sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

O funâmbulo, o gozo, o além...


                                            O funâmbulo, o gozo, o além...

                                                                                 Rosa Jeni Matz

Nietzsche apresenta o funâmbulo no Prólogo de sua obra Assim falou Zaratustra (Nietzsche 2006). O funâmbulo é um bailarino sobre uma corda, que se equilibra em grande altitude, homem que tenta sobreviver numa profissão de risco, dançando sobre a corda lançada pela “altitude” da metafísica.
O percurso do homem da atualidade reativa o caminho percorrido pelo funâmbulo de Nietzsche. O funâmbulo atual, preso aos valores dominantes, midiáticos, religiosos e econômicos, percorre uma trilha de difícil passagem, tentando se equilibrar numa situação-limite, situação sem nome, experiência que clama por uma palavra. Durante o caminhar do funâmbulo de Nietzsche surge o palhaço, que “passa por cima” do obstáculo, sendo o espírito da gravidade, representante do niilismo. Salta sobre o funâmbulo, que “cai da cena”, perde o equilíbrio, onde tentava sustentar a sua fantasia. Ao alcançar o chão, o funâmbulo se despedaça. Morre nos braços de Zaratustra.
O sujeito enfrenta desafios no novo milênio. Segue, buscando a possibilidade de cortar o além do gozo. Travessia do campo do gozo e a segunda morte.

O funâmbulo de Nietzsche
Após dez anos vivendo sobre a montanha, Zaratustra levanta com a aurora de uma manhã, e decide descer ao encontro dos homens, já que transbordava de sabedoria. Zaratustra, gozo do saber? Mas, a quem falar? Para todos e para ninguém, os universais, pois ao chegar à cidade mais próxima não encontra ouvidos para escutarem a sua grande “nova”, que parte da premissa “Deus morreu”, trazendo para o homem o ensino super-homem, “o homem é algo que deve ser superado”, “o super-homem é o sentido da terra” (Nietzsche 2006, 36). Gozo do homem, sentido da terra. “Sentido da terra” não como fim estabelecido pela metafísica, mas como uma meta, um fito, um destino, onde o homem se torna responsável pela sua vida aqui na terra, onde inventa e cria, alcançando um mar que faz submergir o desprezo do homem. O funâmbulo, após ouvir o discurso de Zaratustra na praça, julga que o discurso se referia a ele, e prepara-se para o trabalho a fazer. Mas, Zaratustra ainda diz ao povo: “O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem – uma corda sobre um abismo” (Nietzsche, 2006, 38). Há o perigo ao transpor o abismo, de vacilar, olhar para trás. O povo ri de Zaratustra, que não é compreendido, representando já este povo o último homem, que interpreta “Deus está morto” como imoralidade, trazendo o tempo do mais desprezível dos homens, tempo que o próprio homem se despreza, este homem que inventou a felicidade, embora piscando o olho.
Então, o funâmbulo sai de uma pequena porta e caminha na corda, que se entende entre duas torres, suspensa sobre o povo. Na metade do seu caminho surge da pequena porta um palhaço, pulando rapidamente atrás do funâmbulo e o pressiona, até que pula por cima dele, soltando um grito diabólico. O funâmbulo assusta-se, cai no vazio, percebendo o triunfo do rival. Cai gravemente ferido, com ossos partidos, mas vivo. Zaratustra se aproxima dele. O funâmbulo diz que desde muito sabia que o Diabo o alcançaria, sendo que Zaratustra retruca negando a existência do Diabo e do inferno (nem o Mal, mas também nem o Bem).
Zaratustra não despreza o funâmbulo, pois este faz do perigo o seu trabalho, e deseja sepultar-lhe com as suas mãos. À noite, Zaratustra parte com o companheiro cadáver, carregando-o às costas, e após alguns desencontros e fome, chega à floresta, adormece, e ao acordar uma nova luz raiava em si, anunciando que precisava de companheiros vivos, para quem possa falar, e não de rebanho, de multidão, de mortos. O seu primeiro companheiro, o funâmbulo, um cadáver, fica enterrado numa árvore oca, protegido contra os lobos. Zaratustra não quer mais se dirigir aos mortos, quer se unir aos criadores, afirmar a vida. Quer afastar o demônio do niilismo, “a causa pela qual todas as coisas caem” (Nietzsche, 2006, 67), o espírito de gravidade. 
O funâmbulo assusta-se, deixa-se se desequilibrar pela arrogância do palhaço, representação remanescente do gênio maligno de Descartes, sendo maligna esta face do mal, que se refere à outra face, a de Deus, apontando para a dualidade Bem e Mal. Metafísica dualista do Bem e do Mal. Nietzsche busca com Zaratustra o para além, o para além do Bem e do Mal, não permanecendo mais na dualidade cartesiana, mente e corpo, e sim, como expressa no discurso Dos desprezadores do corpo “a alma é somente uma palavra para alguma coisa no corpo” (Nietzsche 2006, 60). O para além do Bem e do Mal é uma filosofia que diz: “Eu sou todo corpo e nada além disso” (Nietzsche 2006, 60).

O sentido da Terra como gozo
Hoje, o homem vive situações-limite, sendo muitos os funâmbulos. Estamos em outro milênio, mas observamos como o pensamento de Nietzsche através da fala de Zaratustra, é vigoroso. O espírito religioso impera, a globalização apaga as fronteiras. Muitos querem alcançar novos territórios, mas não conseguem transpor suas próprias fronteiras, barreiras, preconceitos, que contêm antigos valores. Estes homens não aprenderam o sentido da terra.
Para muitos, com o avanço da tecnologia, da mídia, a Terra se tornou achatada! Um disco chato! Lacan tentou apreender o Real pela topologia. Considera importante um analista saber usar uma tesoura. Através do cross-cap (gorro cruzado) mostra a relação do sujeito com o objeto, a fantasia, que o sustenta como sujeito desejante. Após um corte topológico no cross-cap surge uma faixa de Moebius, que representa o sujeito, e um disco chato, o objeto a. O sujeito dividido pelo corte, pela linguagem, está encoberto, sofrendo o eclipse da Terra. A Terra, para a tecnologia, é um objeto chato, e como objeto a, é um campo de gozo. O corpo é lugar de gozo, a Terra se torna campo de gozo. O homem está achatado, monótono, o objeto a cobrindo a sua falta, a sua castração. O solo e o homem se “intergozam”. E, ao se identificar imaginariamente com a Terra achatada, o homem se tornou chato, monótono, coisa.
Fomos levados a copiar modelos imperiosos, apontando para a ausência de identificações simbólicas. O homem retorna ao primado da consciência, à mimesis da consciência, às identificações imaginárias (aÛa’), e o significante Nome-do-Pai se torna obscuro. O simbólico torna-se sombra. Como Heidegger afirmava, o ente escondeu o Ser.

O funâmbulo e o campo entre as duas mortes
O funâmbulo da atualidade tenta atravessar abalado uma corda. Parte de um ponto para atingir um outro ponto. De que ponto ele parte? Para qual ponto ele segue? O homem atual está atravessando o campo das duas mortes descritas por Sade, e apresentadas por Lacan em A ética da Psicanálise (Lacan 1991). Lacan afirma que a segunda morte é evocada pelos heróis de Sade como “o ponto onde o próprio ciclo das transformações naturais se aniquila” (Lacan 1991, 301). Não há mais resto vivo, pois a vida não continua. Sade diz a respeito da Natureza e do crime: “Seria preciso, para ainda melhor servi-la, poder opor-se à regeneração resultante do cadáver que enterramos. O assassinato só tira a primeira vida ao indivíduo que abatemos; seria preciso poder arrancar-lhe a segunda, para ser ainda mais útil à natureza, pois ela quer o aniquilamento: está fora de nosso alcance dar aos nossos assassinatos a extensão que ela deseja” (Lacan 1991, 258).
Lacan articula que surge no enunciado de Sade o ponto de cisão entre o princípio de Nirvana ou de aniquilamento (retorno a um estado de repouso absoluto) e a pulsão de morte. A pulsão de morte se situa num âmbito histórico, na dimensão do que é memorável no sentido freudiano, registrado na cadeia significante, e se articula num nível só definível em função da cadeia significante, numa referência de ordem em relação ao funcionamento da natureza.
Lacan em Kant com Sade diz que a segunda morte “reduplica o desvanecimento do sujeito: do qual ele faz um símbolo, no anseio de que os elementos decompostos de nosso corpo, para não voltarem a se reunir, sejam, eles mesmos aniquilados” (Lacan 1998, 788).
Podemos pensar a segunda morte, morte simbólica, como o tempo do Instante: travessia do homem do estado de natureza à entrada na cultura, pelo acesso à Linguagem. Em Totem e Tabu (Freud 1974) Freud narra esta passagem pelo fim da horda patriarcal, que era constituída por um pai violento e ciumento, que guardava todas as fêmeas para si, e expulsou os filhos na medida que cresciam. Certo dia os irmãos retornaram, mataram e devoraram o pai (refeição totêmica), efetivando a identificação com ele, adquirindo cada um dos irmãos parte de sua força. A refeição totêmica é a “comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas coisas: da organização social, das restrições morais e da religião” (Freud 1974, 170).
Estamos num momento histórico em que observamos a queda da palavra, da linguagem, não ocorrendo espaço para o corte do Simbólico. A segunda morte, neste momento, encontra obstáculos para se efetivar. A fim de que o simbólico possa cunhar o indivíduo é necessária a transformação do estado de barbárie. O falo, significante do desejo, funciona como medida, razão, limite, operador de cunhagem da linguagem, estando velado. Como significado na operação da Metáfora Paterna, o falo aguarda a possibilidade de emergência do Nome-do-Pai, para que este possa apontar onde está o desejo na atualidade.
Pensemos a pulsão de morte. A pulsão é um conceito psicanalítico essencialmente fronteiriço. Uma linha de encontro ou “desencontro” entre o somático e psíquico. Nos termos de Freud Trieb é um “conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida de exigência feita à mente no sentido de trabalhar em conseqüência de sua ligação com o corpo” (Freud 1974, 142). Mente e corpo ligados. Sobre o mistério da ligação do corpo e da mente, Freud busca decifrá-lo através da pulsão, enquanto que Descartes atribui este ponto de ligação à glândula pineal.
O Jornal O Globo diz: “A Terra atravessa uma onda de extinção sem precedentes desde o fim dos dinossauros, segundo a ONU. A cada hora desaparecem três espécies de plantas ou de animais; por dia, 150 são extintas. A culpa da perda global de biodiversidade é da Humanidade. Destruição de habitats, caça e aquecimento global estão entre as principais causas” (O Globo 2007). O homem gozou da Terra. Lucrou do seu produto. Agora, ocorre a extinção deste produto. Mas, como na dialética do senhor e do escravo enunciada por Hegel, surge neste momento o alerta, como mediação, que ativa a mudança de posição na dialética da consciência humana. Esta notícia vai de encontro ao pensamento de Lacan sobre o ponto de cisão entre o princípio de Nirvana, ou de aniquilamento, e a pulsão de morte. O princípio de Nirvana aponta para o ponto de um gozo absoluto. Enquanto a pulsão de morte clama por uma simbolização, mesmo impossível, da morte.
Em Freud, a partir de 1920, o princípio de Nirvana surge como uma tendência radical para conduzir a excitação ao nível zero, referência ao princípio de inércia, buscando evitar qualquer fonte de excitação, o que leva o prazer ao aniquilamento. A pulsão de morte se apresenta como uma erótica fundante, como o eterno retorno da fundação e constituição traumática do sujeito. A experiência traumática, concomitantemente ao transbordamento pulsional, gera excesso contínuo de pulsão, sendo que o psiquismo persegue um domínio impossível, já que a descarga total é a meta final. A pulsão de morte se torna reduto indomável da pulsão, tendência do ser vivo a retornar ao “inorgânico”. Assim, ao lado do princípio do prazer surge um outro princípio, a compulsão à repetição, que funciona como um “eterno retorno” do mesmo, retorno a um ponto de partida, de constituição traumática do sujeito, relacionado à perda primordial. A pulsão de morte, em seu movimento em volta do objeto, objeto perdido em busca do tempo perdido da nomeação, anuncia esta tendência de volta ao inanimado como algo impossível, já que não é natural, tendo o trauma como ponto de partida da trilha inconsciente do sujeito. A ilusão de unidade é rompida.

