quinta-feira, 25 de junho de 2015

A criança como sintoma dos pais


                     A criança como sintoma dos pais.                     
                                                                                          Rosa Jeni Matz

Lacan em Nota sobre a criança (1969), escrita à Dra. Jenny Aubry, publicado nos Outros Escritos, afirma que “o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar”[1]. O sintoma infantil pode representar a verdade do casal parental. Verdade da mãe em relação à sua falta, ao seu desejo, e verdade do pai como vetor da encarnação da lei no desejo.
O sintoma como efeito da subjetividade materna torna a criança correlata de uma fantasia, que é um enquadre da realidade, onde vai responder à falta na mãe, desviando a mãe de sua verdade própria, e muitas vezes a protegendo. O sintoma do filho tem como fim ocultar uma verdade ameaçadora. Não ocorrendo mediação da função paterna, a criança fica exposta às capturas fantasísticas, imaginárias, tornando-se objeto da mãe, e revelando a verdade deste objeto. A criança ocupa o lugar do objeto a na fantasia.

Fórmula da fantasia
$ ◊ a

A fantasia é fundamental porque articula o sujeito ($) ao objeto (a), objeto causa de desejo, sempre perdido, que escapa, mas que pode ser acionado como tampa da falta, gerando gozo. A fantasia sustenta o desejo.


Guillaume, a criança como objeto de gozo materno

Filme: Les garçons, et Guillaume, à la table (2013), direção de Guilhaume Gallienne.
Título em português: Eu, Mamãe e os Meninos.
“A primeira lembrança que tenho de minha mãe é de quando eu tinha uns quatro ou cinco anos. Ela chamou os filhos para o jantar, dizendo: “Les garçons, et Guillaume, à la table”  (“Meninos e Guillaume, à mesa!”).
Esta “sentença” de sua mãe traça o seu destino, caminho que Guillaume percorre, narrando a sua história.
Guillaume é o desejo do desejo do Outro (Mãe): uma menina. Encarna o desejo da mãe, uma menina. Mais tarde, na vida adulta, busca desvendar o enigma da sua sexualidade, até então enganado por uma suposta homossexualidade, através de encontros confusos e cômicos com homens. Mas, num jantar de uma amiga, uma mulher desperta o seu desejo. Neste momento, neste mesmo jantar, surge a enunciação que o reconhece e o coloca como sujeito em sua vida: “Les filles, Guillaume, à la table” (“As meninas, Guillaume, à mesa”); surpreendendo-o, colocando-o na posição de homem, trazendo assim o significante da diferença sexual, modificando uma alienação a que estava assujeitado.

Em Alocução sobre as psicoses da criança[2], 1968, Lacan afirma: “Toda formação humana tem por essência, e não por acaso, de refrear o gozo”, sendo “o princípio do prazer o freio do gozo”[3]. A mãe de Guillaume, ao tamponar a sua falta pelo filho, torna-o objeto de seu gozo.
Lacan discordou de alguns pós-freudianos que desconheciam a ação do significante na constituição do sujeito na relação dual mãe-criança, e também pelo não estabelecimento do enquadre da fantasia que conjuga sujeito, desejo e gozo. Diz que eles criaram uma fantasia postiça sobre a harmonia instalada no habitat materno.
Lacan formula a expressão “criança generalizada”, lançando uma questão ética, chamando a atenção para o declínio do pai em nossa cultura. Destaca a tendência a objetalização do sujeito, resultando então em irresponsabilidade quanto ao modo de gozo de cada um. A responsabilidade do sujeito adulto fica tomada pelo zênite do gozo (“todos somos crianças”). Assinala que o sintoma somático da criança desvela a não mediação paterna na relação mãe-criança, encarnando a verdade do Outro, sendo um recurso inesgotável para o encobrimento do sintoma parental, e garantindo o desconhecimento da verdade materna ao proteger a mãe.
A criança se torna um objeto familiar, impossibilitada de expressar o seu lugar de sujeito na família, colocando no corpo o gozo excessivo, devido à impossibilidade da cifra da linguagem. Conforme a sua posição nas estruturas: neurótica, perversa e psicótica, a criança pode saturar, ocupar o lugar deste objeto, substituindo a falta específica do desejo da mãe, podendo atestar a culpa (neurose), servindo de fetiche (perversão), ou encarnando a recusa primordial (psicose). O sintoma somático da criança pode ser o representante da culpabilidade inesgotável de seus pais. A criança colocada como fetiche dos pais encobre a castração, renegando a falta, sendo objeto da perversão parental. E, a criança, na psicose, pode ser objeto da rejeição dos pais, não ter sido desejada pela mãe, havendo recusa de seu nascimento.  
É preciso estar atento na clínica com crianças para a seguinte posição ética no dizer de Lacan: “se opor a que seja o corpo da criança que corresponda ao objeto a[4]. Que o corpo real da criança não sirva como objeto do Outro, a criança não pode ser capturada pelos caprichos maternos, como refém da mãe, assim apagando a sua posição de sujeito desejante. O analista de crianças se opõe ao gozo parental. Qualquer criança, no início de sua vida, é colocada no lugar de objeto materno, um objeto que pode ser precioso, mas que também pode ser lixo do Outro. O importante é a possibilidade do movimento advir: partindo inicialmente de objeto, assujeitado, para a posição de sujeito, onde tanto o desejo da criança como o desejo da mãe possam surgir.
O processo de subjetivação, o advento do sujeito, acontece em dois momentos. O primeiro momento é o da alienação, movimento simbólico que introduz a linguagem para a criança. Depois, num segundo momento, ocorre o mecanismo da separação, onde a criança percebe que ela não cobre totalmente a falta da mãe, e a mãe também aponta o seu desejo para outras direções diferentes da criança, mostrando a sua falta. O perigo está quando a criança fica fixada à posição de objeto materno, na alienação, não ocorrendo a possibilidade do mecanismo de separação. O fundamental é a castração materna, é esta mãe ser um ser para o sexo, cortada pelo significante Nome-do-Pai.

