A criança como sintoma dos
pais.
Rosa Jeni Matz
Lacan em Nota
sobre a criança (1969), escrita à Dra. Jenny Aubry, publicado nos Outros
Escritos, afirma que “o sintoma da criança acha-se em condição de responder
ao que existe de sintomático na estrutura familiar”[1].
O sintoma infantil pode representar a verdade do casal parental. Verdade da mãe
em relação à sua falta, ao seu desejo, e verdade do pai como vetor da
encarnação da lei no desejo.
O sintoma como
efeito da subjetividade materna torna a criança correlata de uma fantasia, que
é um enquadre da realidade, onde vai responder à falta na mãe, desviando a mãe
de sua verdade própria, e muitas vezes a protegendo. O sintoma do filho tem
como fim ocultar uma verdade ameaçadora. Não ocorrendo mediação da função
paterna, a criança fica exposta às capturas fantasísticas, imaginárias,
tornando-se objeto da mãe, e revelando a verdade deste objeto. A criança ocupa
o lugar do objeto a na fantasia.
Fórmula da
fantasia
$ ◊ a
A fantasia é fundamental porque articula o
sujeito ($) ao objeto (a), objeto causa de desejo, sempre perdido, que
escapa, mas que pode ser acionado como tampa da falta, gerando gozo. A fantasia
sustenta o desejo.
Guillaume, a criança como objeto de
gozo materno
Filme: Les
garçons, et Guillaume, à la table (2013), direção de Guilhaume Gallienne.
Título em
português: Eu, Mamãe e os Meninos.
“A primeira lembrança que tenho de minha
mãe é de quando eu tinha uns quatro ou cinco anos. Ela chamou os filhos para o
jantar, dizendo: “Les garçons, et Guillaume, à la table” (“Meninos e Guillaume, à mesa!”).
Esta
“sentença” de sua mãe traça o seu destino, caminho que Guillaume percorre,
narrando a sua história.
Guillaume é o
desejo do desejo do Outro (Mãe): uma menina. Encarna o desejo da mãe, uma
menina. Mais tarde, na vida adulta, busca desvendar o enigma da sua
sexualidade, até então enganado por uma suposta homossexualidade, através de
encontros confusos e cômicos com homens. Mas, num jantar de uma amiga, uma
mulher desperta o seu desejo. Neste momento, neste mesmo jantar, surge a
enunciação que o reconhece e o coloca como sujeito em sua vida: “Les filles,
Guillaume, à la table” (“As meninas, Guillaume, à mesa”); surpreendendo-o,
colocando-o na posição de homem, trazendo assim o significante da diferença
sexual, modificando uma alienação a que estava assujeitado.
Em Alocução
sobre as psicoses da criança[2],
1968, Lacan afirma: “Toda formação humana tem por essência, e não por
acaso, de refrear o gozo”, sendo “o princípio do prazer o freio do gozo”[3].
A mãe de Guillaume, ao tamponar a sua falta pelo filho, torna-o objeto de seu
gozo.
Lacan discordou
de alguns pós-freudianos que desconheciam a ação do significante na
constituição do sujeito na relação dual mãe-criança, e também pelo não
estabelecimento do enquadre da fantasia que conjuga sujeito, desejo e gozo. Diz
que eles criaram uma fantasia postiça sobre a harmonia instalada no habitat
materno.
Lacan formula a
expressão “criança generalizada”, lançando uma questão ética, chamando a
atenção para o declínio do pai em nossa cultura. Destaca a tendência a
objetalização do sujeito, resultando então em irresponsabilidade quanto ao modo
de gozo de cada um. A responsabilidade do sujeito adulto fica tomada pelo
zênite do gozo (“todos somos crianças”). Assinala que o sintoma somático da
criança desvela a não mediação paterna na relação mãe-criança, encarnando a
verdade do Outro, sendo um recurso inesgotável para o encobrimento do sintoma
parental, e garantindo o desconhecimento da verdade materna ao proteger a mãe.
A criança se torna um objeto familiar, impossibilitada de
expressar o seu lugar de sujeito na família, colocando no corpo o gozo
excessivo, devido à impossibilidade da cifra da linguagem. Conforme a sua
posição nas estruturas: neurótica, perversa e psicótica, a criança pode
saturar, ocupar o lugar deste objeto, substituindo a falta específica do desejo
da mãe, podendo atestar a culpa (neurose), servindo de fetiche (perversão), ou
encarnando a recusa primordial (psicose). O sintoma somático da criança pode
ser o representante da culpabilidade inesgotável de seus pais. A criança
colocada como fetiche dos pais encobre a castração, renegando a falta, sendo
objeto da perversão parental. E, a criança, na psicose, pode ser objeto da
rejeição dos pais, não ter sido desejada pela mãe, havendo recusa de seu
nascimento.
É preciso estar atento na clínica com crianças para a
seguinte posição ética no dizer de Lacan: “se opor a que seja o corpo da
criança que corresponda ao objeto a”[4].
Que o corpo real da criança não sirva como objeto do Outro, a criança
não pode ser capturada pelos caprichos maternos, como refém da mãe, assim
apagando a sua posição de sujeito desejante. O analista de crianças se opõe ao
gozo parental. Qualquer criança, no início de sua vida, é colocada no lugar de
objeto materno, um objeto que pode ser precioso, mas que também pode ser lixo
do Outro. O importante é a possibilidade do movimento advir: partindo
inicialmente de objeto, assujeitado, para a posição de sujeito, onde tanto o
desejo da criança como o desejo da mãe possam surgir.