O eterno retorno do mesmo

                      O eterno retorno é o pensamento mais arrebatador de Nietzsche. O devir do mundo transcorre para frente e para trás no tempo infinito. Como algo finito, o devir volta-se ao mesmo tempo sobre si, sendo o devir do mundo constante, eterno. Este devir do mundo como devir finito acontece num tempo infinito, não cessando após o esgotamento de suas possibilidades finitas, precisando se repetir no futuro como um devir constante. A totalidade do mundo é finita nas figuras do devir, logo as possibilidades de variação de seu caráter conjunto são finitas, assim o processo do devir atrai para si tudo o que passou, impelindo a mesma série para frente de si, implicando que todo o processo do devir traz a si mesmo de volta, retornando como os mesmos. “O eterno retorno da totalidade do devir do mundo precisa ser um retorno do mesmo” (Heidegger 2007, 285-286).
Nietzsche apresenta o pensamento do eterno retorno pela primeira vez em A Gaia Ciência (Nietzsche 2001) no aforismo 341: “O maior dos pesos” (O peso mais pesado). É o pensamento da repetição do mesmo, da vida como é e foi, onde o indivíduo pode amaldiçoar “o demônio” que comunica este dizer, ou então, viver um instante imenso, incorporando este pensamento como “o maior dos pesos”, pensamento que o transforma, pois pesa sobre os seus atos.
Ao pensar este pensamento mais pesado Nietzsche diz no aforismo 342 que “a tragédia começa” (Incipit trageodia) através do declínio de Zaratustra. Heidegger afirma que pelo pensamento do eterno retorno do mesmo o trágico se torna caráter fundamental do ente. Nietzsche se coloca contra a interpretação aristotélica de encontrar o trágico em dois afetos depressivos: o pavor (medo) e a compaixão. Zaratustra é um espírito heróico, pois vai ao encontro de seu mais elevado sofrimento pelo seu declínio, trazendo a mais elevada esperança. Ele é o mestre do “super-homem” (além-do-homem). Como diz Heidegger, Zaratustra é o primeiro pensador do “pensamento dos pensamentos”. Para Heidegger esta é a sua essência: o pensador propriamente dito do pensamento do eterno retorno do mesmo (Heidegger 2007, 218). 
Em Assim falou Zaratustra (Nietzsche 2006) Nietzsche insere o espírito trágico no interior do ente. Zaratustra é o pensador trágico, afirma o “sim” mais elevado ao “não” mais elevado. No capítulo “Da visão e do enigma”, Parte III, um enigma surge diante de Zaratustra a ser decifrado, impelindo um salto. Zaratustra narra aos marujos a sua ascensão por uma senda da montanha.  E, por este caminho surge o anão, “espírito do peso” que precisa ser superado. Mas, mesmo puxando para baixo, o espírito da gravidade, o anão, ameaça do niilismo que paralisa, não suporta o pensamento abissal de Zaratustra. Para Heidegger a profundidade cresce nesta ascensão, “o abismo torna-se pela primeira vez abismo... ele ganha as alturas” (Heidegger 2007, 227). Ao pensar o abismo Zaratustra vence o anão: “Alto lá, anão!”, falei. “Ou eu ou tu! Mas eu sou mais forte dos dois; - tu não conheces o meu pensamento abismal!” (Nietzsche 2006, 193).  Zaratustra se vê diante de um portal. O portal “Instante”, que traz a imagem do tempo que corre para trás e para frente até a eternidade. Heidegger diz que o tempo é percebido a partir do “instante”, do “agora”, e “o todo diz: o pensamento do eterno retorno do mesmo é articulado agora com o âmbito do tempo e da eternidade” (Heidegger 2007, 227). O portal é a visão, e a partir daí começa a marcha da decifração.
Este ponto do “instante”, que inclui a eternidade, é momento mítico em Freud, pela fundação do sujeito no mito da horda primitiva, através de sua inserção no campo da linguagem. O instante e a eternidade, tempo da busca incessante do objeto perdido.

Antígona e a segunda morte
O trágico é a repetição do mesmo. Em Antígona, tragédia de Sófocles, observamos a repetição do tema do desejo incestuoso em sua origem, dado pela diretriz do destino trágico de seu pai Édipo, que se repete na sua relação com o irmão Polinices, que Antígona deseja “enterrar”. Não aceita a exclusão do sujeito do desejo, buscando num campo “entre duas mortes” encontrar o sentido do limite da segunda morte, ao nomear a morte do seu irmão, como também a sua própria morte. Tentativa impossível de encontro do objeto para sempre perdido, incessante busca para simbolizar a perda deste objeto, pelo movimento de presença/ausência. Ao ser condenada a ser enterrada viva, Antígona sofre uma morte antecipada, morte que invade a vida, e vida invadindo a morte. Pontos de vida e de morte sem limites especificados. Zona que se abre na terra, um abismo. Até, atas, termo que “designa o limite que a vida humana não poderia transpor por muito tempo” (Lacan 1991, 318). A aliança incestuosa vincula Antígona a seu pai e a seu irmão, o seu Até, desgraça e loucura. Para além da Até se passa um tempo curto. Antígona não suporta mais viver, “sua vida não vale a pena ser vivida” (Lacan 1991, 318), não aceita se submeter à “lei” de Creonte, lei sem laço com o desejo. É uma heroína na posição de “na-finda-linha”, zona limite entre a vida e a morte. Antígona caminha em direção à segunda morte, morte simbólica. Insiste na simbolização do cadáver de seu irmão.
Podemos saltar de Antígona para a tragédia urbana. As balas perdidas em nossas cidades apontam para uma situação-limite entre duas mortes. Balas partem de armas sem alvos determinados, atingindo a população urbana inesperadamente. Morte arrombando vidas, e vidas trancadas em casa invadidas pela morte. Esta é a zona do abismo em que vivemos atualmente. Estas balas são objetos a, balas sem rumos, objetos errantes, sem alvo.
As crianças abandonadas em nossas ruas são “restos errantes” que vendem “balas”. Crianças, que embora amamentadas durante muitos meses por suas mães, como assinala Françoise Dolto, depois são entregues à mãe natureza, que mantém a sobrevivência delas, através de alimentos encontrados no lixo, mas que perverte o sentido afirmativo “do seio-vida” (Dolto 1998, 79).
A pulsão de morte contorna o objeto para sempre perdido, denunciando, ao mesmo tempo, o seu desaparecimento, a primeira morte, como também tenta estabelecer um horizonte, o da segunda morte. O movimento é constante e insistente, busca de simbolização, transformando a Coisa, lugar de gozo incestuoso, num resíduo, o desejo, resultado da subtração da necessidade em relação à demanda.

Além do gozo
Caminhamos para o além do gozo.
O princípio de Nirvana, o aniquilamento, ameaça atualmente. A ausência do simbólico faz emergir o aquém da pulsão de morte. O homem gozou da Terra. Explorou a Terra, etapa em travessia. Agora, percebe os danos e os ganhos deste gozo. Há um excesso de gozo. Este excesso no devir do gozo caminha para o surgimento de uma outra configuração do devir na existência humana. A voz do eterno retorno do mesmo clama pelo limite. Os movimentos ecologistas clamam pela pulsão de vida da Terra.
Este espaço–tempo além do gozo se apresenta para ser pensado por nós, os psicanalistas. O território se abala. O Real é o impossível, o inapreensível, o indizível, o impensável. Não cessa de não se escrever. Hoje, está se abrindo uma nova fenda no Real, e através do pensamento abissal o corte pode ser efetuado.
O mal-estar contemporâneo, em alguns casos, aparece na clínica através de pacientes que sofrem do gozo do Outro, sujeitos divididos, alvos dos perversos, que reivindicam a posição efetiva de sujeito, onde se possa falar uma fala plena. O setting analítico se torna lugar para o desejo. A fala vazia impera em nossa cultura. O sujeito do enunciado ganha espaço, sendo que o sujeito da enunciação, do desejo, fica exprimido, dando lugar à angústia e produções psicossomáticas. O desamparo não é só familiar, mas da Terra. O inconsciente tem se manifestado na cultura recente por vivências que apontam para o registro do Real, carecendo da dimensão Simbólica. Logo, inconsciente de difícil acesso. Inconsciente, a meu ver, errante, perto de alguma nova fronteira, como extensão de um saber. Como psicanalistas precisamos pescá-lo, buscá-lo em outras terras, seguir trilhas inexploradas, para que no futuro possamos afirmar: “Resistimos” à banalidade da palavra.
A psicanálise tem função de ato, de corte na contemporaneidade, propondo uma teoria e práxis de “resistência” à banalidade da palavra, pretendendo manter o solo fecundo e vivo no planeta Terra, semeando o desejo que se conecta à lei, para que possa florescer, acontecer um feliz encontro do homem com a Terra. 

                       Bibliografia

Dolto, Françoise 1998: Solidão. Trad. I. Benedetti. Martins Fontes, São Paulo.
França, M.I. 1997: Psicanálise, estética e ética do desejo. Perspectiva, São Paulo.
Freud, S. 1974: Totem e Tabu. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Trad. O. Muñiz. Imago, Rio de Janeiro.
Freud, S. 1974: Os instintos e suas vicissitudes. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Trad. Brito, Britto, Oiticica. Imago, Rio de Janeiro.
Globo, O 2007: Três espécies acabam por hora no planeta. Jornal O Globo, Rio de Janeiro.
Héber-Suffrin, Pierre 2003: O “Zaratustra” de Nietzsche. Trad. Lucy Magalhães. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro.
Heidegger, M. 2007: Nietzsche I. Trad. Marco Antonio Casanova.   Forense Universitária, Rio de Janeiro.
Lacan, J. 1991: A ética da Psicanálise. Trad. Antonio Quinet. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro.
Machado, Roberto 1997: Zaratustra, tragédia nietzschiana. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro.
                        Nasio, J.D. 1991: Os olhos de Laura. Trad. P. Ramos. Artes Médicas, Porto Alegre.
Nietzsche, F.W. 2001: A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. Companhia das Letras, São Paulo.
Nietzsche, F.W. 2006: Assim falou Zaratustra. Trad. Mário da Silva.  Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
Rovighi, S.V. 1999: História da Filosofia Moderna. Trad. Bagno, Leite. Edições Loyola, São Paulo.


Liberdade em Psicanálise - estudo de um conceito


           Liberdade em Psicanálise

                                                                                Rosa Jeni Matz

  
O conceito de liberdade é pensado em vários campos do saber humano. Mas, em psicanálise, este tema é de difícil abordagem e muitas vezes evitado. Penso que o inconsciente se abre à liberdade. Escrevo neste ensaio sobre a possível e impossível aproximação do inconsciente à liberdade.
Freud, Lacan e Kant são os três vértices que orientam o percurso nesta caminhada. Freud, o inventor da psicanálise, Lacan que realizou uma leitura original de Freud, fornecendo importantes contribuições à psicanálise em sua obra, e Kant, filósofo, referência fundamental em questões teóricas desenvolvidas tanto por Freud como por Lacan.

Objetivos
Para Kant a vontade é uma espécie de causalidade dos seres racionais, e a liberdade seria a propriedade desta causalidade. Somente um ser racional tem a capacidade de agir conforme a representação das leis, segundo princípios, e só ele tem uma vontade. O homem apresenta a representação da lei em sua mente e é vontade. A causalidade como vontade está em relação com o conceito de lei.
Kant pensou a liberdade em conexão com a lei moral. Pretendo pensar a liberdade em psicanálise tendo como um dos fios condutores o conceito de liberdade de Kant. Percorreremos os seguintes tópicos:
- a relação do conceito de liberdade em Kant com o inconsciente em Freud e Lacan
- o conceito de determinismo do inconsciente freudiano refere-se ao conceito de fenômeno em Kant.
- o inconsciente, além da propriedade do determinismo, apresenta a liberdade segundo o paradigma kantiano da relação da liberdade com a lei moral.

Partiremos da hipótese de que para o inconsciente a liberdade é atributo do desejo em relação à lei.

Freud, o fundador da Psicanálise, aproxima-se de Kant, com a finalidade de pensar sobre o conceito de supereu. A liberdade em Kant é uma propriedade da vontade, implicando na ação por dever à lei, a lei do imperativo categórico. Em Freud, o supereu, como o ideal do eu, constitui modelo de lei. Em Lacan, o ideal do eu surge como uma lei, relacionada ao bem-dizer. Já o supereu, voz feroz, de gozo, impede a manifestação da liberdade do desejo. A lei instituída, pela operação da metáfora paterna, pelo recalque primário, abre o caminho para a liberdade se manter como ação desejante no inconsciente. O supereu, como expressão de gozo, cobre a lei paterna, a da identificação ao ideal do eu, gerando excessos, fazendo sombra sobre a ação da liberdade humana.
Tomando como base à teoria de Kant sobre a liberdade, podemos discutir e desenvolver o conceito de liberdade em psicanálise, através do númeno kantiano, realidade em si mesma, independente da relação com o fenômeno, objeto da experiência, que implica o determinismo do inconsciente.