Lacan, ao comentar o objeto transicional de Winnicott  diz que o importante “não é que o objeto transicional preserve a autonomia da criança, mas que a criança sirva ou não de objeto transicional para a mãe”[5]. A estrutura deste objeto é “a de um condensador para o gozo na medida em que, pela regulação do prazer, ele é despojado do corpo”[6]. O “objeto transicional” da criança, como o paninho ou o ursinho, não é o representante nem da criança, nem da mãe, nem da ausência física da mãe, mas representa o significante da falta da mãe (Seminário 4: A relação de objeto), representa o objeto materno. Assim, o falo imaginário da mãe não fica colocado no corpo da criança, seu desejo não se realiza no corpo de seu filho, o que seria extremamente perigoso. O desejo materno permite que a criança possa investir nesse outro objeto. É importante que a criança também seja transicional para a mãe, que apesar de ter sido proveniente do corpo da mãe possa se tornar separada desta. 
Vivemos num momento de novas famílias. Novos arranjos acontecem, embora a família se mantém. O que mudam são os que ocupam estes lugares. Os lugares parentais podem ser ocupados por casais heterossexuais, como também por casais homossexuais como a homopaternidade e a homomaternidade. A questão da criança como sintoma dos pais, desenvolvida por Lacan no final da década de 1960, ainda vigora em nossa cultura atual, também nestas novas famílias, pois o que ele denuncia é o perigo do corpo da criança ser tomado como objeto do gozo do Outro. O importante é a sustentação da falta do objeto, isto é, permitir que o desejo singular de cada membro familiar esteja vivo. Esta é uma questão fundamentalmente ética na clínica psicanalítica de crianças, e nós psicanalistas, temos como tarefa frear o gozo parental e desvelar a verdade do desejo singular, tanto da criança como de seus “pais”, pois o desejo é o melhor remédio contra o gozo.

Maud Mannoni busca no mito familiar a causa, a origem, do sofrimento da criança. Para ela o fundamental é como a criança foi gerada, recebida pelos seus pais e conduzida para a costura de suas pulsões. Antes da criança chegar ao mundo familiar as bases edípicas já estão colocadas. O mito familiar aparece através de “certo feixe de palavras”, discurso que a criança recebe dos pais. Este feixe de palavras alimenta uma repetição sintomática, daí a tese de Mannoni sobre a importância do tratamento psicanalítico dos pais. O problema é os pais, sendo a criança apenas efeito. Durval Checchinato em seu livro Psicanálise de pais: crianças, sintomas dos pais enfatiza a análise dos pais da criança-sintoma, pois a criança responde e está alienada à demanda e desejo do Outro: “Como o filho pode querer desejar se o desejo dos pais, ou de um deles, é tão imperativo, abafador?”[7]
Mannoni, ao se referir à psicose, assinala a emissão de uma palavra mortífera que a criança se defrontou no início de sua vida, que lançou uma maldição sobre a criança. A criança se torna refém dessa palavra de seus pais, impedindo que o seu desejo surja. Assim, a análise dos pais consiste em detectar esta palavra mortífera, significante que aprisiona a criança. Ao se desembaraçar a palavra mortífera dos pais o núcleo patogênico da criança se dissipará, havendo um movimento contrário a impressão da “marca ao nível do corpo”, tendo acesso tanto a criança como os pais ao simbólico. Ocorre aí uma operação de castração, libertando o sujeito ao seu desejo próprio. 
Mannoni enfatiza a importância da análise dos pais devido ao efeito que é a criança como depositário das palavras dos pais, que aprisionam a criança em seu discurso. Por mais que se trate a criança, ela está inserida em seu contexto familiar, e se o feixe das palavras parentais não forem decifradas retornarão constantemente nos sintomas infantis. Ao descobrir o significante devastador do desejo parental, ou de um dos pais, o sintoma da criança se desfaz. 
Questão: Como praticar uma análise de criança sem a análise parental?
Não nos referimos ao acompanhamento dos pais, mas a análise dos pais.
A análise dos pais se torna fundamental e indispensável para o processo de decifração do sintoma infantil.


Bibliografia:
Checchinato, Durval. Psicanálise de pais: crianças, sintomas dos pais. R J: Cia de Freud, 2007.
Lacan, J. A relação de objeto (Seminário 4). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
Lacan, J. Alocução sobre as psicoses da criança. Outros Escritos. R J: Jorge Zahar Ed., 2003.
Lacan, J. Nota sobre a criança. Outros Escritos. R J: Jorge Zahar Ed., 2003.
Filme: Les garçons, et Guillaume, à la table (2013), direção de Guilhaume Gallienne, França/Bélgica, 2013.

Notas

[1] Lacan, J. Outros Escritos. R J: Jorge Zahar Ed., 2003, p.369.
[2] Lacan, J. Outros Escritos. R J: Jorge Zahar Ed., 2003, p.359. 
[3] Ibid., p.362.
[4] Ibid., p.366.
[5] Ibid., p.366.
[6] Ibid., p.368.
[7] Checchinato, Durval. Psicanálise de pais: crianças, sintomas dos pais. R J: Cia de Freud, 2007, p.119.

terça-feira, 24 de março de 2015

Dois lados do amor - The disappearance of Eleanor Rigby

Dois lados do amor - The disappearance of Eleanor Rigby
de Ned Benson, 2014.
Com James McAvoy  e Jessica Chastain.

