quinta-feira, 23 de novembro de 2017

A função fraterna na infância e na adolescência em momentos de violência

A função fraterna na infância e na adolescência em momentos de violência
                                                                                      Rosa Jeni Matz

Este trabalho parte de um filme A viagem de Fanny sobre um fato real ocorrido na Segunda Guerra Mundial, que mostra como um grupo de crianças responde à violência da guerra, e pretende fazer um contraste entre as respostas das crianças e adolescentes na contemporaneidade.
Filme: A viagem de Fanny – Le Voyage de Fanny
Fanny (Léonie Souchaud) tem 12 anos, é judia, e se esconde numa casa de acolhimento distante de seus pais junto com as duas irmãs mais novas durante a Segunda Guerra Mundial. Forçada a fugir rapidamente do esconderijo devido a invasão nazista, torna-se líder de um grupo de crianças, que viajam num caminho perigoso pela França ocupada para a Suíça. De início, as crianças são acompanhadas de uma senhora, mas devido às pressões e de imprevistos da ocupação nazista, o grupo prossegue a viagem sem a presença de um adulto, tendo que Fanny se tornar a guia deste percurso, e prematuramente escolher, decidir, cuidar, proteger.
Apesar da tensão devido o perigo da guerra as crianças são crianças.  As crianças menores fantasiam os nazistas como “monstros”, todas brincam com alegria e espontaneidade num riacho e numa cabana que se tornam palcos de fantasias, e através do brincar transformam o ambiente hostil em ambiente alegre e criativo. Alguns habitantes da região, em diferentes ocasiões, as auxiliam na fuga, retratando o valor da solidariedade e da amizade.
Questões: é possível pensar o exercício da função fraterna sem a sustentação da função paterna? Como encontrar vias para lidar com a queda do simbólico, da função fraterna, no momento atual?
O filme aborda a função paterna e a função fraterna. Neste momento de guerra e violência Fanny sustenta uma função paterna, que possibilita uma organização fraterna.
Joel Dor, em seu livro “O pai e sua função em psicanálise” (1) afirma que “a noção de pai intervém no campo conceitual da psicanálise como um operador simbólico a-histórico” (2). Mas, ao ficar fora da história, ele está “paradoxalmente inscrito no ponto de origem de toda história” (3), uma história mítica, mito necessário e universal. A noção de pai em psicanálise também não se refere “exclusivamente à existência de algum pai encarnado” (4), nada garante que a encarnação corresponda à consistência de um pai investido de legítimo poder estruturante do inconsciente. Não se trata de um ser encarnado, mas de “uma entidade essencialmente simbólica que ordena uma função” (5). Pela sua característica universal, o seu caráter é operante e estruturante, para qualquer sexo que a ele se refere. É Lei universal, é Linguagem. Sendo este pai simbólico universal, somos tocados pela sua função, que nos estrutura como “sujeitos”. Questiona: Sob que insígnias se alojam os pais encarnados, os pais que empiricamente são colocados em situação de se designarem pais? Responde: aparecem no máximo como diplomatas, e embaixadores comuns. O embaixador representa o seu governo junto ao estrangeiro, e o pai, “no real de sua encarnação” (6), deve representar o governo do pai simbólico, assumindo a delegação desta autoridade junto à “comunidade estrangeira mãe-filho” (7).
Em termos da carência paterna, pode-se afirmar que “a função paterna conserva a sua virtude simbólica inauguralmente estruturante na própria ausência de todo Pai real” (8). A função do Pai simbólico é exterior ao Pai real, sendo a função simbólica, a pedra angular da problemática paterna na psicanálise.
No texto Os complexos familiares na formação do indivíduo, de 1938, Lacan apresenta dois complexos fundamentais que se apresentam no início da vida psíquica da criança. De início, o complexo do desmame, o mais primitivo do desenvolvimento psíquico, representando a forma primordial da imago materna (representação inconsciente mental), que fixa a relação de amamentação no psiquismo e suas derivações.