Introdução
Freud e Lacan
Em 1923, na obra O eu e o isso, Freud apresenta o supereu como a lei herdada pela criança no declínio do complexo de Édiposendo edificado pela interiorização das exigências e interdições parentais. Segundo Freud, o caráter compulsivo do supereu se manifesta pelo imperativo categórico: “você deveria ser assim (como o seu pai)”, “você não pode fazer tudo que ele faz...”[1]. A criança ao renunciar à satisfação de seus desejos edipianos interditados pelo pai, identifica-se com o pai, introjetando esta interdição, que se torna lei.
Em 1924, em O problema econômico do masoquismo, Freud afirma: “O superego – a consciência em ação no ego – pode então se tornar dura, cruel e inexorável contra o ego que está a seu cargo. O Imperativo Categórico de Kant, é, assim, o herdeiro direto do complexo de Édipo”[2]. O supereu é nomeado como imperativo categórico, e o complexo de Édipo mostra ser a fonte do senso ético individual e da moralidade. A lei, o imperativo categórico, tem valor universal, sentença que tem como base o dever, portanto incondicional.
Em O eu e o isso, o ideal do eu é apresentado por Freud como sinônimo do supereu, como a única instância que reúne as funções de interdição e de ideal. Mas, em alguns textos freudianos, a função do ideal de eu é apresentada como uma instância diferenciada ou uma subestrutura do supereu. Em a Psicologia de grupo e a análise do ego[3]1921, o ideal do eu é uma formação que explica a fascinação amorosa, a relação com o hipnotizador, e a submissão ao líder, sendo este colocado pelo sujeito no lugar do seu ideal do eu, tornando-se o modelo de identificação.
Em Lacan, o ideal de eu se destaca, tornando-se um conceito fundamental para a compreensão do complexo de Édipo, que é desenvolvido em três tempos. No primeiro tempo do Édipo, a criança está numa relação de indistinção com a mãe, identificando-se com o que supõe ser o objeto de desejo da mãe. Neste primeiro tempo do Édipo a criança é assujeitada ao desejo da mãe, tornando-se alienada na dialética do ser: “to be or not to be” o objeto do desejo da mãe.
Esta oscilação anuncia o segundo tempo do Édipo, que começa com a inclusão paterna na relação mãe-criança. A criança é introduzida ao registro da castração através da dimensão paterna, e descobre que o desejo da mãe também é submetido à lei do desejo do Outro, remetendo-se à questão de ter ou não o falo. A criança, abalada de sua certeza de ser o falo da mãe, é forçada pela função paterna não somente a não ser o falo, mas também de não tê-lo, assim como a mãe.
O terceiro tempo do Édipo finaliza a rivalidade fálica pai-mãe-criança, instalando o tempo da simbolização da lei. O pai, ao ser investido do atributo fálico, o que tem o falo, insere o desejo da mãe no lugar exato. A criança abandona a problemática do ser, aceitando negociar a problemática do ter. Tanto ela, como a mãe, não tem o falo, logo se dirigem para aquele que o tem, o pai. A dialética do ter convoca o jogo das identificações. O menino, ao renunciar a ser o falo materno, identifica-se com o pai que supostamente tem o falo. A menina renuncia à posição de objeto de desejo materno ao se deparar com a lógica de não ter o falo, identificando-se com a mãe, e ao saber onde está o falo, pode ir buscá-lo do lado do pai, junto àquele que o tem.
Lacan enuncia em As formações do inconsciente:
Em primeiro lugar, a instância paterna se introduz de uma forma velada, ou que ainda não aparece. Isso não impede que o pai exista na realidade mundana, ou seja, no mundo, em virtude de neste reinar a lei do símbolo. Por causa disso, a questão do falo já está colocada em algum lugar da mãe, onde a criança tem de situá-la.
Em segundo lugar, o pai se afirma em sua presença privadora, como aquele que é o suporte da lei, e isso já não é feito de maneira velada, porém de um modo mediado pela mãe, que é quem o instaura como aquele que lhe faz a lei.
Em terceiro lugar, o pai se revela como aquele que tem. É a saída do complexo de Édipo. Essa saída é favorável na medida em que a identificação com o pai é feita nesse terceiro tempo, no qual ele intervém como aquele que tem o falo. Essa identificação chama-se Ideal do eu [4] .

Lacan afirma que “o pai é no Outro, o significante que representa a existência do lugar da cadeia significante como lei”[5]. O terceiro tempo do complexo de Édipo é assim transposto, como etapa da identificação, da instauração do ideal do eu.
A metáfora paterna pode ser ilustrada com o jogo do fort-da freudiano, onde ao jogar o carretel amarrado num cordão, a criança simboliza a presença e ausência da mãe, tendo acesso ao simbólico. A criança se torna mestre da ausência devido à identificação, conseguindo aceitar o fato de que não é mais o exclusivo objeto de desejo da mãe, o objeto que preenche a falta do Outro, o falo. O recalque originário é estruturante, sendo uma metaforização. É a simbolização primordial da lei, efetuada na substituição do significante fálico pelo significante Nome-do-Pai. A criança substitui a posição de ser o único objeto do desejo da mãe, o falo, para a dimensão do ter. É a passagem para a posição de sujeito. O advento do sujeito implica numa operação inaugural de linguagem, simbólica, onde a criança renuncia ao objeto fálico; sendo que o significante fálico, significante do desejo da mãe, é recalcado. Como Lacan afirma “não há sujeito se não houver um significante que o funde”[6]. O sujeito é efeito do significante.

O recalque originário é a intervenção intrapsíquica que assegura a simbolização do real pela linguagem. O processo metafórico é a introdução de um novo significante, o Nome-do-Pai, que substitui o significante antigo, significante do desejo da mãe, que passa sob a barra de significação, mantendo-se inconsciente. O Nome-do-Pai designa uma função simbólica que ele representa, de exercício de lei.  A função do Nome-do-Pai se refere à proibição do incesto. O significante do desejo da mãe é recalcado e se torna inconsciente. A proibição do incesto se torna lei universal, imperativo da cultura.

O processo de identificação do sujeito instaura um novo significante, o Nome-do-Pai, significante que posiciona o ideal do eu do sujeito, fundamentando a lei, instalando, através do processo do recalque, o inconsciente do sujeito, que se torna lugar do desejo inconsciente.

 Freud e o determinismo

Freud libertou as histéricas de seus sintomas, e através da descoberta da sexualidade infantil, libertou o mundo de mistérios e preconceitos concernentes à sexualidade humana.
Pensar a liberdade é se aproximar da liberdade como “objeto” incorpóreo de pensamento. Ao se inserir uma crase a frase se transforma, tornando-se “pensar à liberdade”, o pensar nos conduzindo à liberdade. Lacan situa o “penso”, num momento de seu ensino, a partir da afirmação de Descartes no Cogito, “penso, logo sou”, como o lugar da cadeia significante, sendo o sujeito efeito do significante, sujeito do inconsciente, que ao surgir gera espanto para a consciência, ocasião de liberdade. No mesmo tecido, no intervalo da cadeia significante, situa-se o desejo, potência libertadora, que desliza através da cadeia significante, respondendo às leis da linguagem.
                       O determinismo inconsciente discutido por Freud, tornou-se uma barreira para pensar a liberdade no inconsciente. Não pretendo destituir a validade universal do determinismo inconsciente, mas pretendo mostrar que paralelamente ao determinismo inconsciente, em outra dimensão, há a liberdade inconsciente, sendo que em muitos momentos na história da psicanálise, a liberdade não foi tema de interesse em sua teoria devido a preconceitos. O conceito de liberdade, afastado da psicanálise, é um pré-conceito de alguns psicanalistas.
                       Em filosofia o determinismo, como princípio universal, afirma que os fenômenos da natureza são regidos por leis, sendo condição da possibilidade da ciência. Os fenômenos naturais ligam-se uns aos outros por relações invariáveis ou leis. Laplace afirma que o conhecimento do estado do universo num momento dado e o conhecimento das leis da mecânica possibilitam prever rigorosamente os estados futuros, pois não há independência das séries causais: "Devemos considerar o estado presente do universo como o efeito do seu estado anterior e como a causa daquilo que vai seguir-se”[7].
                        Freud valida a psicanálise como teoria científica, utilizando o conceito de determinismo, que é condição de possibilidade de ciência, e assim a torna aceitável na Europa em que vivia, onde o primado do modelo científico, inaugurado por Galileu e Descartes, imperava. No último capítulo da Psicopatologia da vida cotidiana[8], em 1901, faz referência a um determinismo inconsciente que rege de modo absoluto a vida consciente:
Certas falhas em nosso funcionamento psíquico e certos desempenhos aparentemente involuntários, provam, se a eles são aplicados os métodos da investigação psicanalítica, que têm motivos válidos e que são determinados por motivos desconhecidos para a consciência[9].

 Analisando números e nomes, escolhidos de maneira aparentemente arbitrária, que surgem no pensamento consciente, Freud assinala:

Nada na mente é arbitrário ou indeterminado...Muitas pessoas, como sabemos, contestam a suposição de um determinismo psíquico completo, recorrendo a um sentimento especial de convicção de que existe um livre arbítrio. Esse sentimento de convicção existe; e não cede nem diante da crença no determinismo. Como todo sentimento normal, deve ter algo que o justifique. Pelo que posso observar, porém, ele não se manifesta nas grandes e importantes decisões da vontade: nessas ocasiões temos antes um sentimento de compulsão psíquica, e gostamos de poder recorrer a ele. (“Estou aqui, não tenho outra escolha”) [afirmação de Lutero na Dieta De Worms] Por outro lado, é exatamente tendo em vista as decisões indiferentes e pouco importantes que gostaríamos de assegurar que também podíamos ter agido de outra maneira: que agimos com nosso livre – não motivado – arbítrio. De acordo com as nossas análises, não é necessário contestar o direito do sentimento de convicção de que existe um livre arbítrio. Se levarmos em conta a distinção entre motivação consciente e inconsciente, nosso sentimento de convicção nos informa que a motivação consciente não abrange todas nossas decisões motoras. De minimus non curat lex. Mas aquilo que um lado liberta recebe sua motivação do outro lado, do inconsciente; e dessa maneira a determinação na esfera psíquica, ainda assim, realiza-se sem qualquer lacuna[10] (itálicos meus).

             Freud não contesta o sentimento de convicção da existência do livre arbítrio na consciência, mas afirma que o lado que liberta recebe sua motivação do inconsciente. Freud destaca o lado que liberta, embora se refira a uma motivação, a uma causa inconsciente, ao determinismo inconsciente. Também se refere à compulsão psíquica, ao gozo inconsciente.
             Prosseguindo, para o supersticioso, que desconhece o motivo de seus atos casuais e as parapraxias, tendo a crença em acontecimentos acidentais psíquicos, Freud enuncia que o acaso existiria no mundo material, e não no mundo psíquico: “Acredito no acaso (real) externo, sem dúvida, mas não em eventos acidentais (psíquicos) internos”[11]. Afirma que a pessoa supersticiosa projeta para fora uma motivação que ele buscaria dentro: “Já que a pessoa supersticiosa nada sabe da motivação de seus próprios atos casuais, e já que o fato dessa motivação esforça-se por um lugar no campo do reconhecimento da pessoa, esta se vê forçada a localizá-lo, por deslocamento, no mundo externo”[12].
             Freud utiliza o termo fenômeno na conclusão deste texto: “os fenômenos podem ser reportados a um material psíquico incompletamente suprimido, o qual, apesar de repelido pela consciência, ainda assim não teve roubado toda a sua capacidade de se exprimir”[13].
              Octave Mannoni realiza uma interessante crítica à teoria do determinismo de Freud, em sua obra Freud: uma biografia ilustrada[14], afirmando que a teoria do determinismo de Freud “não é muito elaborada”, sendo que para Freud “é suficiente que se possa mostrar que os atos que atribuímos ao acaso ou ao livre-arbítrio obedecem de fato a mecanismos inconscientes”; e que Freud “se esquiva das dificuldades metapsíquicas, que não o interessam”, sendo que “acreditar no determinismo é acreditar, no fundo, que tudo tem direito a uma interpretação[15] (itálicos meus).
              Esta crítica de Mannoni sobre a onipotência da interpretação aponta para o campo do real lacaniano, o impossível, separado da linguagem, campo de uma causalidade, que em alguns aspectos se aproxima do númeno, da coisa em si de Kant, diferente da causalidade do fenômeno, da ciência. O inconsciente começa a se abrir à liberdade.

               Kant, o determinismo e a coisa em si.
                Na filosofia de Kant o determinismo abandona a metafísica, fazendo parte da legislação que a razão impõe as coisas para conhecê-las. Kant não opõe determinismo e liberdade, pois afirma que o determinismo pertence à ordem dos fenômenos, enquanto a liberdade pertence à ordem do númeno, a coisa em si. O fenômeno designa o objeto de nossa experiência, sendo definido como “um composto daquilo que recebemos das impressões e daquilo que nossa própria faculdade de conhecer tira de si mesma”[16]. A matéria do fenômeno é a sensação, sendo que a forma é o modo como ela é ordenada pela nossa razão. O fenômeno não é ilusório, sendo fundamento do conhecimento, e o objeto sensível é objeto da experiência. Para Kant, a diferença entre fenômeno e o númeno permite resolver a antinomia de determinismo e liberdade. O homem, como fenômeno, é determinado no tempo pelas leis da causalidade, e como númeno, o homem permanece livre, não se determinando por essas mesmas leis.
Númeno vem do grego, tendo o significado do que é apreendido pelo pensamento, e na filosofia de Kant, designa a realidade considerada em si mesma, coisa em si, independente da relação de conhecimento, podendo ser apenas pensada e não conhecida. Embora possa ser pensado, é um objeto incognoscível. Pode ser considerado como “causa” externa da possibilidade do conhecimento.