Eleanor Rigby, inspiração de uma linda e triste canção dos Beatles que trata da solidão humana:
“Ah, look at all the lonely people = Ah ,olhe para todas as pessoas solitárias…”


Este filme apresenta vários temas. Entre eles o do luto não realizado. O casal se amava, mas tragicamente perdem um filho, e nada é falado. Nem o que aconteceu com o filho é divulgado, narrativa cinematográfica da beleza e do horror da tragédia silenciada. O filme mostra o calar sobre o luto e suas conseqüências. Eleanor desaparece, faz uma passagem ao ato, tentando o suicídio. O marido, Conor, também depois do incidente fatal coloca tudo sobre e do filho “dentro do armário”, desaparecimento do filho. Conor a busca, mas ela busca a solidão (lonely people). Apesar do afeto familiar a palavra pouco aparece. Simbólico apagado. Eles se amam ainda? Mais, ainda? O gozo como saída...

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Os complexos familiares em Lacan: complexos de desmame e de intrusão

            Os complexos familiares em Lacan: complexos de desmame e de intrusão
                                                                                            Rosa Jeni Matz

Texto de Lacan de 1938, Os complexos familiares na formação do indivíduo, apresenta temas pertinentes ao início da vida psíquica. Lacan apresenta o complexo do desmame, trazendo curiosas contribuições. O complexo de desmame, o mais primitivo do desenvolvimento psíquico, representa a forma primordial da imago materna (representação inconsciente mental), fixando a relação de amamentação no psiquismo, sob o modo parasitário, devido às exigências das necessidades dos primeiros meses de vida do homem, e funda os sentimentos mais arcaicos e mais estáveis que unem o indivíduo à família. É radicalmente diferente dos instintos, pois é dominado por fatores culturais, embora se aproxime dos instintos, por duas características: apresenta-se em toda espécie humana, sendo genérico; e pela lactação, representando no psiquismo uma função biológica. Mas, é a relação cultural que condiciona o desmame no homem, enquanto nos animais o instinto materno pára de agir quando o fim da amamentação é completado. Muitas vezes o desmame pode ser um trauma psíquico, gerando efeitos, como nas anorexias nervosas, nas toxicomanias pela boca, nas neuroses gástricas. Traumatizante ou não, o desmame deixa no psiquismo humano a marca da relação biológica que ele interrompe. Essa tensão vital é acompanhada por uma crise do psiquismo, a primeira cuja solução tem uma estrutura dialética. Uma tensão vital resolve-se numa intenção mental, que conduz a aceitação ou não do desmame, intenção elementar que não pode ser atribuída a um eu ainda em estado rudimentar. A aceitação ou a recusa não pode ser considerada uma escolha, pois não há ainda um eu para que haja uma afirmação ou negação, e não há contradição, pólos coexistentes e contrários determinam uma atitude ambivalente. Essa ambivalência se resolverá na continuidade do processo dialético, sofrendo destinos diversos.
É a recusa do desmame que funda o positivo do complexo, pois tende a restabelecer a imago da relação de amamentação. O conteúdo dessa imago é dado pelas sensações precoces, mas só adquire forma quando há uma organização mental posterior. Esta etapa é anterior ao advento da forma do objeto, logo estes conteúdos não podem ser representados na consciência, mas surgem como possíveis moldes das experiências psíquicas posteriores. As sensações exteroceptivas, proprioceptivas, e interoceptivas, ainda não estão (depois do décimo segundo mês) suficientemente coordenadas para que ocorra o reconhecimento do corpo próprio, como também, da idéia do que lhe é externo. Mas, algumas sensações exteroceptivas são isoladas como unidades de percepção no início da vida psíquica. São elementos de objetos que correspondem aos primeiros interesses afetivos. A reação de interesse manifestada pela criança diante do rosto humano é muito precoce, desde os primeiros dias, e antes que as coordenações motoras dos olhos estejam concluídas, sendo um fato estrutural. As psicoses reativam a máscara humana de modo inefável, trazendo o arcaísmo de sua significação.
Muito cedo a criança percebe a presença da função materna, sendo que a substituição dessa presença poderá causar danos futuros. A criança apegada ao seio adquire uma satisfação que surge como sinal da máxima plenitude com que pode se satisfazer o desejo humano. As sensações proprioceptivas da sucção e da preensão constituem a base da ambivalência do vivenciado: o ser que absorve é todo absorvido, e o complexo arcaico encontra correspondência no abraço materno. Lacan não fala aí em autoerotismo, como Freud, uma vez que o eu não está constituído, nem de narcisismo, já que não há uma imagem do eu, e nem de erotismo oral, pois a nostalgia do seio nutriente, equívoco da escola psicanalítica, só decorre do complexo de desmame após o seu remanejamento pelo complexo de Édipo. A relação com a realidade em que se baseia a imago materna é de “canibalismo”, canibalismo fusional, inefável, simultaneamente ativo e passivo, sobrevivendo nos jogos e palavras simbólicas, que no mais evoluído amor, recordam “o desejo de larva”.
Essa base não pode ser desligada do caos das sensações interoceptivas de que emerge. A angústia, cujo protótipo surge na asfixia do nascimento, o frio ligado à nudez dos tegumentos, e o “mal-estar labiríntico” para o qual corresponde a satisfação de ser embalado (o acalanto), organizam nesta tríade o tom penoso da vida orgânica, que domina os seis primeiros meses de vida humana, sendo que todos estes mal-estares têm a mesma causa: uma “adaptação” insuficiente à ruptura das condições de ambiente e alimento da vida parasitária intra-uterina.