O segundo complexo é o complexo de intrusão que representa a experiência que a criança realiza quando se reconhece entre irmãos. As condições dessa experiência são variáveis conforme as culturas, extensão do grupo familiar, e conforme o lugar que o acaso confere ao sujeito na ordem de nascimento: a de abastado ou a de usurpador. O ciúme (jalousie) infantil é observado neste período, e Lacan se remete à citação de Santo Agostinho: “Vi com meus próprios olhos, e observei bem um menino tomado de ciúme: ele ainda não falava, mas não conseguia desviar os olhos, sem empalidecer, do amargo espetáculo de seu irmão de leite” (Confissões, I, VII). A estrutura do ciúme infantil esclarece seu papel na gênese da sociabilidade, e do conhecimento humano. O ciúme representa não uma rivalidade vital, mas uma identificação mental. Em crianças entre seis meses e dois anos, confrontados aos pares e sem terceiros, há uma comunicação, que parece reações de rivalidade, como adaptações de posturas e gestos, ocorrendo conformidade em sua alternância, como provocações e respostas, onde se esboça o reconhecimento de um rival, de um “outro” como objeto. Essa reação, que pode parecer precoce, é determinada por uma condição dominante, um limite que não pode ser ultrapassado na distância etária entre os sujeitos, distância de dois meses e meio no primeiro ano do período considerado, e permanece estrito ao se ampliar. As reações mais frequentes são as da exibição, da sedução e do despotismo. O que se observa não é um conflito entre dois indivíduos, mas um conflito entre duas atitudes opostas e complementares. Cada parceiro confunde a pátria do outro com a sua e se identifica com o outro. Nesse estágio a identificação específica é baseada num sentimento do outro como imaginário. A imagem do outro aí está ligada à estrutura do corpo próprio.
Na situação fraterna primitiva a agressividade se mostra secundária à identificação. A amamentação é para a criança uma neutralização temporária das condições de luta pelo alimento, opondo-se Lacan à ideia darwiniana de que a luta está na origem da vida. O aparecimento do ciúme relacionado com a amamentação, apresentado pela citação de Santo Agostinho, dever ser interpretado prudentemente, pois esta cena pode se apresentar ao sujeito desmamado há muito tempo que não concorre com o irmão, sendo que este fenômeno exige uma identificação com o estado do irmão. Em outros trabalhos, Lacan se refere a esta cena como uma imagem de completude, onde o sujeito que a observa se vê excluído, uma visão totalizante, imaginária, onde o sujeito já esteve neste lugar. A agressividade se sustenta então numa identificação com o outro que é objeto da violência (a agressividade não é primária, é secundária).
Podemos encontrar expressão de agressividade em diversas cenas sociais. Esta identificação onde uma criança se percebe usurpada por outra criança abastada, e excluída desta imagem completa, acontece a todo momento em nossa sociedade através da luta de classes. Uma criança sem recursos econômicos, que olha através de uma vitrine de brinquedos o outro abastado de posse com o brinquedo que quer possuir, revive a todo momento em outras situações esta cena de completude imaginária.
O eu se constitui junto com o outro no drama do ciúme. A introdução de um terceiro irá substituir a confusão afetiva e a ambiguidade pela concorrência de uma situação triangular. O sujeito que enveredou pelo ciúme por identificação, desemboca numa nova alternativa onde é jogado o seu destino. Ou ele reencontra o objeto materno e se prende à recusa do real e à destruição do outro, ou é levado a algum outro objeto, acolhe-o sob a forma de conhecimento humano, como objeto comunicável. A concorrência implica em rivalidade ou concordância, sendo que aí é possível reconhecer o outro com quem trava a luta e firmar o contrato. O ciúme humano se distingue da rivalidade vital imediata, revelando-se o arquétipo dos sentimentos sociais.