Crítica da Razão Pura
                        Em a Crítica da Razão Pura[17], a primeira edição publicada em 1781, Kant afirma que não podemos conhecer nenhum objeto como coisa em si mesma, mas somente como fenômeno; logo restringindo todo o possível conhecimento aos objetos da experiência. Todavia ressalva que, se não podemos conhecer esses mesmos objetos como coisas em si mesmas, podemos pelo menos pensá-los. Para conhecer um objeto é necessário provar a sua possibilidade, pelo testemunho da experiência a partir da sua realidade, e anteriormente, a priori pelo entendimento, que fornece as possibilidades do sujeito para o conhecimento.
A crítica, para Kant, ensina a tomar o objeto numa dupla significação, como fenômeno ou como coisa em si mesma. O princípio de causalidade incide sobre o objeto tomado no primeiro sentido, como fenômeno, onde a vontade pode ser pensada conforme a lei natural, sendo não-livre. Mas, também, o objeto pode ser pensado enquanto pertencente à coisa em si mesma, não submetido à lei natural, logo livre, não ocorrendo contradição. Kant diz que não podemos conhecer a alma mediante a razão especulativa, e muito menos empiricamente, e nem a liberdade, mas se pode pensar a alma e a liberdade.
                       Ao estudar a sucessão temporal (tempo e espaço para Kant são formas da intuição sensível, condições da existência das coisas como fenômenos), Kant afirma que “todas as mudanças acontecem segundo o princípio da ligação de causa e efeito”[18], mas enuncia na Antinomia da Razão Pura, a tese de que  “a causalidade segundo as leis da natureza não é a única de onde podem ser derivados os fenômenos do mundo no seu conjunto. Há ainda uma causalidade pela liberdade que é necessário admitir para os explicar”[19]. Afirma que “a lei da natureza consiste precisamente em nada acontecer sem uma causa suficiente determinada a priori[20], mas se buscarmos as causas de estados antecedentes, seremos conduzidos a uma cadeia infinita de “causas”, não havendo um primeiro início, nenhuma completude da série das causas precedentes. É preciso admitir uma espontaneidade absoluta[21] das causas, uma liberdade transcendental. Assim, Kant afirma que a idéia transcendental de liberdade constitui “o conceito da absoluta espontaneidade da ação, como fundamento autêntico da imputabilidade dessa ação”[22], tendo que ser admitida uma faculdade de iniciar espontaneamente uma série de coisas sucessivas ou de estados.
Kant assinala que podemos conceber dois tipos de causalidade em relação ao que acontece: segundo a natureza ou pela liberdade. A primeira se refere à conexão de um estado com o precedente no mundo sensível segundo uma regra. Abarcaria os fenômenos. Enquanto a liberdade seria a faculdade de iniciar por si mesma um estado, uma idéia transcendental pura, não contendo nada da experiência, cujo objeto, também, não é dado pela experiência. A razão cria uma idéia de espontaneidade, que inicia por si mesma uma ação, sem que seja necessária uma causa temporal que a anteceda.
O conceito prático de liberdade se funda sobre a idéia transcendental da mesma, como a independência do arbítrio em relação à coerção de impulsos da sensibilidade. Um arbítrio é sensível ao ser afetado patologicamente por motivações da sensibilidade, mas o homem tem uma faculdade de determinar-se por si mesmo independente de coação de impulsos sensíveis.
Kant denomina inteligível o que no objeto dos sentidos não é fenômeno, sendo possível, neste objeto do mundo sensível, ter uma faculdade que não é objeto de intuição sensível, podendo então, considerar a causalidade deste ser por duas perspectivas: “como inteligível quanto à sua ação, considerada a de uma coisa em si, e como sensível pelos seus efeitos, enquanto fenômeno no mundo sensível”[23]. Forma-se um conceito empírico e um conceito intelectual em relação à causalidade de um sujeito, ocorrendo juntos num e mesmo efeito. Qualquer causa eficiente tem um caráter, uma lei da sua causalidade. Assim, no sujeito do mundo dos sentidos temos um caráter empírico, onde suas ações como fenômenos se interconectam com outros fenômenos, segundo leis constantes da natureza; e também um caráter inteligível, que embora seja causa de suas ações como fenômenos, não se subordina ele mesmo a quaisquer condições de sensibilidade, não sendo fenômeno, mas uma coisa em si mesma.
Este sujeito agente, segundo o caráter inteligível, não está sob condições temporais, pois o tempo é condição dos fenômenos, mas não das coisas em si mesmas. Enquanto fenômeno, o sujeito estaria submetido às leis da determinação de ligação causal, mas enquanto númeno, não ocorreria mudança no tempo, nenhuma conexão com os fenômenos enquanto causa, sendo livre e independente de toda necessidade natural. Assim, Kant afirma que a liberdade e a natureza, cada qual em seu significado pleno, se encontrariam, ao mesmo tempo e sem conflito, nas mesmas ações, conforme referência à sua causa sensível ou inteligível.
                        Para Kant, o fim último ao qual visa a especulação da razão em seu uso transcendental concerne a três objetos: a liberdade da vontade, a imortalidade da alma, e a existência de Deus, havendo neste fim, um trabalho fatigante para o interesse especulativo da razão, que encontra obstáculos, por não se situar no mundo empírico dos fenômenos. Como diz Kant: “O proveito maior e talvez único de toda a filosofia da razão pura é, por isso, certamente apenas negativo; é que não serve de organon para alargar os conhecimentos, mas de disciplina para lhe determinar os limites e, em vez de descobrir a verdade, tem apenas o mérito silencioso de impedir os erros”[24].
Segundo Kant, “prático é tudo aquilo que é possível pela liberdade”[25]. As leis práticas puras são determinadas a priori pela razão, que nos comandam de modo absoluto, independentemente de condições empíricas; são as leis morais, pertencentes ao uso prático da razão pura, que admitem um cânone. Na filosofia pura, a razão se dirige para os três problemas enunciados, que têm um fim mais remoto: “o que se deve fazer se a vontade é livre, se há um Deus e uma vida futura”[26].
                       O arbítrio é animal, quando é determinado por impulsos sensíveis, patologicamente. O arbítrio determinado independente de impulsos sensíveis, motivado só pela razão, é chamado de livre arbítrio, e tudo que se conecta com ele é denominado prático. Há um poder de dominar impressões que incidem sobre a faculdade sensível de desejar, havendo reflexões pela razão sobre o que é bom, útil ou prejudicial destas representações, fornecendo leis objetivas da liberdade, imperativos, que exprimem “o que deve acontecer, embora nunca aconteça, e distinguem-se assim das leis naturais, que apenas tratam do que acontece, pelo que são também chamadas leis práticas”[27].
Kant supõe a existência das leis morais puras que determinam a priori o uso da liberdade, sendo absolutas e necessárias.

 Winnicott: o brincar e a realidade
                        Winnicott em sua obra O brincar e a realidade afirma que “é no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto fruem sua liberdade de criação”[28]. Prossegue:
O impulso criativo...é algo que pode ser considerado como uma coisa em si, algo naturalmente necessário a um artista na produção de uma obra de arte, mas também algo que se faz presente quando qualquer pessoa – bebê, criança, adolescente, adulto ou velho – se inclina de maneira saudável para algo ou realiza deliberadamente alguma coisa, desde uma sujeira com fezes ou o prolongar do ato de chorar como fruição de um som musical. Está presente tanto no viver momento a momento de uma criança retardada que frui o respirar, como na inspiração de um arquiteto ao descobrir subitamente o que deseja construir, e pensa em termos do material a ser utilizado, de modo que o seu impulso criativo possa tomar forma e o mundo seja testemunha dele.[29]

                        Podemos aproximar este texto de Winnicott do conceito de espontaneidade desenvolvido por Kant na Crítica da Razão Pura. Winnicott considera o impulso criativo como uma coisa em si, como uma causalidade “natural” livre, que gera uma ação eficiente. Ao se referir à inspiração do arquiteto e a criação da obra de arte se aproxima das causas desenvolvidas por Aristóteles sobre a existência de algo: a causa material é a matéria de que alguma coisa é feita; a causa formal é a coisa em si, aquilo que o ser é; a causa eficiente é o que constitui a coisa; e a causa final é o fim a que se destina a coisa. O impulso criativo é a essência da criação.

O inconsciente

Ao justificar o conceito de inconsciente Freud cita Kant :
Assim como Kant nos advertiu para não desprezarmos o fato de que as nossas percepções estão subjetivamente condicionadas, não devendo ser consideradas como idênticas ao que, embora incognoscível, é percebido, assim também a psicanálise nos adverte para não estabelecermos uma equivalência entre as percepções adquiridas por meio da consciência e os processos mentais inconscientes que constituem seu objeto. Assim como o físico, o psíquico, na realidade, não é necessariamente o que nos parece ser.[30]

Observamos neste enunciado de Freud uma referência ao fenômeno, ao parecer, e ao incognoscível, a coisa em si. Freud apresenta características do sistema inconsciente que não se encontram no sistema consciente. São elas: não há lugar para a negação, dúvida, ou graus de certeza, havendo isenção de contradição mútua. O processo inconsciente é primário, sendo atemporal, “não são ordenados temporalmente, não se alteram com a passagem do tempo; não tem absolutamente qualquer referência ao tempo”[31]. A referência ao tempo é característica do sistema consciente.
Para Kant o sujeito agente, de acordo com o caráter inteligível, não se submete às condições temporais, sendo o tempo condição dos fenômenos e não da coisa em si. Enquanto fenômeno, o sujeito se submete às leis da determinação causal, mas enquanto númeno, não ocorre mudança temporal. Assim, o inconsciente se aproxima das características apresentadas por Kant da coisa em si. O sujeito como númeno é atemporal.

Fundamentação da Metafísica dos Costumes
                        Em 1785, Kant publica a Fundamentação da Metafísica dos Costumes[32] , onde desenvolve os conceitos de vontade, liberdade, autonomia e moralidade. Ao se referir à vontade afirma: “Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade.[33]. Para derivar as ações das leis é necessária a razão, logo a vontade é razão prática. O imperativo categórico se refere à forma e ao princípio da ação, mas não à sua matéria. A proposição do imperativo categórico é: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”[34].
                        Kant diz que “a vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto racionais, e liberdade seria a propriedade desta causalidade, pela qual ela pode ser eficiente independentemente de causas estranhas que a determinem, assim como a necessidade natural é a propriedade da causalidade de todos os seres irracionais de serem determinados à atividade pela influência de causas estranhas”[35].
O conceito de causalidade traz consigo o conceito de lei, segundo o qual, através de uma coisa, a que chamamos causa, é colocada outra coisa que se chama efeito, assim a liberdade, apesar de não ser uma propriedade da vontade segundo leis naturais não é desprovida de lei, mas é uma causalidade segundo leis imutáveis. Kant prossegue:

 A necessidade natural era uma heteronomia das causas eficientes; pois todo o efeito era só possível segundo a lei de que alguma outra coisa determinasse à causalidade a causa eficiente; que outra coisa pode ser, pois, a liberdade da vontade senão autonomia, i.é, a propriedade da vontade de ser lei para si mesma? Mas a proposição: «A vontade é, em todas as ações, uma lei para si mesma» caracteriza apenas o princípio de não agir segundo nenhuma outra máxima que não seja aquela que possa ter-se a si mesma por objeto como lei universal. Isto, porém, é precisamente a fórmula do imperativo categórico e o princípio da moralidade; assim, pois, vontade livre e vontade submetida a leis morais são uma e a mesma coisa[36].

                        A razão é autora de seus princípios, independente de influências estranhas. Como razão prática ou como vontade de um ser racional é livre. A vontade não é determinada por causas estranhas, obedece a uma lei, a lei moral, que a vontade impõe a si mesma, sendo que vontade livre e vontade sujeita à lei moral são expressões de idêntica significação. O determinismo dominante no mundo fenomênico não tem lugar no mundo moral, domínio da liberdade e do dever à lei.
                       Kant afirma que a razão demonstra, através das idéias, uma espontaneidade pura, e que a liberdade é a independência de causas determinantes do mundo sensível. A idéia de liberdade, o seu pensamento, é inseparável do conceito de autonomia e da moralidade:“...quando nos pensamos livres, nos transpomos para o mundo inteligível como seus membros e reconhecemos a autonomia da vontade juntamente com a sua conseqüência – a moralidade; mas quando nos pensamos como obrigados, consideramo-nos como pertencentes ao mundo sensível e contudo ao mesmo tempo também ao mundo inteligível"[37]. A autonomia é a propriedade da vontade que somente se determina pela sua própria lei, que se conforma ao dever sentenciado pela razão prática, sendo o seu princípio: “não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente, no querer mesmo, como lei universal”[38].

Crítica da Razão Prática

                        Em 1788, Kant publica a Crítica da Razão Prática[39], onde o conceito de liberdade, demonstrado por uma lei apodítica da razão prática, é situado como “pedra angular” do edifício da razão pura, mesmo da razão especulativa, conectando-se aos conceitos de Deus e da imortalidade da alma, que adquirem consistência e realidade objetiva. Mas, a liberdade é a única, entre as idéias da razão especulativa, da qual se sabe a possibilidade a priori, pois ela é a condição da lei moral, sendo que as idéias de Deus e de imortalidade, são apenas condições do objeto necessário de uma vontade determinada por esta lei. Estas idéias são as condições da aplicação da vontade moralmente determinada ao objeto, dado a priori, o soberano Bem. A razão prática, por si mesma, e sem se associar com a especulativa, confere realidade a um objeto supra-sensível da categoria da causalidade, à liberdade (conceito prático e de uso prático), não o considerando uma ficção, sendo seu conceito vazio de conteúdo. Kant cita em uma nota de rodapé:
A reunião da causalidade, como liberdade, com a causalidade enquanto mecanismo da natureza, estabelecendo-se a primeira pela lei moral e a segunda mediante a lei natural, num só e mesmo sujeito, o homem, é impossível, sem se representar este, na relação à primeira como ser em si mesmo, mas relativamente à segunda como fenômeno, aquele na consciência pura, este na consciência empírica. Sem isso é inevitável a contradição da razão consigo mesma.[40]

                       Em seu uso prático, a razão ocupa-se da vontade, dos princípios de sua determinação, da sua causalidade, da sua lei a partir da liberdade. A forma da lei, a forma legisladora universal, só pode ser representada pela razão, sendo princípio determinante da vontade, completamente independente da lei natural dos fenômenos, esta independência denomina-se liberdade, em seu sentido transcendental, logo “uma vontade, à qual só a pura forma legisladora da máxima pode servir de lei, é uma vontade livre”[41]. Ao supor que uma vontade é livre, somente a forma legisladora universal constitui o fundamento de determinação da vontade. “A liberdade e a lei prática incondicionada referem-se, pois, uma à outra”[42].
                      Kant questiona onde começa o conhecimento do incondicionalmente prático: se é na liberdade ou na lei prática. Afirma que na liberdade não pode começar, “pois não podemos nem dela tornar diretamente conscientes, porque o seu conceito primeiro é negativo, nem inferi-la da experiência, visto que a experiência unicamente nos dá a conhecer a lei dos fenômenos, por conseguinte, o mecanismo da natureza, que constitui precisamente o contrário da liberdade. Portanto, é da lei moral que nos tornamos imediatamente conscientes...”[43]. Assim, a “moralidade é a primeira a revelar-nos o conceito de liberdade”[44]
                       Kant enuncia a lei fundamental da razão pura prática: “Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma lei universal”.[45]
                       A regra prática é incondicionada, apresentada a priori como proposição categoricamente prática, pela qual a vontade é determinada pela forma da lei, independente de condições empíricas. Kant afirma que a consciência desta lei pode se chamar um fato da razão, não podendo deduzi-la de dados anteriores da razão, como exemplo da consciência da liberdade, pois não nos é dada previamente, impondo-se por si mesma como um fato único da razão pura. A lei moral nos homens é um imperativo categórico, a lei é incondicionada, designando uma ação chamada dever. O conceito de dever implica, objetivamente, na ação em conformidade com a lei, mas subjetivamente, exige o respeito pela lei, enquanto o único modo da determinação da vontade pela lei, baseando-se aí a diferença entre a consciência de ter agido em conformidade com o dever e por dever, logo, a partir do respeito à lei.
A lei moral é o princípio determinante da vontade, sendo o soberano Bem o fim supremo necessário de uma vontade moralmente determinada, e o verdadeiro objeto da razão prática.