Devido a dados da fisiologia e da realidade anatômica da não-mielinização dos centros nervosos superiores do recém-nascido (mielinização=formação da baínha mielínica dos nervos durante os primeiros tempos de vida) é impossível fazer do nascimento um trauma psíquico, como alguns psicanalistas afirmam. O atraso na dentição e na marcha, como também na maioria dos aparelhos e funções, determina na criança uma impotência vital total que perdura além dos dois primeiros anos, caráter de exceção em relação aos animais, sendo o homem, então, um animal de nascimento prematuro.
A imago do seio materno domina toda a vida humana. No aleitamento, no abraço e na contemplação da criança, a mãe recebe e satisfaz o mais primitivo de todos os desejos. E, a tolerância da dor do parto pode ser compreendida como uma compensação representativa do primeiro dos fenômenos afetivos a surgir: “a angústia que nasce com a vida”.
Lacan afirma: “Somente a imago que imprime nas profundezas do psiquismo o desmame congênito do homem é capaz de explicar a potência, a riqueza e a duração do sentimento materno. A realização dessa imago na consciência assegura à mulher uma satisfação psíquica privilegiada, enquanto seus efeitos na conduta da mãe poupam a criança do abandono que lhe seria fatal”.
A imago materna é de difícil sublimação, mas deve ser sublimada para que novas relações se introduzam com o grupo social, e se isto não ocorrer, o que é salutar na origem se torna fator de morte. A tendência à morte é vivida pelo homem como objeto de um apetite. Mas, Lacan assinala que Freud a tentou explicar através de uma contradição em seus termos, instinto de morte, cedendo ao preconceito do biólogo, que relaciona tendência a instinto. Lacan diz que a tendência para a morte, que especifica o psiquismo humano, se explica pela razão de que o complexo, unidade funcional do psiquismo, não corresponde a funções vitais, mas à insuficiência congênita dessas funções vitais. Essa tendência psíquica para a morte, sob a forma dada pelo desmame, revela-se nos suicídios “não violentos”, evidenciando a forma oral do complexo: “a greve de fome da anorexia nervosa, o envenenamento lento de certas toxicomanias pela boca, o regime de fome das neuroses gástricas”. A análises desses casos mostra, que em seu abandono à morte, há uma busca do sujeito para o reencontro da imago da mãe.
O abandono das garantias da economia familiar repete o desmame, e somente nesta ocasião, muitas vezes, que o complexo é liquidado. Hegel afirma que o indivíduo que não luta pelo seu reconhecimento fora do grupo familiar nunca atinge a personalidade antes da morte. “A saturação do complexo funda o sentimento materno; sua sublimação contribui para o sentimento familiar”; sua liquidação deixa vestígios para o reconhecimento da imago materna. A sua forma abstrata poderia ser definida como “uma assimilação perfeita da totalidade do ser”, fórmula “meio filosófica” que faz aparecer as nostalgias da humanidade: “a miragem metafísica da harmonia universal, o abismo místico da fusão afetiva, a utopia social de uma tutela totalitária”.
O segundo complexo apresentado no texto é o complexo de intrusão que representa a experiência que a criança realiza quando se reconhece entre irmãos. As condições dessa experiência são variáveis conforme as culturas, extensão do grupo familiar, e conforme o lugar que o acaso confere ao sujeito na ordem de nascimento: a de abastado ou a de usurpador. O ciúme (jalousie) infantil é observado neste período, e Lacan se remete à citação de Santo Agostinho: “Vi com meus próprios olhos, e observei bem um menino tomado de ciúme: ele ainda não falava, mas não conseguia desviar os olhos, sem empalidecer, do amargo espetáculo de seu irmão de leite” (Confissões, I, VII). A estrutura do ciúme infantil esclarece seu papel na gênese da sociabilidade, e do conhecimento humano. O ciúme representa não uma rivalidade vital, mas uma identificação mental. Em crianças entre seis meses e dois anos, confrontados aos pares e sem terceiros, há uma comunicação, que parece reações de rivalidade, como adaptações de posturas e gestos, ocorrendo conformidade em sua alternância, como provocações e respostas, onde se esboça o reconhecimento de um rival, de um “outro” como objeto. Essa reação, que pode parecer precoce, é determinada por uma condição dominante, um limite que não pode ser ultrapassado na distância etária entre os sujeitos, distância de dois meses e meio no primeiro ano do período considerado, e permanece estrito ao se ampliar. As reações mais freqüentes são as da exibição, da sedução e do despotismo. O que se observa não é um conflito entre dois indivíduos, mas um conflito entre duas atitudes opostas e complementares. Cada parceiro confunde a pátria do outro com a sua e se identifica com o outro. Nesse estágio a identificação específica é baseada num sentimento do outro como imaginário. A imagem do outro aí está ligada à estrutura do corpo próprio.
Na situação fraterna primitiva a agressividade se mostra secundária à identificação. A amamentação é para a criança uma neutralização temporária das condições de luta pelo alimento, opondo-se Lacan à idéia darwiniana de que a luta está na origem da vida. O aparecimento do ciúme relacionado com a amamentação, apresentado pela citação de Santo Agostinho, dever ser interpretado prudentemente, pois esta cena pode se apresentar ao sujeito desmamado há muito tempo que não concorre com o irmão, sendo que este fenômeno exige uma identificação com o estado do irmão. Em outros trabalhos, Lacan se refere a esta cena como uma imagem de completude, onde o sujeito que a observa se vê excluído, uma visão totalizante, imaginária, onde o sujeito já esteve neste lugar. A agressividade se sustenta então numa identificação com o outro que é objeto da violência (a agressividade não é primária, é secundária).