Os traços essenciais do complexo fraterno são: o papel traumatizante do irmão que se constitui por intrusão, o fato e a época do seu aparecimento determinam a sua significação para o sujeito, a intrusão parte do recém-chegado e infesta o ocupante, sendo que o primogênito desempenha em princípio o papel de paciente. A reação do paciente ao trauma depende do seu desenvolvimento psíquico. Surpreendido pelo intruso no desarvoramento (desorientação) do desmame, o paciente o reativa sem parar ante o espetáculo deste, faz uma regressão, que de acordo com os destinos do eu, pode se revelar uma psicose esquizofrênica ou uma neurose hipocondríaca, ou então, reage pela destruição imaginária do monstro, resultando em impulsos perversos ou numa culpa obsessiva.
Mas, se o intruso sobrevier apenas após o complexo de Édipo, será adotado no plano das identificações parentais, não sendo para o sujeito obstáculo ou o reflexo, mas uma pessoa digna de amor e de ódio. As pulsões agressivas se sublimarão como ternura ou severidade.
O irmão também pode proporcionar o modelo arcaico do eu. O papel do agente cabe aqui ao primogênito, e quanto mais conforme for este modelo ao conjunto das pulsões do sujeito, mais feliz será a síntese do eu. É através do semelhante que o objeto, como também o eu se realiza, quanto mais pode assimilar de seu parceiro, melhor será a sua eficácia futura. Mas, também, o grupo de fratria familiar pode favorecer as mais discordantes identificações do eu. A paranoia manifesta temas de filiação, usurpação e espoliação, sendo que através da estrutura narcísica, temas paranoides de intrusão, do duplo, e transformações delirantes do corpo são revelados. O grupo familiar, reduzido à mãe e a fratria, desenha um complexo psíquico em que a realidade é imaginária, possibilitando eclosões de psicoses, de delírio a dois. Assim, torna-se essencial a introdução do terceiro para a constituição do sujeito em suas relações sociais.
Podemos pensar a função fraterna em termos de identificações imaginárias, horizontais, sustentada pela função paterna, eixo vertical, de identificações simbólicas.
 As “tribos” na atualidade se organizam por relações horizontais, sendo grupos formados por afinidades. Se hoje há uma queda da função paterna, há também queda da função fraterna. Estamos num mundo narcísico onde o Outro não tem lugar. O ódio situado por Lacan no eixo formado pelo imaginário e real se apresenta a céu aberto. O ódio que é a resposta afetiva primeira do sujeito por ele ser cortado pela Linguagem, afeto efeito de estrutura, torna-se como diz Lebrun em gozo do ódio atualmente.
Estamos vivendo o que Freud relata em Totem e Tabu, o momento da horda primitiva, do pai tirânico, usurpador, de gozo interminável. Momento atual aquém ou após o complexo de Édipo? Estamos no caos político e social. Não há espaço simbólico para que nossas crianças, principalmente as que habitam as áreas de maior violência em nossa cidade, se organizem em grupos e frequentem as escolas. Lacan, em seu derradeiro ensino, considerou o simbólico uma confusão, muitas línguas, e várias dificuldades em apreender o real, tendo como consequência a queda do simbólico na atualidade. Hoje estacionamos no narcisismo, numa situação especular e espetacular sem saída. Os grupos se formam em situações narcísicas onde as rivalidades, situações de bullyng refletem a dificuldade na saída do complexo de intrusão apresentado por Lacan. E sem direção do Outro. Algumas crianças e jovens conseguem ir nesta direção. Algumas delas viveram ou vivem num lar onde havia ou há a mediação de um terceiro. Mais ainda, através de uma instituição que represente este lugar simbólico, crianças e jovens conseguem fazer sinthoma, um quarto nó que se acrescenta ao nó borromeano dos três registros, imaginário, simbólico e real, e a partir daí desenvolvem uma suplência simbólica. Mas, e as crianças abandonadas? Crianças de rua, que vivem a céu aberto? Nós, psicanalistas, precisamos estar atentos ao gozo desenfreado que cobre o espaço com balas perdidas, consumo, tóxicos e outros objetos a, que só apresentam a face de gozo. Onde está a face causa do desejo?

