

Eleanor Rigby, inspiração de uma linda e triste canção dos Beatles que trata da solidão humana:
“Ah, look at all the lonely people = Ah ,olhe para todas as pessoas solitárias…”


Este filme apresenta vários temas. Entre eles o do luto não realizado. O casal se amava, mas tragicamente perdem um filho, e nada é falado. Nem o que aconteceu com o filho é divulgado, narrativa cinematográfica da beleza e do horror da tragédia silenciada. O filme mostra o calar sobre o luto e suas conseqüências. Eleanor desaparece, faz uma passagem ao ato, tentando o suicídio. O marido, Conor, também depois do incidente fatal coloca tudo sobre e do filho “dentro do armário”, desaparecimento do filho. Conor a busca, mas ela busca a solidão (lonely people). Apesar do afeto familiar a palavra pouco aparece. Simbólico apagado. Eles se amam ainda? Mais, ainda? O gozo como saída...