Lacan aponta no mal-estar do desmame humano, a origem do desejo de morte, sendo que o masoquismo primário é o momento dialético em que o sujeito assume, por seus primeiros atos lúdicos, a reprodução desse mal-estar, e assim o sublima e o supera (jogo do fort-da de Freud). O sujeito inflige a si mesmo o desmame que sofreu, só que agora triunfa sobre ele, sendo ativo em sua reprodução. A identificação com o irmão fornece a imagem que fixa um dos pólos do masoquismo primário, gerando a violência imaginária do assassinato do irmão, não tendo relação com a luta pela vida. A saída masoquista se situa no ponto de junção entre o imaginário e o simbólico. Freud isolou este masoquismo num jogo de infância, numa criança de dezoito meses. O objeto escolhido, chocalho ou dejeto, ou o carretel em Freud é abolido com prazer, consumando a perda do objeto materno. A imagem do irmão não desmamado só desperta uma agressão por repetir no sujeito a imago da situação materna e com ela o desejo da morte.
A identificação aí citada se refere ao estádio do espelho, que corresponde ao declínio do desmame, ao fim dos seis meses, cuja dominante psíquica é de mal-estar devido ao atraso do crescimento físico, pela prematuração do nascimento, que é a base específica do desmame no homem. O reconhecimento pelo sujeito de sua imagem no espelho é um fenômeno significativo, surge depois dos seis meses e demonstra a realidade desse sujeito, seu valor afetivo é ilusório, quanto a sua imagem, e sua estrutura é o reflexo da forma humana. A percepção da forma do semelhante como unidade mental está ligada a um nível de sociabilidade e inteligência. Neste estágio a discordância tanto das pulsões e das funções é ainda a continuação prolongada da descoordenação dos aparelhos. Daí resulta uma fase que afetiva e mentalmente constitui-se com base numa proprioceptividade que apresenta o corpo como despedaçado, visando uma recolocação do corpo próprio, e a realidade inicialmente submetida a um despedaçamento perceptivo ordena-se refletindo as formas do corpo, que fornecem o modelo de todos os objetos. Há aí uma estrutura arcaica do mundo humano que surge através da análise do inconsciente humano, como as fantasias de desmembramento, de desarticulação do corpo, da imagem do duplo. O restabelecimento da imagem perdida de si mesmo instala-se desde a origem no centro da consciência. É a origem da energia do progresso mental, predominando as funções visuais. A busca da unidade afetiva promove as formas em que o sujeito representa a sua identidade para si mesmo, sendo que a forma mais intuitiva é dada pela imagem especular. O sujeito saúda a unidade mental, reconhece nela o ideal da imago do duplo, e aclama a vitória da imagem salutar. O mundo próprio dessa fase é narcísico, não apenas pelo sentido atribuído por Freud e Abraham, do investimento enérgico da libido no corpo, mas também, como uma estrutura mental que inclui o mito de Narciso, que indica a morte, como insuficiência vital para quem veio a esse mundo; surge a reflexão especular, a imago do duplo central, e a ilusão da imagem, indicando que este mundo não contém o outro.
A percepção da atividade de outrem não é bastante para romper o isolamento afetivo do sujeito. A imagem do semelhante desempenha apenas um papel primário, limitado à função de expressividade, ela desencadeia no sujeito emoções e posturas similares, permitida pela estrutura atual de seus aparelhos. O sujeito ao se sofrer essa sugestão motora ou emocional não se distingue da imagem em si, a imagem só acrescenta a intromissão temporária de uma imagem estrangeira, chamada de intrusão narcísica, que, no entanto, contribuirá pela unidade introduzida pelas tendências na formação do eu. Mas, antes que o eu afirme a sua identidade, ele se confunde com essa imagem que o forma, mas que o aliena. Aí se dá a estrutura ambígua do espetáculo, através de situações de despotismo, sedução e exibição, dando forma às pulsões sadomasoquista e escopofílicas (desejo de ver e ser visto), que são destruidoras do outro. Essa intrusão primordial permite compreender a projeção do eu constituído, que se manifesta como mitomaníaca (tendência mórbida para a mentira), na criança cuja identificação pessoal ainda vacila; transitivista, no paranóico cujo eu regride a um estágio arcaico; e compreensiva, quando é integrada num eu normal.
O eu se constitui junto com o outro no drama do ciúme. Esta é uma discordância que intervém na satisfação espetacular. Implica a introdução de um objeto terceiro, que irá substituir a confusão afetiva e a ambigüidade espetacular pela concorrência de uma situação triangular. O sujeito que enveredou pelo ciúme por identificação, desemboca numa nova alternativa onde é jogado o destino da realidade. Ou ele reencontra o objeto materno e se prende à recusa do real e à destruição do outro, ou é levado a algum outro objeto, acolhe-o sob a forma de conhecimento humano como objeto comunicável, já que a concorrência implica em rivalidade e concordância, reconhecendo o outro com quem trava a luta ou firma o contrato, encontrando o outro e o objeto socializado. O ciúme humano se distingue da rivalidade vital imediata, revelando-se o arquétipo dos sentimentos sociais.
O eu não encontra antes dos três anos a sua constituição essencial.
Os traços essenciais do complexo fraterno são: o papel traumatizante do irmão que se constitui por intrusão, o fato e a época do seu aparecimento determinam a sua significação para o sujeito, a intrusão parte do recém-chegado e infesta o ocupante, sendo que o primogênito desempenha em princípio o papel de paciente. A reação do paciente ao trauma depende do seu desenvolvimento psíquico. Surpreendido pelo intruso no desarvoramento (desorientação) do desmame, o paciente o reativa sem parar ante o espetáculo deste, faz uma regressão, que de acordo com os destinos do eu, pode se revelar uma psicose esquizofrênica ou uma neurose hipocondríaca, ou então, reage pela destruição imaginária do monstro, resultando em impulsos perversos ou numa culpa obsessiva.
Mas, se o intruso sobrevier apenas após o complexo de Édipo, será adotado no plano das identificações parentais, não sendo para o sujeito obstáculo ou o reflexo, mas uma pessoa digna de amor e de ódio. As pulsões agressivas se sublimarão como ternura ou severidade.