Fanny, em sua viagem de coragem para a liberdade, liberdade em relação com a Lei, Linguagem, conseguiu conduzir às crianças e atravessar à fronteira, sustentada pelas funções paterna e fraterna. Mas, se atualmente há o esvaziamento do simbólico, podemos então elucubrar sobre esta questão que Lacan nos deixa em seus últimos seminários, que é “imaginar o real”. Esta questão nos traz um fato clínico: a inibição. A inibição é a imisção do imaginário no real. Estamos neste momento social inibidos.
As crianças podem nos trazer as respostas...

Notas:
1-Dor, J., O pai e sua função em psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
2-Ibid.p.13
3-Ibid.p.13
4-Ibid.p.13
5-Ibid.p.14
6-Ibid.p.14
7-Ibid. p.14
8-Ibid.p.18

Referência bibliográficas
Dor, J. O pai em sua função em psicanálise. RJ: Jorge Zahar Ed., 1997.
Freud. Totem e Tabu. Standard Edition. RJ: Imago Ed, vol XIII.
Kehl org. Função fraterna. RJ: Relume Dumará, 2000.
Miller, J-A. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan. RJ: Jorge Zahar Ed., 2009.
Lacan, J. Os complexos familiares. RJ: Jorge Zahar Ed., 1985.
Lebrun, J-P. O futuro do ódio. Porto Alegre:CMC Ed., 2008.
Filme: Le Voyage de Fanny
           Direção: Lola Doillo    -  Nacionalidade: França

Filme baseado na história real de Fanny Bem-Ami contada em sua autobiografia Le Journal de Fanny.  

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

"A luz entre os oceanos" e a ética de Kant

"A luz entre os oceanos" e a ética de Kant.
                                        Rosa Jeni Matz

Filme de Derek Cianfrance com Alícia Vikander, Michael Fassbender, Rachel Weisz, baseado no livro de Stedman.

Trata-se de um filme sobre ética, amor, Bem e perdão.
Tom se torna faroleiro na ilha de Janus após voltar da guerra. Casa-se e leva a sua esposa para a ilha. Vivem bem felizes juntos até a esposa engravidar e abortar dois filhos.
Num certo dia surge do mar um barco com um homem, morto, e um bebê. A esposa insiste em ficar com a criança, embora Tom não concorde, mas cede diante da insistência da esposa. 
Mas, sendo um homem correto e com princípios morais, Tom começa a viver um pesadelo moral.
Tom é um personagem que transmite os princípios da ética kantiana. Aliás, o filme é uma aula sobre Kant.
Kant elimina do campo moral a determinação passional, qualquer motivo que tenha como fonte as paixões. As paixões se situam num plano particular, individual, e não universal. Para Kant a razão pura segue os princípios universais, assim a ação determinada pela lei moral se torna universal.
A ação moral é determinada somente pela razão pura, e essa determinação é uma lei.O único fundamento desta lei é a razão, e não algo externo à razão. Kant afirma que a razão pura é prática ao fornecer ao homem uma lei universal que é a lei moral, sendo lei incondicional. O homem deve agir de acordo com esta lei, sendo a lei um imperativo.
Um homem afetado por carências e paixões, pode se conflitar com a lei moral.Tom se deixa afetar pela carência da esposa preenchida pela criança vinda do oceano, e daí vive um conflito moral. Ama a sua esposa. Depois de alguns anos conhece a mãe real da menina, e o seu dever moral se fortalece frente à paixão.
Além dessa questão moral é um filme sobre amor, e sobre o Bem. Após conflitos, raiva ódio, o bem para o outro e do outro, o semelhante, prevalece. O perdão também é enfocado.
É um belo filme para pensar com a filosofia! 

Referências:

Kant, I.Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
Kant, I.Crítica da Razão Prática. Lisboa: Edições 70, 1999.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Transgeneridade e Psicanálise


