Habermas e a psicanálise: crítica ao dogmatismo
Heck afirma na introdução de
Conhecimento e Interesseque
Habermas parte da tese de que “todo conhecimento é posto em movimento por
interesses que o orientam, dirigem-no, comandam-no”
,
sendo que o único interesse que se legitima a si próprio é o da emancipação da
espécie. Da identidade de tornar-se livre em um determinado momento e ser-livre
algum dia resulta para Habermas uma concepção original de práxis. Trata-se de
manter viva a teoria, o discurso isento de coerção, buscando pela reflexão a
emancipação. Encontramos no livro elementos básicos do racionalismo crítico e
da filosofia analítica. Habermas conecta o interesse por emancipação com a
psicanálise. Investe em Freud, no sentido de fazer da reflexão uma grandeza
epistemológica, de comprometer o interesse com um conhecimento que seja eficaz
em desmascarar estruturas repressivas, dissolvendo-as no fluxo emancipatório do
saber. Encontra na psicanálise ingredientes humanistas como a espontaneidade, a
consciência e a liberdade.
Habermas afirma que na situação
terapêutica os indivíduos conversam entre si, sendo que o saber que resulta
desta comunicação se localiza entre as coordenadas do próprio verbo que se
articula. Não há um acordo preliminar, logo acontece em prática o que a
reflexão filosófica só consegue antecipar teoricamente: o exercício
emancipatório da comunicação. Para Habermas a psicanálise é “o único exemplo
disponível de uma ciência que reivindica metodologicamente o exercício
auto-reflexivo”
. Busca
universalizar a situação terapêutica, tendo na emancipação seu interesse
determinante. Situa a metapsicologia freudiana a serviço do interesse
emancipatório. A conversa psicanalítica conduz à emancipação.
Interpreta a obra de Freud,
buscando examinar o processo da dissolução da teoria do conhecimento,
substituída pela teoria da ciência, galgando a esquecida experiência da
reflexão. Diz que “Freud elaborou uma moldura interpretativa para processos de
formação, perturbados e obliterados, os quais podem, através de uma reflexão de
orientação terapêutica, ser conduzidos para vias normais”
.
A auto-reflexão é “percepção sensível e emancipação, compreensão imperativa e
libertação da dependência dogmática numa mesma experiência”
.
O dogmático é coisificado pelo objeto, levando uma existência não livre, sendo
o dogmatismo uma incapacidade teórica. Cita o conceito da auto-reflexão,
desenvolvido por Fichte, como uma atividade que retroage sobre si mesmo,
possuindo uma significação sistemática para a categoria do interesse que
orienta o conhecimento.
Habermas denomina de interesses
“as orientações básicas que aderem a certas condições fundamentais da
reprodução e da autoconstituição possíveis da espécie humana: trabalho e
interação“
.
Estas orientações fundamentais visam a solução de problemas sistêmicos
propriamente ditos. Trabalho e interação englobam processos de aprendizagem e
de compreensão recíproca. Um complexo vital é um conjunto de interesses.
As ações
emancipatórias são ações que coincidem com a atividade da reflexão. Um ato de
auto-reflexão, que altera a vida, é um movimento de emancipação, sendo que para
Fichte, conhecimento e interesse se fundem num único ato. Habermas diz que
“aquilo que chamamos de razão se apreende no momento em que ela, enquanto tal,
se executa como auto-reflexão”
.
Segundo Habermas, a
psicanálise ao nascer já se move no elemento da auto-reflexão, sendo a crítica
psicanalítica do sentido em Freud um exemplo da auto-reflexão como ciência.
Freud refletiu sobre as novas premissas da psicanálise, pois desenvolveu uma
nova disciplina. Habermas afirma que “a psicanálise é, para nós, relevante como
o único exemplo disponível de uma ciência que reivindica metodicamente o
exercício auto-reflexivo”
.
A crítica psicanalítica restabelece o texto mutilado na história do sujeito. O
trabalho crítico da psicanálise implica em esclarecer o sentido da corrupção no
texto adulterado por influências internas, um sentido que o sujeito não tem
mais
acesso. É uma
hermenêutica, segundo Habermas, que “unifica a
análise da linguagem com a pesquisa psicológica dos complexos causais”
.
Prossegue:
Instruído pelo analista, o paciente aprende a ler
seus próprios textos, por ele mesmo mutilados e deformados, e a traduzir, no
discurso da comunicação pública, os símbolos de um discurso disforme na
linguagem privada. Tal tradução descerra para a memória, até aí bloqueada, as
fases geneticamente importantes da história da vida, e torna o sujeito
consciente do seu processo formativo: neste sentido a hermenêutica
psicanalítica não objetiva, como a hermenêutica das ciências do espírito, a
compreensão de complexos simbólicos enquanto tais; o ato de compreender, ao qual ela conduz, é auto-reflexão .
Habermas parte da tese
“segundo a qual o processo cognitivo do paciente, iniciado pelo médico, deve
ser compreendido como uma auto-reflexão”
.
O conhecimento psicanalítico faz parte da auto-reflexão, sendo que a técnica
analítica não pode ser determinada sem a referência à experiência de reflexão.
A tradução do texto psicanalítico, tornar o inconsciente consciente, seria a
reflexão onde as repressões podem ser suprimidas. O analista encaminha o
processo do esclarecimento, reorientando a dinâmica do recalque, e libertando
as impressões recalcadas. Considera o saber psicanalítico como uma crítica: “O
saber analítico, enquanto auto-reflexão, é crítica no sentido de que a
intelecção do paciente possui, nela mesma, o poder analítico de remover
atitudes dogmáticas”
.
A crítica parte da necessidade de uma transformação. O paciente deseja se ver
liberto de seus sintomas. A auto-reflexão se mantém em processo através do
interesse pelo auto-conhecimento.
O tratamento
psicanalítico através da dinâmica da reflexão transforma um estado em outro, a
crítica caracteriza-se por um esforço emancipatório, transforma o estado
patológico em linguagem reconciliada, e Habermas diz: “Enquanto a teoria
permanecer, de acordo com o seu sentido, relacionada com a reconstrução de uma
parte perdida da biografia e, assim, presa à auto-reflexão, sua aplicação será
necessariamente prática”
Segundo Habermas, a
psicanálise deve a sua existência a intenção do esclarecimento. A crítica
possui o sentido de análise. A crítica busca fazer com que o inconsciente se
torne consciente, alterando também os elementos determinantes de uma
falsa consciência. Numa perspectiva crítica é preciso recuperar a interação
humana, baseada no agir comunicativo entre sujeitos livres, buscando o caráter
emancipador em relação à dominação técnica. A crítica, ao explicitar as
condições da ação comunicativa, permite o desmascaramento da ideologia e a
retomada da razão emancipadora. Busca, aproximando-se da filosofia analítica,
uma linguagem livre de distorção como fundamento de uma nova racionalidade. A
psicanálise sempre combateu superstições, dogmas, seguindo o viés do
Iluminismo, defende a racionalidade crítica, a liberdade humana; a teoria e a
prática psicanalítica fazem parte do processo de emancipação da espécie
humana.
Referência bibliográfica:
Habermas, J. Conhecimento e interesse. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
Notas:
Habermas, J.. Conhecimento
e interesse, Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.