O irmão também pode proporcionar o modelo arcaico do eu. O papel do agente cabe aqui ao primogênito, e quanto mais conforme for este modelo ao conjunto das pulsões do sujeito, mais feliz será a síntese do eu. É através do semelhante que o objeto, como também o eu se realiza, quanto mais pode assimilar de seu parceiro, melhor será a sua eficácia futura. Mas, também, o grupo de fratria familiar pode favorecer as mais discordantes identificações do eu. A paranóia manifesta temas de filiação, usurpação e espoliação, sendo que através da estrutura narcísica, temas paranóides de intrusão, do duplo, e transformações delirantes do corpo são revelados. O grupo familiar, reduzido à mãe e a fratria, desenha um complexo psíquico em que a realidade é imaginária, possibilitando eclosões de psicoses, de delírio a dois. Assim, torna-se essencial a introdução do terceiro para a constituição do sujeito em suas relações sociais. 

Bibliografia:
Lacan, J. Os complexos familiares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Cadeia significante e outros conceitos

Cadeia significante: o significante é um elemento diferencial último. Enquanto para Saussure o signo é composto por uma unidade de significante e significado, Lacan rompe essa unidade, ligando os significantes uns com os outros. O lugar do significante é sua relação com outros significantes, vinculados numa cadeia significante.
As leis que determinam a combinatória de significantes são as leis da linguagem, através dos processos metafóricos e metonímicos, apresentados por Jakobson. Lacan aproxima os conceitos freudianos de condensação à metáfora e o de deslocamento à metonímia.

A metáfora é constituída por uma substituição significante, acarretando um efeito inesperado de sentido.
Metáfora Paterna: É a simbolização primordial da Lei, efetuada na substituição do significante do desejo da mãe pelo significante Nome-do-Pai. O advento do sujeito implica uma operação inaugural de linguagem, esforço simbólico, onde a criança renuncia ao objeto fálico; sendo que o significante do desejo da mãe é recalcado.
A metonímia alude à relação de contigüidade: barco, vela... De palavra a palavra...
O desejo é a metonímia de uma falta. O objeto perdido insiste em deslizar na cadeia significante, e este deslizamento metonímico vai se constituindo nos intervalos do deslocamento de um significante a outro enganando a censura.

Outro (Autre) é um lugar, onde se organizam elementos significantes que articulam o inconsciente, marcando a determinação simbólica do sujeito (ordem simbólica).
Lacan afirma que o pai é no Outro, o significante que representa o lugar da cadeia significante como Lei.
O outro se refere ao semelhante, ao próximo (a mãe), da relação especular no imaginário.

Em Freud: a realidade divide-se em uma realidade psíquica e uma realidade material/externa, sendo a primeira mais determinante que a segunda. A realidade psíquica é constituída por fantasias e desejos.
Em Lacan pela fórmula da fantasia podemos nos aproximar da realidade de um sujeito. 
Real – escapa à simbolização, fora do sentido (non-sense).

Objeto a
    – objeto perdido devido à divisão do sujeito. Objeto causa do desejo que engendra a “eternização” do desejo pelo deslocamento de um significante a outro significante.
- objeto parcial da pulsão (seio, fezes, olhar e voz), substituindo o objeto da falta.
 - resto caído da concatenação significante
       - gozo, mais-valia é mais-de-gozar para o Outro.


Referências bibliográficas:
Matz, R. O conceito de Identificação em Jacques Lacan (blog Jardim Lacaniano) 
Vallejo e Magalhães. Lacan: operadores de leitura. SP: Perspectiva, 1991

                                                                  

                                                                    

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Reflexões sobre dinheiro e psicanálise.

Reflexões sobre dinheiro e psicanálise.
Comentários a partir de Freud e do texto “Capital e libido” de Antonio Quinet.