                                            Transgeneridade e Psicanálise

                                                                                         Rosa Jeni Matz

O jornal informa a descoberta de uma nova espécie de humano antigo, o Homo naledi[1], que apresenta a mistura de características dos humanos modernos com hominídeos mais arcaicos. Também, a foto de um transgênero é publicada, não mais resultado de uma mistura de características do macaco e do Homem, mas uma mistura de características masculinas e femininas.
Outra notícia do jornal é a afirmação da educadora finlandesa sobre a contemporaneidade: “Pensar e resolver problemas não é mais suficiente”[2]. A Finlândia está se preparando para mudanças em seu modelo educacional, pois devido ao acesso de informações facilitado atualmente pela tecnologia, o professor não é mais “o cálice sagrado do conhecimento”. Há um foco na criatividade da criança, na responsabilidade social, no pensar diferente, e na transdisciplinaridade.
Alguns professores do Colégio Pedro II, Rio de Janeiro, utilizaram “x” no lugar das vogais “a” e “o”, criando o neologismo “alunxs”[3], em vez de alunos/alunas, com o intuito de assinalar a não distinção de gêneros. Este neologismo foi utilizado em avisos de parede e cabeçalhos de provas.
Diferença sexual?
A transgeneridade é a condição onde a expressão de gênero ou identidade de gênero de uma pessoa é diferente daquelas atribuídas ao sexo biológico, e também ao gênero, designado ao sujeito no nascimento.
Falamos hoje em identidades. E por onde anda o conceito de identificação? O conceito de identificação estaria mais próximo à neurose e ao recalque, sendo resultado da Metáfora Paterna, operação de substituição do significante do desejo da mãe pelo significante Nome-do-Pai. Ocorre a identificação a um traço paterno, traço unário (freudiano e lacaniano).
No momento atual nos referimos às identidades, pois em vez do Nome-do-Pai nomear, o parlêtre tem a possibilidade de fazer o seu próprio nome, se nomear. Através de estudos sobre James Joyce e os nós borromeanos, Lacan se aproxima de nossa época, cuja questão é “fazer-se um nome”, ter uma identidade singular.
O transgênero aponta para esta identidade de “fazer-se um nome”. Não só um nome, mas um sujeito. Transforma o sintoma, antes considerado patológico, em Sinthoma, fazendo um novo nó, que pode ser um Nome-do-Pai, e daí constrói a sua vida como sujeito. Lacan no seu último ensino fala de Nomes-do-Pai: Imaginário, Simbólico, Real e Sinthoma.
Para Freud no inconsciente só há uma libido, a masculina, não existindo representação da mulher no inconsciente. Só há Um. Na psicanálise o falo é o símbolo sexual por excelência, apontando à falta e à castração. O falo se refere à falta do pênis na mulher. Se todo sujeito é efeito de uma posição masculina, que termos são esses homem e mulher em uso na cultura? Os termos caminham para o desuso.
Freud pensa o falo através da fase fálica, contemporânea ao complexo de Édipo. Em seu texto ”Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” (1925) [4] escreve:
“A diferença entre o desenvolvimento sexual dos indivíduos dos sexos masculino e feminino no estádio que estivemos considerando, é uma consequência inteligível da distinção anatômica entre seus órgãos genitais e da situação psíquica aí envolvida; corresponde à diferença entre uma castração que foi executada e outra que foi simplesmente ameaçada”.
Freud assinala a presença da percepção visual na discriminação dessa diferença. Em relação às meninas: “Elas notam o pênis de um irmão ou companheiro de brinquedo, notavelmente visível e de grandes proporções, e imediatamente o identificam com o correspondente superior de seu próprio órgão pequeno e imperceptível, dessa ocasião em diante caem vítimas da inveja do pênis”.
Enfatiza a ameaça da castração como fator fundamental para a dissolução deste complexo no menino, enquanto na menina a fantasia da castração já é “consumada”. Afirma que na saída do complexo de Édipo, em “casos normais, ou melhor, em casos ideais, o complexo de Édipo não existe mais, nem mesmo no inconsciente; o superego se tornou seu herdeiro”.
O pai, nos velhos tempos, representava a moral, a lei, fazendo a função de um Outro consistente. O Outro atualmente não proíbe nada, incita a gozar (Goze! Voz do supereu) e a ultrapassar limites, gozo do Outro. O que se manifesta na atualidade é o gozo, do supereu, o super-homem. Logo, o que herdamos hoje é o superego dos pais como caminho do gozo, e para o gozo, e não mais ideais.
No texto de 1924, “A dissolução do complexo de Édipo[5], Freud associa também outras duas experiências sofridas pelas crianças que “as preparam para a perda de partes altamente valorizadas do corpo” (p. 219), que são a retirada do seio materno e a exigência de soltarem os conteúdos do intestino.  Mas, só após o surgimento de uma “nova” experiência em seu caminho, que a criança avalia a possibilidade de sua castração, que ocorre principalmente através da “visão dos órgãos genitais femininos”.