 Lacan e a ética da psicanálise

                        Lacan em A ética da psicanálise[46] desenvolve o conceito de Coisa, das Ding, o primeiro exterior como estranho, de onde se orienta todo o encaminhamento do sujeito. Este objeto das Ding, enquanto Outro absoluto do sujeito, é o objeto para sempre perdido que se tenta reencontrar. Neste seminário cita Kant, que segundo Lacan, “mais do que qualquer outro, entreviu a função de das Ding...”. Acrescentando:
No final das contas é concebível que seja como trama significante pura, como máxima universal, como a coisa mais despojada de relações com o indivíduo que os termos de das Ding devam apresentar-se. É aí que devemos ver, com Kant, o ponto de mira, de visada, de convergência segundo o qual uma ação, que qualificaremos de moral, apresentar-se-á, e veremos o quão paradoxalmente ela se apresenta, ela mesma, como sendo a regra de um certo Gute.[47]

                        Lacan situa das Ding, como o correlato da lei da fala em sua mais primitiva origem, estando lá no início, sendo a primeira Coisa que se separou de tudo que o sujeito pode nomear e articular. Cita Freud ao se referir ao fundamento moral que forneceu a lei fundamental, a lei da interdição do incesto, lei primordial, onde se inicia a cultura em oposição à natureza (Lévi-Strauss). A grande descoberta de Freud seria o correlato dessa interdição, o desejo essencial, o desejo do incesto.
                        Neste seminário, Lacan se refere à obra kantiana A Crítica da razão prática, afirmando que a ética kantiana surge devido à mudança que a física newtoniana ocasionou no pensamento, levando a uma revisão radical da razão pura, propondo Kant, uma moral que se destaca de qualquer objeto, da afeição, de um objeto patológico, isto é, um objeto de uma paixão. Cita o imperativo categórico, a ação é moral quando comandada pelo motivo articulado pela máxima: “Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa sempre valer como princípio de uma legislação que seja para todos[48].
                        Para Lacan, Kant purifica o conceito de moral, embora ideal, de todos os “interesses humanos, sensíveis e vitais”[49]. A ética tradicional se relacionaria com o serviço dos bens. A ética de Aristóteles se refere à moral dos mestres, às suas virtudes. Lacan pontua que “a moral do poder, do serviço dos bens, é – Quanto aos desejos, vocês podem ficar esperando sentados[50]; enquanto que Kant transporta a ética para outro lugar, desinteressado: “para que se trate do campo que pode ser valorizado como puramente ético, é preciso que não estejamos, de modo algum, interessados em nada”[51]. A moral tradicional se apoiava “no que se devia fazer na medida do possível[52], e Kant ao afirmar o imperativo moral não se refere ao que se pode ou não se pode, mas sim, ao “Tu deves incondicional”[53]. E, prossegue: “Este campo adquire, precisamente, sua importância pelo vazio em que o deixa, ao se aplicar rigorosamente a definição kantiana”[54].
Lacan afirma “que nada mais é do que o impossível, onde reconhecemos a topologia de nosso desejo”[55]. Para Lacan não há desejo sem lei, a lei universal da proibição do incesto e o seu correlato, o desejo essencial. Onde propõe: “a única coisa da qual se possa ser culpado, pelo menos na perspectiva psicanalítica, é de ter cedido do seu desejo”[56].
                        Em Kant com Sade[57] assinala: “É a liberdade de desejar que constitui um fator novo, não por inspirar uma revolução – é sempre por um desejo que se luta e se morre -, mas pelo fato de essa revolução querer que sua luta seja em prol da liberdade do desejo”[58].

O Desejo Puro

Baas, em seu livro O desejo puro[59], comenta a expressão “desejo puro” apresentada por Lacan no final de Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise[60], expressão intrigante e paradoxal, visando uma fundamentação teórica em fontes filosóficas, principalmente em Kant.
O texto conduz Lacan a Kant, devido à construção da faculdade de desejar por Baas, que se baseia no modelo da filosofia transcendental kantiana, onde o conhecimento se ocupa dos conceitos a priori dos objetos, portanto a faculdade de desejar apresentaria um desejo puro, a priori, anterior e independente de qualquer experiência. Para Kant o objeto é constituído pela atividade unificadora do entendimento. As leis da natureza, dos objetos, são conhecidas a priori, e não pela generalização da experiência.
O autor enfrenta a questão da possibilidade teórica de um desejo puro, partindo de Platão, do conceito de prazer, chegando a Kant e a sua filosofia transcendental. O desejo puro é apresentado por Lacan no Seminário 11, e em Kant com Sade há uma discussão do desejo e do gozo na obra sadiana, onde Lacan aproxima o imperativo categórico de Kant, lei formal, ao “imperativo de gozo” de Sade.
Baas constrói a faculdade de desejar, examinando o conceito de Coisa (das Ding), e mostrando a diferença entre a falta de objeto e o objeto sensível, o epithumène platônico, abrindo a possibilidade de pensar o desejo puro.
Inicia o texto através de Platão e a sua expressão “prazer puro” apresentada no diálogo Filebo. Platão distingue os estados de prazer, de dor e o neutro. O estado neutro se refere à “harmonia”, enquanto a dor seria a dissolução da harmonia, e o prazer o movimento que busca recuperar a harmonia. O estado neutro, da harmonia, seria o da vida divina. O sábio, o filósofo, de vida absolutamente boa, não poderia ficar estranho ao prazer, conhecendo os prazeres puros, que não são precedidos de dor, mas precedidos de desejo. “Porque a alma do filósofo deseja o bem, o saber e a verdade” [61]. O desejo puro seria anterior ao prazer. Baas localiza neste enunciado o desejo puro, movimento da alma desacompanhada da dor, falta presente nos outros desejos, os desejos impuros; embora assinale que Platão não enuncia literalmente a expressão “desejo puro”. O prazer que buscaria o conhecimento, independente de qualquer dor, seria o prazer puro, quinhão de poucos homens. Ao prazer puro corresponderia o desejo puro, que Platão denominaria de “desejo verdadeiro”.
No Filebo, Sócrates traz a seguinte questão para Protarco: “Que diremos que está mais próximo da verdade: o puro e sem mistura, ou o violento, múltiplo, grande e suficiente?”[62]. Baas cita o exemplo fornecido por Sócrates do gênero da brancura, onde questiona “como é” e “em que” consiste a pureza da brancura, respondendo que o branco mais verdadeiro e o mais belo de todos é o isento de qualquer mistura, embora não sendo o maior e o mais numeroso. Portanto, “todo prazer estreme de dor, por menor e mais raro que seja, é mais agradável, belo e verdadeiro do que os freqüentes e grandes”[63]. Baas comenta que Platão não responde a questão sobre o que seria o desejo puro da pura brancura, subsistindo esta dificuldade, porque Platão tentou pensar o puro na ordem empírica, logo: “Platão não é Kant”[64].
Baas assinala que para Kant o puro (razão pura) e o empírico são organizações heterogêneas. Assim, falar de ”desejo puro” em Kant seria uma impossibilidade. O desejo é um movimento em direção aos objetos empíricos, proveniente da inclinação ou do amor de si, não podendo ser puro. Para Kant a pureza é do âmbito da razão. A filosofia transcendental kantiana trata das condições de possibilidade a priori da razão na ordem do conhecimento e da ação.
Apesar das dificuldades, Baas afirma, que falar de “desejo puro”, embora sabendo que é estar “contra Kant”, também poderia estar “com Kant”, levando-o, assim, a estabelecer um ponto de vista transcendental do sujeito do desejo. Kant distingue a faculdade de conhecer do objeto conhecido, assim “trata-se de distinguir, no desejo, entre o objeto do desejo e a faculdade de desejo”[65]. A faculdade de desejar será a priori, o desejo será ocasionado pelo objeto, objeto sensível, mas não causado por ele. Baas introduz a palavra epithumène, utilizada por Platão como a “relação a um objeto desejado”[66], fazendo analogia ao que é o fenômeno para o conhecimento. A faculdade de desejar, como desejo puro, seria anterior ao objeto do desejo, antes do epithumène.
Baas conjuga o que Kant separou: “o a priori e o desejo”, realizando uma teoria transcendental do desejo ao cruzar a psicanálise e a filosofia transcendental. Afirma que Freud quase fez este cruzamento, citando O Eu e o Isso, onde Freud se refere ao imperativo categórico kantiano como herdeiro do complexo de Édipo, o supereu.
Assinala que esta questão é a visada de Lacan no Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, ao empregar “o desejo em estado puro”, equivalendo-o à lei formal de Kant. Após citar Spinoza, enfatizando o desejo como essência do homem, Lacan se aproxima de Kant nesta citação:

A experiência nos mostra que Kant é mais verdadeiro, e eu provei que a sua teoria da consciência, como ele escreve da razão prática, só se sustenta ao dar uma especificação da lei moral que, examinada de perto, não é outra coisa senão o desejo em estado puro, aquele mesmo que termina no sacrifício, propriamente falando, de tudo que é objeto do amor em sua ternura humana – digo mesmo, não somente na rejeição do objeto patológico, mas também em seu sacrifício e em seu assassínio[67] (itálicos meus).

Com o intuito de examinar a questão enunciada por Lacan, da relação entre o “desejo puro” e a lei formal kantiana, Baas se dirige para a filosofia moral de Kant. Cita a nota de Kant na Crítica da Razão Prática, onde define a faculdade de desejar (Begehrungsvermögen):

Viver é o poder de um ser agir segundo as leis da faculdade de desejar. A faculdade de desejar é o poder que ela tem de ser, pelas suas representações, causa da realidade (Wirklichkeit) dos objetos (Gegenstände) dessas representações[68].

No mesmo texto Kant define o sentimento do prazer:
 
O prazer é a representação da concordância do objeto ou da ação com as condições subjetivas da vida, isto é, com o poder da causalidade de uma representação em relação à realidade do seu objeto (Objekt)[69].

Em a Fundamentação da metafísica dos costumes, Kant se refere ao “amor patológico”:

Pois que o amor enquanto inclinação não pode ser ordenado, mas o bem-fazer por dever, mesmo que a isso não sejamos levados por nenhuma inclinação e até se oponha a ele uma aversão natural e invencível, é amor prático e não patológico, que reside na vontade e não na tendência da sensibilidade, em princípios de ação e não em compaixão lânguida. É só esse amor que pode ser ordenado[70].

Enuncia, também, neste texto a seguinte proposição:
Uma ação praticada por dever tem o seu valor moral, não no propósito que com ela se quer atingir, mas na máxima que a determina; não depende portanto da realidade do objeto da ação, mas somente do princípio do querer segundo o qual a ação, abstraindo de todos os objetos da faculdade de desejar, foi praticada[71].
Observamos nestes textos a purificação realizada por Kant da ação moral, que não tem qualquer relação com objeto sensível, denominado de patológico.
Para Kant a “boa vontade” é boa somente pelo querer em si mesmo, e não como meio de uma intenção. A ação é moral quando executada por dever. A razão, como faculdade prática, exerce influência sobre a vontade, tendo como destino produzir uma vontade boa em si mesma. Esta vontade terá de ser o bem supremo “e condição de tudo o mais, mesmo de toda a aspiração de felicidade”[72]. Somente a representação da lei em si mesma, que só no ser racional se realiza, determina a vontade, lei universal das ações que serve como princípio à vontade: “devo proceder sempre de maneira que eu possa querer que também a minha máxima se torne uma lei universal”[73]. O imperativo categórico é o imperativo da “boa vontade”.
A ação moral é independente do desejo que advém do patológico. Como Baas afirma a análise de Kant se fundamenta numa identificação do sujeito com a lei e sobre a sua “apatia”, enunciada por Lacan como a “rejeição radical do patológico”.
Em Kant com Sade, Lacan aproxima A filosofia na alcova e a Crítica da razão prática. Lacan afirma que para Kant o princípio do prazer se torna a lei do bem-estar (Wohl), e das Gute é o bem como objeto da lei moral, sendo incondicional: “seu peso só aparece por excluir, pulsão ou sentimento, tudo aquilo de que o sujeito pode padecer em seu interesse por um objeto, o que Kant designa como “patológico” ”[74]. Um paradoxo, segundo Lacan, pois o sujeito encontraria uma lei quando não tem diante de si objeto algum. Sade coloca a apatia como negação da sensibilidade que conduz ao “gozo soberano”. Lacan correlaciona o imperativo categórico de Kant ao imperativo sadiano de gozo:

Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode-me dizer qualquer um, e exercerei esse direito, sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me dê gosto de nele saciar[75].