                                                                                               Rosa Jeni Matz

Aproximei o tema “dinheiro e psicanálise” aos 2 registros lacanianos: Simbólico e Real, detendo-me no registro do Real, pois é onde se encontra a questão do dinheiro, da libido como gozo, e a psicanálise na contemporaneidade.
Para Freud na Metapsicologia a libido é energia, grandeza quantitativa das pulsões.
Quinet parte do conceito de pulsão, constituída pelo significante (representante da representação) e libido. O significante é cifrado no inconsciente, sendo que a libido, parte quantitativa da pulsão, não tem representação no inconsciente. O dinheiro se situa com um pé no ciframento/deciframento (cifra/representação) e outro pé na energia quantificável (libido/satisfação). A pulsão situada como conceito limítrofe entre o somático (Real) e o psíquico (Simbólico).
Millet em seu livro Silet afirma que Lacan fez três reescrituras do conceito freudiano de libido em sua obra. No primeiro momento situou a libido no registro do Imaginário em relação ao narcisismo. No segundo momento fez da libido desejo no registro do Simbólico, conduzindo a equivalência entre desejo e deslizamento metonímico. Na terceira reescritura Lacan dá conta da libido no registro do Real como gozo indo contra o princípio do prazer.
A entrada do sujeito na cultura insere o dinheiro como Simbólico, fazendo-o existir em função da linguagem, como troca de objetos marcados pela simbolização Em Freud o dinheiro faz parte da série de equivalências simbólicas formada pelos objetos marcados pela castração: seio, pênis, excremento, dinheiro, criança, presente, etc.
O dinheiro vinculado ao desejo aponta para a falta, falta a ser, deslizando pelos intervalos da cadeia significante, como metonímia da falta.
Freud em seu trabalho “O início do tratamento” diz que poderosos fatores sexuais acham-se envolvidos no valor dado ao dinheiro pelo analisante. O fator sexual é da ordem da pulsão. Podemos pensar que sendo o sujeito singular, cada um lida com a questão do dinheiro num modo próprio. Freud relacionou dinheiro e fase anal, e Lacan à demanda do Outro, onde a mãe demanda ao filho suas fezes, este podendo reter ou ofertar, ambos num processo de demanda incondicional de amor. O objeto a, as fezes, é um objeto cedível.
Para Quinet o gozo é o conceito que Lacan propõe para abranger os conceitos freudianos de libido e satisfação, e o dinheiro no registro do Real aponta a libido como gozo.
O dinheiro na análise se encontra em conjunção entre os significantes da pulsão recalcados e cifrados no inconsciente, e a energia quantificável denominada por Freud de libido. Logo, o dinheiro com um pé no Simbólico e outro no Real.
Os significantes podem equivaler à própria cifra no inconsciente, e o “cifrão” representa o montante das operações libidinais.
O sintoma que pode ser decifrado é da ordem da linguagem, sendo que a libido é o que se satisfaz no sintoma, resistindo ao deciframento e dificultando o abandono do sintoma pelo sujeito.
Quinet questiona: se o sintoma é um cômodo investimento do sujeito por que ele busca a análise?
Pode-se pensar a constituição da demanda para a análise em 3 tempos:
Primeiro tempo: o preço que o sujeito paga pelo seu sintoma é caro, bem elevado! Quando a formação de compromisso do sintoma se rompe, o benefício secundário se desfaz, e o Real surge, superando a satisfação produzida pelo sintoma. O sujeito pode buscar a análise, ou não, pode buscar outros meios para compensar o desequilíbrio, como uma viagem, compras etc.
Segundo tempo: o sujeito quer decifrar o seu sintoma, quer saber de seu sintoma. Há uma questão no seu sintoma que precisa ser decifrada, procurando decifrar a sua posição de assujeitamento ao desejo do Outro que é a alienação. A alienação é o primeiro momento no processo de constituição da subjetividade, sendo que o segundo momento é o da separação.
Situa o sujeito no início da análise nos 3 registros do campo lacaniano:
No Imaginário: amor de transferência – a reciprocidade de amar e ser amado, o analisante “ama” e se sente considerado pelo analista em seu sofrimento.
No Simbólico: é a entrada do sujeito na cadeia significante pela associação livre, o analista sendo o Outro para onde o sujeito endereça, envia seus significantes.
No Real: remanejamento da libido como transferência do gozo, transferência do preço pago com o sintoma para os custos (preço) da análise, esvaziamento do bolso através de privações, sacrifícios etc. O sujeito fabrica um objeto que se chama analista, que se paga para desfrutar. O analista “se vende” como objeto que é de início contabilizado: tanto por sessão. O analista é um objeto investido libidinalmente que se amoeda com o dinheiro. É um objeto de “aluguel”, não podendo permitir a economia, que é economia de gozo que se representa pelo dinheiro, e que se expressa pela retenção, que infringe a regra da associação livre, que é contra qualquer retenção. O gozo do dinheiro é a libidinização do capital no ser falante.
“Só há uma maneira de fazer análise: investindo tudo”.
 Para Quinet a despesa de dinheiro acompanha a despesa de libido que é um esvaziamento de gozo, hemorragia inicial de gozo do sintoma simultaneamente à transferência para o analista. A transferência em análise é de significante e de capital da libido, gozo. 
O analista ao cobrar, o preço da sessão, transforma a ordem do destino em objeto de troca. Trata o Real pelo Simbólico. Na análise o sujeito presta conta de seus “crimes”, de sua “verdade”, e paga com dinheiro, movimentando a dívida simbólica, dívida que o sujeito paga pela entrada no simbólico renunciando ao gozo.
O preço cobrado tem como função amortecer algo de infinitamente mais perigoso do que pagar em dinheiro, que consiste em dever algo a alguém.
Diz que o analista não está na análise por amor, por sacrifício ou por ideal, ou para gozar das histórias dos analisantes. Para além do amor de transferência está o cerne do amor: a questão “o que sou como objeto para Outro?”, onde o analista é colocado no lugar do Outro que pode gozar do sujeito ao torná-lo objeto. Fazer o analisante pagar é o analista mostrar que não se interessa pelo analisante como objeto, e sim como sujeito, e que pode adquirir outros objetos com o dinheiro pago pelo analisante.
O dinheiro é o significante mais aniquilador de significação, contrabalança a responsabilidade do analista que recebe os segredos do analisante. O dinheiro, como significante, esvazia os sentidos imaginários.
O analista é depositário das palavras, letras, “cartas” do analisante, e é constituído como um cofre precioso, a agalma de Sócrates, que contém males e bens do analisante. Mas, o analista também paga nos 3 registros:
No Simbólico através da interpretação. No Imaginário com a sua pessoa, apagando o seu eu. No Real, como o seu ser, no faz de conta de ser o objeto a, anulando-se como sujeito.
Quinet desenvolve a questão do dar: o analisante através do amor de transferência demanda amor. Demanda que precisa ser recusada para que surja o desejo que desliza nos intervalos da cadeia significante. Lacan afirma que amar é dar o que não se tem. Dar nada? Não, na questão do dinheiro o analista faz o analisante pagar bem. O analista como o Outro do amor para quem o analisante endereça a sua demanda se torna valioso, pois o analisante supõe que ele detém este objeto precioso, a agalma, objeto causa de desejo. Por este objeto valioso o analisante paga bem.
A prática do contrabando aparece através da obsessionalização do pagamento. O obsessivo e o seu desejo tenta driblar o Outro, negociando preço com recibo ou preço sem recibo.
Na análise, diz Quinet, há um recibo.
Cada analista, através da sua escuta, sua práxis, sua linha teórica, vai “receber” o dizer do analisante e irá significá-lo: o sujeito é responsável pelo seu dizer. O que foi dito está dito! O recibo do analista pode ser uma pontuação, o próprio corte da sessão, onde ele significa ter recebido o que o analisante depositou. O recibo vem antes do gesto do pagamento.


Bibliografia

Freud, S. Sobre o início do tratamento (1913). In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969.
Miller, Jacques-Alain. Silet: os paradoxos da pulsão de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
Quinet, Antonio. As 4+1 condições de análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.



sexta-feira, 4 de abril de 2014

Não ceder sobre o seu desejo (“ne pas céder sur son désir”).