O processo de subjetivação, o advento do sujeito,
acontece em dois momentos. O primeiro momento é o da alienação, movimento
simbólico que introduz a linguagem para a criança. Depois, num segundo momento,
ocorre o mecanismo da separação, onde a criança percebe que ela não cobre
totalmente a falta da mãe, e a mãe também aponta o seu desejo para outras
direções diferentes da criança, mostrando a sua falta. O perigo está quando a
criança fica fixada à posição de objeto materno, na alienação, não ocorrendo a
possibilidade do mecanismo de separação. O fundamental é a castração materna, é
esta mãe ser um ser para o sexo, cortada pelo significante Nome-do-Pai.
Lacan, ao
comentar o objeto transicional de Winnicott
diz que o importante “não é que o objeto transicional preserve a
autonomia da criança, mas que a criança sirva ou não de objeto transicional
para a mãe”[5]. A estrutura
deste objeto é “a de um condensador para o gozo na medida em que, pela
regulação do prazer, ele é despojado do corpo”[6]. O “objeto
transicional” da criança, como o paninho ou o ursinho, não é o representante
nem da criança, nem da mãe, nem da ausência física da mãe, mas representa o
significante da falta da mãe (Seminário 4: A relação de objeto),
representa o objeto materno. Assim, o falo imaginário da mãe não fica colocado
no corpo da criança, seu desejo não se realiza no corpo de seu filho, o que
seria extremamente perigoso. O desejo materno permite que a criança possa
investir nesse outro objeto. É importante que a criança também seja
transicional para a mãe, que apesar de ter sido proveniente do corpo da mãe
possa se tornar separada desta.
Vivemos num momento de novas famílias. Novos arranjos
acontecem, embora a família se mantém. O que mudam são os que ocupam estes
lugares. Os lugares parentais podem ser ocupados por casais heterossexuais,
como também por casais homossexuais como a homopaternidade e a homomaternidade.
A questão da criança como sintoma dos pais, desenvolvida por Lacan no final da
década de 1960, ainda vigora em nossa cultura atual, também nestas novas
famílias, pois o que ele denuncia é o perigo do corpo da criança ser tomado
como objeto do gozo do Outro. O importante é a sustentação da falta do objeto,
isto é, permitir que o desejo singular de cada membro familiar esteja vivo.
Esta é uma questão fundamentalmente ética na clínica psicanalítica de crianças,
e nós psicanalistas, temos como tarefa frear o gozo parental e desvelar a
verdade do desejo singular, tanto da criança como de seus “pais”, pois o desejo
é o melhor remédio contra o gozo.
Maud Mannoni busca no mito familiar a causa, a origem, do
sofrimento da criança. Para ela o fundamental é como a criança foi gerada,
recebida pelos seus pais e conduzida para a costura de suas pulsões. Antes da
criança chegar ao mundo familiar as bases edípicas já estão colocadas. O mito
familiar aparece através de “certo feixe de palavras”, discurso que a criança
recebe dos pais. Este feixe de palavras alimenta uma repetição sintomática, daí
a tese de Mannoni sobre a importância do tratamento psicanalítico dos pais. O
problema é os pais, sendo a criança apenas efeito. Durval Checchinato em seu
livro Psicanálise de pais: crianças, sintomas dos pais enfatiza a
análise dos pais da criança-sintoma, pois a criança responde e está alienada à
demanda e desejo do Outro: “Como o filho pode querer desejar se o desejo dos
pais, ou de um deles, é tão imperativo, abafador?”[7]
Mannoni, ao se referir à psicose, assinala a emissão de
uma palavra mortífera que a criança se defrontou no início de sua vida,
que lançou uma maldição sobre a criança. A criança se torna refém dessa
palavra de seus pais, impedindo que o seu desejo surja. Assim, a análise dos
pais consiste em detectar esta palavra mortífera, significante que aprisiona a
criança. Ao se desembaraçar a palavra mortífera dos pais o núcleo patogênico da
criança se dissipará, havendo um movimento contrário a impressão da “marca ao
nível do corpo”, tendo acesso tanto a criança como os pais ao simbólico. Ocorre
aí uma operação de castração, libertando o sujeito ao seu desejo próprio.
Mannoni enfatiza a importância da análise dos pais devido
ao efeito que é a criança como depositário das palavras dos pais, que
aprisionam a criança em seu discurso. Por mais que se trate a criança, ela está
inserida em seu contexto familiar, e se o feixe das palavras parentais não
forem decifradas retornarão constantemente nos sintomas infantis. Ao descobrir
o significante devastador do desejo parental, ou de um dos pais, o sintoma da
criança se desfaz.
Questão: Como praticar uma análise de criança sem a
análise parental?
Não nos referimos ao acompanhamento dos pais, mas a
análise dos pais.
A análise dos pais se torna fundamental e indispensável
para o processo de decifração do sintoma infantil.
Bibliografia:
Checchinato, Durval. Psicanálise de pais: crianças,
sintomas dos pais. R J: Cia de Freud, 2007.
Lacan, J. A relação de objeto (Seminário 4). Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
Lacan, J. Alocução sobre as psicoses da criança.
Outros Escritos. R J: Jorge Zahar Ed., 2003.
Lacan, J. Nota sobre a criança. Outros Escritos. R J: Jorge
Zahar Ed., 2003.
Filme: Les
garçons, et Guillaume, à la table (2013), direção de Guilhaume Gallienne,
França/Bélgica, 2013.
Notas
[1] Lacan, J.
Outros Escritos. R J: Jorge Zahar Ed., 2003, p.369.
[2] Lacan, J.
Outros Escritos. R J: Jorge Zahar Ed., 2003, p.359.
[3] Ibid.,
p.362.
[4] Ibid.,
p.366.
[5] Ibid.,
p.366.
[6] Ibid.,
p.368.
[7] Checchinato,
Durval. Psicanálise de pais: crianças, sintomas dos pais. R J: Cia de
Freud, 2007, p.119.