Este direito ao gozo ignora toda piedade e compaixão, implicando a apatia como condição própria. “Este direito é a afirmação de um dever que exclui qualquer outra motivação fora daquela que implica sua própria injunção”[76]. Assim, como Kant reconhece no imperativo categórico a rejeição do patológico e a pura forma da lei, também Sade, para Lacan, afirma uma máxima que propõe ao gozo sua regra universal, independente do patológico, sendo apática. Ambos os imperativos, de maneira latente, solicitam a ordem a partir do Outro. A lei moral seria a fenda do sujeito operada pela intervenção do significante. A máxima sadiana seria para Lacan mais honesta do que a voz interior, “por se pronunciar pela boca do Outro”[77], desmascarando a fenda escamoteada do sujeito. Para Lacan, o discurso do direito ao gozo instaura a liberdade do Outro como sujeito da enunciação, sujeito do inconsciente. O Outro no discurso sadiano é livre.
Baas comenta a relação entre desejo e lei, enunciada por Lacan, que em Kant com Sade surge como uma diferença tipográfica, onde há duas escritas de “lei”: Lei e lei. Lacan acentua que a Lei é outra coisa, diferente da lei mitológica do supereu. Baas se remete ao seminário A ética da psicanálise, onde Lacan desenvolve o conceito de das Ding, a Coisa. Além de um desejo articulado a um objeto desejado, denominado por Baas de epitúmeno, há a Coisa. A Coisa é o objeto perdido, que se relaciona à experiência de satisfação, em Freud experiência originária. Baas enfatiza o originário como um problema que surge aí. Afirma:

Para Freud, há experiência originária, onde os traços mnêmicos constituem uma espécie de imagem desfeita do objeto satisfatório, tal qual ela determina a elaboração do desejo do sujeito e o compele a procurar o que foi perdido, segundo uma lógica de identidade (identidade de percepção e/ou identidade de pensamento).Trata-se, pois, de uma originalidade empírica, de um vivido, como se diz[78].

Torna-se, então, necessário questionar: “o que é que, no sujeito, torna possível a perda que precede o desejo?”
 Esta questão é a que deve colocar uma teoria transcendental do desejo. Segundo Baas, Lacan responde a esta questão:

Lacan emprega esta palavra: “a Coisa”, das Ding, precisamente porque das Ding não é dizível, ainda menos figurável, porque dar um conteúdo a esta Coisa, já é entrar no jogo dos significantes, já é entrar no jogo confundir a coisa com o objeto desejado, a reduzir a um epítumeno. Ora, a Coisa é além do jogo significante pela qual se trama a função desejante do sujeito, mesmo se – ou antes, porque ela é a condição da possibilidade. Ela é diz Lacan, o “fora-significado” [79].

Assim, a Coisa nomeada por Lacan não é o significado original que constitui os desvios significantes. Este processo de desvio se refere ao “desejo entendido como desejo de um objeto desejado, como desejo epitumenal”[80]. Das Ding se situa além do desejo epitumenal, além da lei do supereu, “a perda é anterior ao que é perdido... a perda é ela própria a origem”[81]. Das Ding é a perda em si. O objeto do desejo é sempre objeto reencontrado, este epitúmeno não se confunde com a Coisa. A este objeto, epitúmeno, se articula a lei, a lei do supereu. A Lei (com L maiúsculo) está do lado da Coisa, a própria perda, falta fundamental original, pura falta que constitui o sujeito dividido. Por isso para Lacan, no apólogo da forca de Kant, onde o indivíduo prefere renunciar ao seu desejo a ser enforcado, diz que a forca não é a Lei, só é a pequena lei (l minúsculo), que se dirige ao Wohl, ao bem-estar, pathos do sujeito.
Baas comenta a passagem efetuada por Lacan na teoria do desejo, de Hegel a Kant, sendo o primeiro abordado pela questão do reconhecimento do desejo no estágio especular, consistente, enquanto em Kant, o desejo é purificado, tendo uma perspectiva formal a priori, questão transcendental, que busca a pura forma da Lei. Não há consistência na Coisa, na Lei. “A Coisa é o ponto de articulação da Lei porque, de um ponto de vista estrutural, ela ocupa o lugar exato disto que Kant chama “o incondicionado absoluto”, termo que Lacan não teria renegado”[82].
Na Crítica da Razão Pura de Kant, na ordem do conhecimento, a categoria da causalidade é aplicada aos fenômenos pelo entendimento, onde os fenômenos constituem uma série causal, cada fenômeno é causa e condição de um efeito. Por esta série "não parar nunca”, acima do entendimento, que estabelece o conceito puro de causalidade, se situa a razão, trazendo a idéia do incondicionado absoluto, Deus.
Portanto: Incondicionado absoluto (Deus) ® Faculdade de conhecimento = entendimento puro (a priori) ® Fenômeno.
Baas elabora uma lógica transcendental do desejo. Afirma que na ordem do desejo, analisada por Lacan, a faculdade de desejar se aplica aos objetos do desejo, epitúmenos, que são sensíveis e desejados, onde se dá a cadeia metonímica do desejo, sendo que acima dela há a Coisa, pura falta, o incondicionado.
Logo: Incondicionado absoluto (Coisa) ® Faculdade de desejar (a priori) ® Epitumeno.
Baas conjuga o discurso filosófico com o discurso psicanalítico, autorizando três observações decisivas para a compreensão da teoria lacaniana do desejo, e da correlação entre o desejo e a Lei, problemática ética:
1.     A crítica kantiana da metafísica estabelece a ilegitimidade da pretensão do entendimento de conhecer o incondicionado, que só é pensável. O incondicionado absoluto (Deus) é uma idéia que regula a faculdade de conhecer.
    De modo homólogo, em Lacan, a Coisa não é articulável, “se o desejo é sustentado pela Coisa, ele não tem como objeto a Coisa”[83], mas sim os epitúmenos, objetos figuráveis. A Lei proíbe fazer da Coisa um objeto desejável.
2.  A segunda observação se refere à estrutura kantiana da razão em seu uso prático. “A vontade livre e autônoma relaciona-se à ação empírica, exigindo que a máxima desta ação seja universalizável”[84]. A universalização, como condição da moralidade, implica na rejeição do patológico.
3.       Baas afirma que nas três estruturas expostas (razão teórica, razão prática e desejo puro), se distingue, por um lado, uma faculdade a priori (entendimento, vontade, faculdade de desejar), e por outro lado, elementos empíricos, a posteriori (fenômeno, ação empírica, o epitúmeno). No conhecimento, na ação moral e no desejo se trata de realizar a unidade do elemento a priori e do elemento empírico, unidade de dois elementos de natureza heterogênea, a síntese. Kant traz a teoria do esquematismo para explicar a síntese. O esquema é “a representação de um procedimento geral da imaginação produtora”[85], por um lado homogêneo à categoria, ao entendimento puro, e por outro lado homogêneo ao fenômeno, sendo de um lado intelectual, e de outro sensível.
Na Crítica da razão pura, Kant enuncia que a síntese das representações repousa na imaginação, mas a unidade sintética, solicitada pelo juízo, se situa na unidade da apercepção. As formas a priori puras da intuição, tempo e espaço, por si mesmas, não podem criar as condições necessárias para a possibilidade de juízos sintéticos a priori, e nem também, os conceitos ou categorias a priori puros do entendimento fornecem por si mesmos esta possibilidade. É preciso que os juízos sintéticos a priori reúnam elementos intuitivos e conceituais para que o juízo se torne possível. Para um conhecimento ter realidade objetiva, isto é, referir-se a um objeto, este objeto tem de ser dado de algum modo, sem essa possibilidade os conceitos são vazios. As intuições sem os conceitos são cegas, recebem dados, mas não conseguem conectar estes dados. Os conceitos sem as intuições são vazios, não se referem a objetos. Assim, as condições da possibilidade da experiência, entendimento e sensibilidade, conceitos e intuições, são as mesmas condições da possibilidade dos objetos da experiência, pois os objetos da experiência são constituídos pelos conceitos e intuições.
Baas afirma que na lógica transcendental do desejo também se apresenta a questão da síntese, questionando qual é o elemento mediador que efetua a síntese entre a faculdade a priori de desejar e o objeto do desejo. Como em Kant, Baas diz que por um lado este elemento mediador é homogêneo a faculdade de desejar a priori, enquanto procede do incondicionado da Coisa, e de outro lado é homogêneo ao objeto da sensibilidade, epitúmeno. Este elemento mediador tem como função tornar desejável o objeto sensível, de tal modo que “na sua ausência, o objeto não seria desejável, e o desejo seria sem objeto (estrutura exatamente equivalente àquela que sugere Kant: intuição cega – pensamento vazio)” [86]. Ao articular o desejo a um objeto, faz deste objeto um “epitúmeno”, e o elemento mediador é ‘causa do desejo”. Surge a distinção entre o objeto desejado e o “objeto causa do desejo”, qualificado como Lacan de “objeto a”:
O objeto a ocupa assim, na estrutura do desejo, o lugar homólogo àquele do esquema na estrutura do conhecimento. Assim como o esquema não está no objeto do conhecimento, mas constitui (isto é causa) este conhecimento, o objeto a não pertence ao objeto desejado (epitúmeno), mas constitui (‘causa’) o desejo deste objeto[87].
 Na clínica lacaniana o objeto a é um objeto destacável: seio, fezes, olhar e voz.
Se o objeto a não é redutível ao objeto do desejo, também não é identificado ao sujeito do desejo. É articulado ao sujeito do desejo enquanto sujeito dividido. A divisão acontece porque o desejo não surge de nada de consistente, mas pela pura falta da Coisa. É a falta da Coisa que o barra: $; e o sujeito se articula ao objeto a na fórmula da fantasia: $à a, fantasia que sustenta o desejo. O desejo tem um pé no A (Autre), o pé que conta, pois o pé mancante, do Édipo, é movido de início pela faculdade de desejar, que procede da falta absoluta da Coisa.
A fantasia possibilita a síntese da faculdade a priori de desejar e do objeto empírico, síntese realizada pelo objeto a ao se articular ao sujeito barrado do desejo. “É exatamente o mesmo dispositivo de onde procede a síntese transcendental na teoria kantiana do conhecimento” [88].
Baas conclui:
Na ordem do conhecimento e na ordem do desejo, a unidade necessária do a priori e do empírico é realizada pela articulação do sujeito dividido ao objeto transcendental, aqui esquema da síntese, aí objeto a do fantasma[89].

O tema do texto, o desejo puro, desenvolvido por Baas, lança problemas que devem nos acompanhar desde o início de sua leitura. Podemos pensar o desejo puro de Lacan tomando como modelo a Analítica Transcendental de Kant? Podemos conhecê-lo (o desejo puro)? Não, não é um fenômeno. Ele é um conceito que segue uma forma de construção semelhante aos conceitos puros, a priori, do entendimento? Até que ponto o desejo em Kant se refere à inclinação do homem, ligado à sensibilidade, logo não poderia ser puro, mas patológico?
Surge, ainda, esta questão: O desejo pio, puro, apresentado por Kant, em sua obra Antropologia de um ponto de vista pragmático[90], se aproxima do conceito lacaniano de desejo puro?
Kant, ao se referir aos princípios concernentes ao caráter na obra acima citada, onde afirma que “o estabelecimento de um caráter é unidade absoluta do princípio interno da conduta da vida em geral”[91], orienta uma possível resposta à questão. Contestando os poetas, os cortesãos e os eclesiásticos quanto à firmeza do caráter, diz que “portanto, ter um caráter interno (moral) é e permanecerá sendo só um piedoso desejo[92] (itálicos meus). Portanto, podemos pensar a partir desta afirmação de Kant em um desejo puro (pio), a priori, próximo ao caráter inteligível do “sujeito transcendental”, independente do caráter sensível, empírico, fenomenal. E, clarifica a conexão efetuada por Lacan entre desejo e lei: “da lei moral que, examinada de perto, não é outra coisa senão o desejo em estado puro...”[93], pois, pelo enunciado de Kant, um caráter moral (inteligível) é um piedoso desejo.
Podemos realizar uma ponte entre o desejo puro e o desejo impuro, este baseado na experiência, e o primeiro no além/aquém, independente da experiência, surgindo um novo paradoxo. É aquém ou além? O desejo puro é “aquém”, pois a Coisa é anterior à experiência. Este “aquém” é além, pois é piedoso? E, só pode ser pensado? Aquém e além se aproximam...
Várias questões surgem. Considerar Kant com Lacan implica em encontros e desencontros, cabendo ao filósofo e ao psicanalista, defenderem Kant de qualquer ousadia teórica que conduzisse ao gozo, o que implicaria no fim de qualquer conceito de desejo, puro ou impuro

Este modelo construído por Baas nos possibilita pensar o desejo puro como uma espécie de causalidade anterior ao sujeito do inconsciente, apresentando a liberdade como propriedade desta causalidade. A faculdade de desejar, como desejo puro, seria anterior ao objeto do desejo, antes do epithumène, que é desenvolvido por Freud.