Não ceder sobre o seu desejo (“ne pas céder sur son désir”).
                                                                         Rosa Jeni Matz

No último capítulo do Seminário 7, A ética da psicanálise, Lacan desenvolve o aforismo “não ceder sobre o seu desejo”. Em resumo é não cobrir a falta do desejo pelo gozo, não ceder o desejo ao gozo, não permitir o gozo cobrir (sobre) o desejo. O gozo instrumentado pelo perverso, ou algo ou alguém que goza do sujeito, gozo do Outro.
Encontramos na tradução brasileira: “ceder de seu desejo” (lugar, posição, do desejo), p. 382.
Para Lacan ceder sobre o desejo é acompanhada no destino do sujeito por uma traição. Ou o sujeito se trai, trai o seu caminho, ou alguém a quem se dedicou o trai, logo alguém goza dele, rompe o pacto. O sujeito cede sobre o que deseja, renuncia a sua perspectiva de vida.
Lacan comenta que a ética de Aristóteles seria uma ética do mundo dos bens, diferente da ética da psicanálise que permite o surgimento do sujeito. Como Freud formulou: “Wo es war, soll Ich werden”, e que Lacan traduz como “Là où est le ça, il faut que le je advienne” (o Eu deve advir lá onde isso estava). A ética da psicanálise se situaria no simbólico, da Lei, da responsabilidade do sujeito com a sua fala, em torno do advir do sujeito, que atende à “lei”: “Ne céder pas sur son désir”.
Lacan também formula: “A única coisa da qual se pode ser culpado é de ter cedido de seu desejo”. (p.385)
Aproxima Lei, desejo e culpa. A noção de desejo está associada à Lei. A Lei, interditora do incesto, da castração, barra o desejo incestuoso, onde o objeto se torna para sempre perdido.
Lacan diz que quando o sujeito apresenta culpa é que na raiz cede sobre o seu desejo. Podemos pensar que ele abre mão do seu desejo, daquilo que seria a metonímia do seu ser, a sua essência, em busca do gozo, se desculpa, se acovarda, por “um bom motivo”, em nome de um bem, ou bens do outro. Para Lacan o desejo suporta o tema inconsciente, a raiz de um destino particular, onde a dívida simbólica precisa ser paga.
Em Freud a culpa é resultado da censura que o superego impõe ao ego. Já em Lacan a lei do supergo é perversa: Goze! Vc. deve gozar!. Lacan situa a culpa em outra via, a via da lei e do desejo, da ética do sujeito responsável pelo seu desejo, pela sua fala, pela linguagem; e onde ele é culpado ao ceder sobre a questão do seu desejo. É a responsabilidade do caminho que cada um traça em sua vida, a singularidade do sujeito.
Como diz Lacan sobre a tragédia, e também sobre Antígona: “...o acesso ao desejo necessita ultrapassar não apenas todo temor, mas toda piedade, que a voz do herói não treme diante de nada, e muito especialmente diante do bem do outro...”
“Mesmo para aquele que avança ao extremo de seu desejo, nem tudo são flores”.
É isso aí!

Referência bibliográfica:
Lacan, J. A ética da psicanálise. RJ: Jorge Zahar Ed, 1991.

                                                                        

                                                                                    

A ética do desejo

A ética do desejo
                                  Rosa Jeni Matz

            A ética em psicanálise traz a questão da responsabilidade do sujeito pelo seu desejo.

        Em Totem e Tabu, mito da horda primeva, Freud elabora a fundação da cultura através do ato criminoso do assassinato do pai da horda, e do devoramento deste pai despótico pelos filhos. No lugar de uma lei tirânica, onipotente do pai, surge um acordo entre os irmãos culpados, criando-se a lei simbólica, à qual todos estão assujeitados. Esta lei se refere ao pai morto, constituindo a dívida simbólica. Portanto, a lei e o desejo se enlaçam num liame trágico. O desejo incestuoso é barrado pela lei, tornando-se falta, falta a ser. O desejo é o movimento de busca de reencontro do objeto perdido, mas como o objeto é para sempre perdido, o encontro é faltoso. A lei estrutura o desejo humano, impedindo a realização do incesto. A ética do desejo é uma ética de responsabilidade, implicando que o sujeito não ceda de seu desejo frente ao gozo, desejo que o humaniza, o essencializa, tornando-o humano, protegendo-o do gozo, que seria um excesso, ultrapassagem da barreira da lei.

        Enquanto que para Aristóteles a eudaimonia poderia ser atingida pelo conhecimento do Bem, para a psicanálise este Bem (das Ding) se perdeu. A felicidade (bonheur) seria uma questão de sorte, numa boa hora o sujeito pode ter um bom encontro com o real. Mas, o sujeito teve um trágico encontro com o real. O trauma é este trágico encontro, encontro marcado.
        A sublimação seria a possibilidade que a civilização oferece de manifestação de alguma coisa diferente da sintomatologia do mal-estar. Das Ding, a Coisa, nunca é possuída ou representada, é sempre perdida e repetida em nossas vidas. Lacan define a sublimação como “a elevação de um objeto à dignidade da Coisa”. A sublimação não representa essa Coisa perdida, ela recria o vazio (vide) deixado por essa perda, estruturalmente irrepresentável para o sujeito. Mediante a recriação a perda do objeto descobriria outro destino diferente da angústia, da neurose.


 Bibliografia
 França, M.I. Psicanálise, estética e ética do desejo. São Paulo: Perspectiva, 1997.
 Lacan, J. A ética da psicanálise. RJ: Jorge Zahar, 1988.
 Rajchman, J. Eros e verdade: Lacan, Foucault e a questão da ética. RJ: Jorge Zahar, 1993.