A liberdade e a antropologia pragmática de Kant.
No Livro terceiro da Antropologia de um ponto de vista pragmático, “Da faculdade de desejar”, na seção “Da inclinação à liberdade como paixão”, Kant apresenta a paixão como a “inclinação pela qual a razão é impedida de comparar essa inclinação com a soma de todas as inclinações em vista de uma certa escolha”[94]. E, comenta que as paixões são prejudiciais à liberdade, pois se unem à reflexão tranqüila, deitando raízes, coexistindo com argumentações sutis, abolindo a liberdade e o domínio sobre si mesmo. Kant enfatiza que a razão não cessa de convocar a liberdade interna. Atribui à paixão a condição de ”doença”, um encantamento que exclui o aperfeiçoamento, inclusive o aperfeiçoamento da espécie, obedecendo à máxima: “de agir segundo um fim que lhe é prescrito pela inclinação”[95], embora estando em ligação com a razão.
Kant divide as paixões em paixões de inclinação natural (inatas) e paixões que procedem da civilização (adquiridas). As primeiras, ardentes, incluem a inclinação à liberdade e a inclinação sexual, e as segundas, qualificadas como frias, são a ambição, o desejo de poder e cobiça. Assinala que as paixões são desejos dirigidos apenas de homens a homens.
Sobre a inclinação à liberdade como paixão, Kant a considera demais violenta no homem natural, quando ele não pode evitar o confronto entre as suas reivindicações e a dos outros. Afirma: “Quem só pode ser feliz conforme a escolha de um outro (por mais benévolo que este possa ser) sente-se com razão infeliz. Pois que garantia tem ele de que o juízo de seu poderoso semelhante concorda com o seu?”[96]. Observamos nesta citação a manifestação do conceito de alienação desenvolvido posteriormente por Hegel e Marx, e por Lacan, onde a alienação surge como uma primeira operação na relação do sujeito com o Outro (A) para a instauração de sua subjetividade, e a instituição da ordem simbólica. Expressa uma determinada positividade, pois a criança ao se assujeitar ao Outro, torna-se sujeito da linguagem. Seria uma “escolha forçada”, pois a escolha da sujeição ao Outro se torna necessária para o indivíduo advir como sujeito. Mas, o indivíduo pode negar o acesso a este momento de assujeitamento ao Outro, o que acontece na psicose, daí nos referirmos ao termo escolha. A segunda operação neste processo é a separação, onde há um confronto do sujeito alienado com o Outro, através do seu desejo.
                      Em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise[97], Lacan se refere à liberdade, mostrando como a liberdade do sujeito é sacrificada pela alienação, que corresponde ao assujeitamento do outro à linguagem. Analisa o advento do sujeito através de dois processos: alienação e separação. Na alienação, primeira operação que funda o sujeito, a criança é assujeitada ao Outro, da linguagem. A alienação é um vel que condena o sujeito a aparecer por um lado como sentido, produzido pelo significante, e do outro como afânise. Este vel da alienação implica numa escolha, que qualquer que seja a escolha, ocorre “nem um nem outro”. O “ou” alienante está na linguagem. Lacan exemplifica: “A bolsa ou a vida! Se escolho a bolsa, perco as duas. Se escolho a vida, tenho a vida sem a bolsa, isto é, uma vida decepada”[98].
                       Lacan traz Hegel como indicação deste vel alienante, onde o homem entra na via da escravidão: “A liberdade ou a vida! Se ele escolhe a liberdade, pronto, ele perde as duas imediatamente – se ele escolhe a vida, tem a vida amputada da liberdade”[99]. Ao falar da “liberdade ou a morte!”, Lacan diz que se produz um efeito de estrutura diferente, no caso terá os dois: “vocês escolhem a liberdade, muito bem! É a liberdade de morrer... a única prova de  liberdade que vocês podem fazer nas condições que lhes indicam, é justamente a de escolher a morte, pois aí, vocês demonstram que vocês têm a liberdade de escolha”[100].
                        A segunda operação é a de separação, que parte da percepção pela criança que o Outro (A) é barrado, dividido. A criança tenta preencher a falta do Outro materno com a sua própria falta, ao perceber o seu desejo por algo mais, tentativa frustrada pela operação da metáfora paterna. A intervenção do significante Nome-do-Pai efetua o corte na relação bebê-mãe, tornando o infans sujeito dividido, ato instituinte da lei do pai, e da proibição do incesto.
                        A lei da interdição do incesto, universal, aproxima-se do modelo kantiano da lei moral. A proibição do incesto institui o homem na cultura, pela Linguagem. Não há desejo sem lei, a lei funda o desejo no inconsciente. O inconsciente é estruturado como uma linguagem, uma cadeia significante que segue as leis da linguagem. Neste mesmo tecido está o desejo. A lei é um significante, o Nome-do-Pai, interdita o desejo, que permanece vivo no inconsciente, como desejo e força libertária.
Em Hegel, encontramos a “consciência infeliz”, cindida dentro de si, sendo inicialmente “unidade imediata” de duas consciências-de-si, uma simples e imutável, enquanto a outra, mutável de várias formas e inessencial. Sendo ela, a consciência dessa contradição, se identifica, de início, com a parte mutável e múltipla, mas, ao se perceber, também, como consciência da imutabilidade ou da essência simples, se depara com a relação de luta entre a essência (o imutável) e o inessencial, suprassumindo, então, o mutável, o inessencial. Luta dolorosa, pois há perda do seu contrário, luta entre o singular e o imutável, existência singular que se reencontra consigo mesma no imutável, tornando-se Espírito, conciliação do singular com o universal.
 Em Freud, encontramos a luta entre o ego e o supereu, este último agente de uma lei feroz, exigindo do ego subserviência.
Assim, percebemos a acuidade do ponto de vista kantiano, e a relevância da obra Antropologia de um ponto de vista pragmático. Prosseguindo neste texto, encontramos esta seguinte afirmação:
A criança que acaba de ser tirada do ventre materno parece entrar no mundo gritando, diferentemente de todos os outros animais, porque vê como coerção sua incapacidade de se servir de seus membros, e anuncia no mesmo instante seu direito à liberdade (da qual nenhum outro animal tem uma representação) (Kant 2006, 166).
Kant desenvolve este argumento, numa nota de rodapé, sobre a criança recém-nascida:
...nela o sentimento de incômodo não procede da dor corporal, e sim de uma idéia obscura (ou representação análoga a esta) da liberdade e do obstáculo a ela, a injustiça, isso se descobre pelas lágrimas que vêm se unir ao grito alguns meses após o nascimento, o que revela uma espécie de amargura, quando se esforça por se aproximar de certos objetos ou simplesmente por modificar seu estado, e se sente impedida de fazê-lo. – Esse impulso a ter vontade própria e a apreender o impedimento como uma ofensa também se distingue especialmente por seu tom e deixa transparecer uma maldade que a mãe se vê obrigada a castigar, mas habitualmente se replica a isso com gritos ainda mais veementes. Exatamente o mesmo acontece quando cai por sua própria culpa. Os filhos de outros animais brincam, os do ser humano brigam prematuramente uns com os outros, e é como se um certo conceito de direito (referente à liberdade externa) se desenvolvesse ao mesmo tempo que a animalidade e não se aprendesse pouco a pouco [101] (negrito meu).

Comenta adiante:

Assim, o conceito de liberdade sob leis morais não apenas desperta uma afecção, denominada entusiasmo, mas a mera representação sensível da liberdade exterior aumenta a inclinação de persistir nela ou, pela analogia com o conceito de direito, a amplifica até torná-la uma paixão impetuosa.

Nos meros animais, mesmo a inclinação mais veemente (por exemplo, da cópula) não se denomina paixão, porque não possuem razão, a única que fundamenta o conceito de liberdade e com a qual a paixão entra em colisão, paixão cujo surgimento pode, portanto, ser imputado ao ser humano[102] (negrito meu).

Kant retrata agudamente o sentimento do desamparo infantil, a angústia que emerge, e a partir daí, a dependência ao outro. Mas, o que pretendo destacar na citação acima, é a presença de uma representação de liberdade, embora obscura, e de uma oposição a ela. Kant mostra o aparecimento de uma representação natural de liberdade, não clara, “talvez” inconsciente, uma representação relacionada a um impulso a ter “vontade própria”, na razão. Encontramos, em Freud, o termo “idéia”, em alguns textos, tendo o sentido de representação, na acepção de “reprodução interna de seqüência de imagens sensoriais” (Vorstellungen), como também, em outros textos, surge como “representação imagética interna” (Vorstellung)[103].
Portanto, podemos pensar numa idéia a priori de liberdade, conceito que a criança já dispõe, como fazendo parte do “dispositivo” a priori do sujeito transcendental, formal, que ganha conteúdo, pelas impressões intuitivas da sensibilidade.
As intuições sem os conceitos são cegas, recebem dados, mas não conseguem conectar estes dados. Os conceitos sem as intuições são vazios, não se referem a objetos, ganham sentido pela síntese realizada pela faculdade de imaginação (segundo Hanns, Vorstellung tem também o significado de imaginação em alguns textos freudianos). A síntese das representações repousa na imaginação ao relacionar os conceitos com as “imagens”. Como Kant afirma na Crítica da faculdade do juízo: “Ora, a uma representação pela qual um objeto é dado, para que disso resulte conhecimento, pertencem a faculdade de imaginação (Einbildungskraft), para a composição do múltiplo da intuição, e o entendimento, para a unidade do conceito, que unifica as representações”[104].
Kant se refere a uma representação de liberdade, e a uma outra representação sensível, de paixão, que se colide com ela. Assim, para melhor compreensão, penso que é interessante discutirmos o conceito de grandezas negativas, que se refere às representações, que embora positivas, em si, se opõem, de um modo real, a outras. Segundo Caygill, no Dicionário Kant[105], em um dos textos pré-críticos, Ensaio para introduzir a noção de grandezas negativas em filosofia[106], Kant se refere ao conceito de representação inconsciente. Neste texto, Kant enuncia que a oposição pode ser lógica (ao afirmar e negar algo de uma única e mesma coisa, ao mesmo tempo), sendo contraditória; e pode ser real, sem contradição. Em uma oposição real, algo se suprime pelo que é posto pelo outro, mas a conseqüência é algo. As grandezas negativas não são negações de grandezas, mas “algo em si mesmo verdadeiramente positivo, algo que apenas se opõe a outra coisa”[107]. O desprazer não é só uma ausência de prazer (Kant define a negação baseada na ausência como uma não exigência de um fundamento positivo, apenas ausência dele; enquanto a negação baseada na privação possui um fundamento positivo verdadeiro, e um fundamento igual que lhe é oposto), mas um fundamento positivo que suprime em parte ou totalmente o prazer proveniente de um outro fundamento, logo um prazer negativo.
Na terceira seção sobre as grandezas negativas Kant se ocupa da questão “como algo que é deixa de ser”:
Neste momento, por exemplo, mediante a formação de minha imaginação, a representação do Sol existe em minha alma. No instante seguinte, deixo de pensar neste objeto. Essa representação, que existia, cessa em mim, e o próximo estado é o zero do anterior. Quisesse fornecer como razão para isso a explicação de que o pensamento cessou, porque, no momento seguinte, deixei de suscitá-lo, a resposta não se diferenciaria da pergunta, pois a questão aqui é justamente, como uma ação, que efetivamente ocorre, pode interromper-se, isto é, pode cessar de ser.
Afirmo assim, que toda desaparição é um nascimento negativo, isto é, que, para suprimir algo de positivo, que existe, é requerido um fundamento real tão verdadeiro quanto é necessário para produzi-lo, se ele inexiste[108] .

E, mais adiante:

Assim, deve-se julgar que o jogo das representações e, em geral, de todas as atividades de nossa alma, na medida em que seus efeitos previamente existentes deixam de existir, pressupõe ações opostas, das quais uma é a negativa da outra, em virtude de certas razões que introduzimos, apesar do fato de que nem sempre a experiência interna possa nos informar sobre isso [109].

Sobre a luta de forças opostas, Kant afirma:
...no que concerne à supressão de algo existente, não pode haver diferença entre os acidentes da natureza espiritual e os efeitos de forças eficientes no mundo corporal. Estas jamais podem ser suprimidas a não ser mediante uma verdadeira força motriz oposta por algo outro; um acidente interno, um pensamento da alma, não pode cessar sem uma força verdadeiramente ativa do mesmo sujeito pensante [110].

No final do livro Antropologia de um ponto de vista pragmático, Kant trata do caráter da espécie. Ao se referir à disposição moral, sobre a questão se o homem é por natureza bom ou mau, afirma que o ser dotado da faculdade da razão prática e da consciência da liberdade de seu arbítrio, apesar da presença das mais obscuras representações se percebe nessa consciência sob uma lei do dever, sendo este o caráter inteligível da humanidade, e o homem, segundo sua disposição inata, bom. Mas, como revela uma predisposição a desejar o ilícito, a propensão para o mal, percebida tão cedo quanto o homem faz uso de sua liberdade, também inata, o ser humano deve ser julgado mau quanto ao seu caráter sensível, não sendo contraditório ao se referir ao caráter da espécie (como vimos no conceito de grandezas negativas), pois se admite que a destinação natural consiste no progresso contínuo da espécie até o melhor.
Prosseguindo, Kant ao se referir, novamente, à vontade própria, afirma que ela subitamente se manifesta como hostilidade ao próximo, e a todo instante tenta realizar sua pretensão à liberdade incondicional do ser, não só independente, mas como soberana sobre os outros seres de mesma natureza, como é observado na criança, pelo motivo que na criança a natureza a conduz a uma cultura, cujos fins se acordam com a moralidade, mas partindo da cultura para a moralidade, e não da moralidade e de sua lei, como a razão prescreve, produzindo uma tendência contrária aos fins.
Kant, numa nota de rodapé, discute novamente sobre os gritos de uma criança recém-nascida, que não têm o tom de queixa, mas de indignação e cólera, não por dor, mas porque alguma coisa a contraria, “provavelmente porque quer se mover e sente sua incapacidade de fazê-lo como grilhões que tolhem a liberdade”[111]. Depois, reflete sobre a intenção da natureza em fazer a criança vir ao mundo aos gritos, que anuncia ruidosamente a sua existência, supondo que a sabedoria da natureza pretende desse modo conservar a sua espécie.
Podemos observar o desenrolar do movimento do antagonismo na obra kantiana, que surge no texto acima como uma oposição entre a representação da liberdade, presente no caráter inteligível do sujeito, e a representação oposta, sensível, relacionada ao caráter sensível, e a positividade expressa, por Kant, em cada uma dessas representações. Ambas são necessárias para o aperfeiçoamento da espécie.
 Kant desenvolve em sua obra Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita[112] o tema de que a cultura nasce do antagonismo das disposições naturais. Entende por antagonismo a insociável sociabilidade dos homens, tendência para entrar em sociedade ligada a uma oposição que ameaça a dissolução desta sociedade. A inclinação do homem para se associar se dá por se perceber mais humano neste estado, através do desenvolvimento de suas disposições naturais. Mas, também, tem uma tendência a se isolar, pois tem em si uma qualidade insociável, buscando conduzir a vida em seu proveito, se opondo aos outros homens. Assim, partindo da rudeza se atinge à cultura, valor social do homem, havendo uma progressiva iluminação (Aufklärung), que funda uma maneira de pensar, modificando as rudes disposições naturais para que possam atingir uma sociedade conforme a lei moral. A insociabilidade funciona, no antagonismo, como face importante do motor ao desenvolvimento, pois faz com que o homem não permaneça na inércia.
Para Kant, a representação que expressa a autonomia da criança (infans), do ser humano, é anterior à capacidade do seu corpo de poder responder ao Outro, através da fala e de movimentos coordenados, mas ainda assim, ela luta contra os grilhões que a aprisionam. O estádio do espelho, de Lacan, é o campo onde, também, podemos perceber esta luta. A estruturação do eu é um processo que se dá pela percepção de um modelo (ideal do eu), lugar da lei que se enlaça à liberdade (caráter inteligível), e, também, através da presença do outro, a mãe, é antecipado, e transmitido à criança uma representação da unidade corporal, sensível, que expressa a “liberdade” corporal, de postura e de movimentos, unidade de ação.
Kant, ao se referir ao “gosto artístico”, à poesia e eloqüência, enuncia uma interessante “definição” sobre a sua antropologia pragmática: “onde se procura conhecer o ser humano segundo aquilo que se pode fazer dele”[113].

Conclusão

Podemos considerar a liberdade inconsciente, a partir do conceito de númeno de Kant, como uma propriedade do inconsciente pensado em si mesma, como uma coisa em si. A Coisa, objeto sempre perdido, é ek-sistente, sendo incognoscível. O determinismo opera como uma causalidade das leis do fenômeno, isto é, opera na passagem daquilo que vem do inconsciente para o consciente, mas o inconsciente como instância em si mesmo é livre. No inconsciente não há contradições. O inconsciente é atemporal, não segue as leis do fenômeno, não ocorrendo sucessão temporal, expressando a lei em conexão com a liberdade. Segundo Kant, o sujeito, quanto ao caráter inteligível, não está sob condições temporais, pois o tempo é condição dos fenômenos, mas não das coisas em si mesmas. Enquanto fenômeno, o sujeito estaria submetido às leis da determinação de ligação causal, mas enquanto númeno, não apresentaria mudanças no tempo, sendo livre e independente de toda necessidade natural. A liberdade e a natureza se encontrariam, sem conflito, nas mesmas ações, conforme referência à sua causa sensível ou inteligível. Freud, em O Inconsciente[114], afirma que os processos mentais podem ser inconscientes em si mesmos.
Freud precisava tornar a psicanálise uma ciência, já que em sua época o modelo científico imperava. O conceito de determinismo trouxe legitimidade à psicanálise, inserindo-a no processo das leis da causalidade científica. Devido ao determinismo, a idéia de liberdade em psicanálise ficou isolada. Observamos a liberdade no pensamento psicanalítico, quando Lacan separa “o pensar” do Cogito cartesiano e o coloca no lugar do inconsciente, fundamento do sujeito da enunciação, sujeito do inconsciente, sujeito do desejo, que ao falar plenamente, enuncia a verdade (meia-verdade), como uma expressão libertária. Freud conceitua energia livre e ligada, termos que exprimem pela perspectiva econômica psicanalítica, uma distinção entre processo primário e secundário. No processo primário, situado no inconsciente, a energia é livre, pois caminha para uma descarga rápida e direta. No processo secundário, a energia é ligada, sendo o seu movimento retardado ou controlado para a descarga. Para Freud o estado livre da energia precede ao ligado.
                        Para Lacan, o desejo está em relação com a lei. O inconsciente é estruturado como uma linguagem. A linguagem tem as suas leis. A lei funda o desejo. O desejo, como força libertadora do sujeito, é inseparável da lei. A práxis psicanalítica caminha em direção à liberdade do sujeito, liberdade em conexão com a lei. Lacan questiona em A direção do tratamento e os princípios de seu poder[115].

Para onde vai a direção do tratamento? 1. Que a fala tem aqui todos os poderes, os poderes especiais do tratamento; 2. Que estamos muito longe, pela regra, de dirigir o sujeito para a fala plena ou discurso coerente, mas que o deixamos livre para se experimentar nisso (a liberdade do analisando na travessia de sua análise, mas em relação com a regra, a regra fundamental, a lei da associação livre, lugar que a liberdade de expressão pode se dar) 3. Que essa liberdade é o que ele tem mais dificuldade de tolerar...”[116](itálico meu)

 Lacan prossegue enfatizando a necessidade de colocar a demanda entre parêntesis, excluindo a hipótese de sua satisfação pelo analista, e a “atenção” dirigida ao desejo no tratamento é uma atenção flutuante, atenção livre, belo paradoxo!  
                          Há no inconsciente uma espontaneidade absoluta. Kant afirma que é preciso admitir uma espontaneidade absoluta na série das causas posteriores, uma liberdade transcendental. A idéia transcendental de liberdade constitui a absoluta espontaneidade da ação. Kant questiona se é na liberdade ou na lei prática onde se inicia o conhecimento do incondicionalmente prático. Afirma que não se inicia na liberdade, pois não podemos ter consciência diretamente dela, porque o seu conceito primeiro é negativo, nem podemos inferi-la da experiência, pois a experiência nos dá o conhecimento da lei dos fenômenos, contrária à liberdade. Assim, nos tornamos conscientes da lei moral. Mas, a lei moral aponta para o conceito de liberdade. O conhecimento do prático incondicional se dá primeiro pela lei moral, sendo o conceito da liberdade negativo (inconsciente). A liberdade habita o inconsciente num modo latente.
A lei funda o desejo inconsciente. A liberdade é inseparável da lei, que na psicanálise é a lei da interdição do incesto, imperativo, dever. Desejo em psicanálise não é vontade kantiana, esta última consciente, mas podemos construir Lacan com Kant, pois Lacan segue a trilha kantiana ao fazer a relação do desejo e a lei moral, através do emprego do modelo apresentado por Kant da relação entre vontade e lei moral. Em psicanálise, a lei moral é a da proibição do desejo incestuoso, lei universal. Através do recalque, o desejo se torna inconsciente, mas permanece a sua potência libertadora, atuando de diversas maneiras, para se libertar do aprisionamento das forças opressoras. Logo, o desejo, como a vontade em Kant, apresenta a propriedade da liberdade, sendo uma espécie de causalidade. Como Baas apresentou em seu texto, a Coisa é a Causa.

Penso que o determinismo está presente no inconsciente, mas como uma causalidade das leis do fenômeno, isto é, na passagem daquilo que vem do inconsciente para o consciente, mas o inconsciente apresenta uma causalidade livre enquanto númeno.

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[1] Freud, S..O ego e o id. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, p. 49.
[2] Freud, S.. O problema econômico do masoquismo. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, p. 209.
[3] Freud, S. .Psicologia de grupo e a análise do ego. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18)
[4] Lacan, J.. As Formações do Inconsciente, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p.200.
[5] Ibid., p.202
[6] Ibid., p.195
[7] Japiassú,H. e Marcondes, D.. Dicionário básico de filosofia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 68.
[8] Freud. A psicopatologia da vida cotidiana, Rio de Janeiro: Imago,1976.
[9] Ibid., p. 287.
[10] Ibid., p. 291-304.
[11] Ibid., p. 308.
[12]  Ibid., p. 309.
[13] Ibid., p. 332.
[14] Mannoni,O.. Freud: uma biografia ilustrada, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
[15] Ibid., p.101.
[16]Japiassú,H. e Marcondes,D.. Dicionário básico de filosofia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p.101.
[17] Kant, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
[18] Ibid.,p.217
[19] Ibid.,p.406
[20] Ibid.,p.406
[21] Ibid.,p.408
[22] Ibid.,p.408
[23] Ibid.,p.466
[24] Ibid., p.633
[25] Ibid., p.636
[26] Ibid., p.636[27] ibid., p.638
[28] Winnicott,D.W.. O brincar e a realidade, Rio de Janeiro: Imago, 1975, p.79.
[29] Ibid., p.100.
[30] Freud, S. . O inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
[31] Ibid., p.214.
[32] Kant, I. Fundamentação da metafísica dos costumes, Lisboa: Edições 70, 2001.
[33] Ibid., p.47
[34] ibid., p.59
[35] ibid.,p.93
[36] ibid., p.94
[37] ibid., p.103
[38]ibid., p.85
[39]Kant, I.. Crítica da Razão Prática, Lisboa: Edições 70 Ltda., 1999.
[40] Ibid., p.14
[41] Ibid., p.40
[42] Ibid., p.41
[43] Ibid., p.41
[44] Ibid., p.41
[45] Ibid., p.42
[46] Lacan, J. A ética da psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
[47]Ibid., p.72.
[48] Ibid., p.98
[49] Ibid., p.378
[50] Ibid., p.378
[51] Ibid., p.378
[52] Ibid., p.378
[53] Ibid., p.378
[54] Ibid., p.378
[55] Ibid., p.378
[56] Ibid., p.382
[57] Lacan, J.. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
[58]Ibid., .p.797
[59] Baas, B. O Desejo Puro.  Rio de Janeiro: Revinter, 2001.
[60]Lacan,J.. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
[61] Op. Cit., p.13
[62] Platão, Filebo, p. 162
[63] Ibid., p.162
[64] Op. Cit., p.13
[65] Op. Cit., p.14
[66] Op. Cit., p.14
[67] Lacan,J.. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, p.260.
[68] Kant, I.. Crítica da Razão Prática, Lisboa: Edições 70, 1999, p.17.
[69] Ibid., p.17.
[70] Kant, I.. Fundamentação da metafísica dos costumes, Lisboa: Edições 70, 2001, p.30.
[71] Ibid., p.30
[72] Ibid., p.26.
[73] Ibid., p.32-33
[74] Lacan, J.. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 777-778.
[75] Ibid., p. 780.
[76] Op. cit., p. 25.
[77] Op. Cit., p.782.
[78] Op. Cit., p.31
[79] Ibid., p. 32.
[80] Ibid., p. 33
[81] Ibid., p. 33.
[82] Ibid., p.34.
[83] Ibid., p.37.
[84] Ibid., p.39.
[85] Ibid., p.43.
[86] Ibid., p.45.
[87] Ibid., p.45
[88] Ibid., p.46.
[89] Ibid., p.47.
[90] Kant, I.. Antropologia de um ponto de vista pragmático.  São Paulo: Iluminuras, 2006.
[91] Ibid., p.190.
[92] Ibid., p.190.
[93] Op. Cit, p. 290.
[94] Ibid., p. 163.
[95] Ibid., p.164.
[96] Ibid., p.166.
[97] Lacan,J.. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995
[98]Ibid., p.201
[99] Ibid., p.201
[100] Ibid, p.202
[101] Op. Cit., p.166.
[102] Ibid., p.167.
[103] Hanns, L. A.. Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
[104]Kant, I.. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p.62.
[105] Caygill, H.. Dicionário Kant.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
[106] Kant, I.. Escritos pré-críticos.  São Paulo: UNESP 2005.
[107] Ibid., p. 56.
[108] Ibid., p.80.
[109] Ibid., p. 81.
[110] Ibid., p.80.
[111] Ibid., p.222.
[112] Kant, I.. Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
[113] Op. Cit., p. 143.
[114] Freud, S. O inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
[115] Lacan, J.. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
[116] Ibid., p. 647