Através desta afirmação de Freud sobre a “ameaça de perdas valorizadas do corpo” podemos encontrar o gancho para pensar o complexo de Édipo na atualidade. A ênfase hoje é no gozo, na perda de gozo. Os objetos a: seio, fezes, olhar e voz, representam estas partes perdidas do corpo infantil, mas que hoje se tornam zênite de gozo. A castração agenciada pelo pai real implica numa perda de gozo, do gozo incestuoso mãe-criança. A entrada do significante produz uma perda real. O que hoje acontece é o sujeito não aceitando esta perda necessária para estruturá-lo, o sujeito hoje tenta driblar esta perda de gozo. Busca tapar a falta do Outro com esta parte de gozo perdida, renegar a castração. O sujeito se iguala ao objeto. O S1 se torna a. A questão: Como posso melhor gozar?
Estamos num momento diferente do significante falo como significante do desejo do Outro. O gozo é do Um sem o Outro, solitário, autista e assexuado.
Logo, pode não implicar a sexualidade como diferença, já que o significante é o elemento diferencial último. O S1 é a marca da diferença no Outro, resultado da metáfora paterna, e identificação ao traço unário. Há apagamento do Outro, ficando o sujeito solitário frente ao objeto, mais além do Édipo.
No seminário 20, Encore (1972/3)[6], nas fórmulas da sexuação, apesar de Lacan eleger a função fálica como operador da castração, ele posiciona tanto o homem e a mulher em qualquer dos dois lados, abrindo assim o leque para diferentes identidades. O homem pode se posicionar no lado da Mulher, do gozo suplementar, ilimitado; e a mulher que é não-toda fálica pode se posicionar no lado Homem, do gozo fálico.
Père-version, as várias versões do pai. Respostas ao Um do pai. Cada sujeito vai ter a sua versão. Há vários Nomes-do-Pai. A neurose, a psicose e a perversão são posições diferentes diante da questão do Pai.
No seminário 4, A relação de objeto (1956)[7], Lacan comenta o caso da jovem homossexual de Freud, e assinala outras formas das vias perversas do desejo. Na perversão o sujeito busca esconder a falta fálica da mãe através do véu. O véu esconde que a mãe não tem o falo, mas ao mesmo tempo é onde se projeta a imagem do falo simbólico, a mãe tem o falo. No fetichismo, o fetiche é uma imagem projetada, deste falo ausente, simbólico.
Nestas vias pode ocorrer a identificação com a mulher, o sujeito se situando no lugar da mãe. No travestismo ocorre uma identificação com a mãe que tem o falo. No homossexualismo a ênfase é no seu falo, mas que deve ser buscado no outro. O homossexual se identifica com a mãe que deve ter o falo, a mãe que faz a lei para o pai. Identificação com o gozo da mãe, e não com o desejo e o amor. Várias leis?
Os lacanianos chegaram a aproximar os transexuais à psicose, devido à confusão entre o falo e o pênis, entre o significante e o órgão, reduzindo o falo ao pênis real, ao próprio órgão; e pela foraclusão da castração simbólica, buscando uma intervenção cirúrgica de fato ao nível corporal. Mas, Catherine Millot[8] traz uma proposta interessante de que assumindo uma identidade de “A Mulher” o transexual limita o gozo do Outro, colocando o significante “A Mulher” como função do Nome-do-Pai. Mas, este sujeito se coloca fora do sexo, encarna o sexo dos anjos, já que o significante da diferença sexual, o falo é desconsiderado. 
Assim, vários Nomes-do-Pai. Como diz Lacan: varité. Condensa verdade (vérité) e variável/variedade (variété), criando o neologismo “varité”, variedades da verdade. A verdade não é única, tem variedades.  
                                                                                                                                                          


[1] Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 11/09/2015
[2] Ibid., 12/09/2015
[3] Ibid., 26/09/2015

[4] Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969.
[5] Ibid.
[6] Lacan. J (1972/3). Seminário 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.
[7] Lacan, J (1956/7). A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
[8] Dor, Joel. Estrutura e perversões. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1991.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

A criança como sintoma dos pais


                     A criança como sintoma dos pais.                     
                                                                                          Rosa Jeni Matz

Lacan em Nota sobre a criança (1969), escrita à Dra. Jenny Aubry, publicado nos Outros Escritos, afirma que “o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar”[1]. O sintoma infantil pode representar a verdade do casal parental. Verdade da mãe em relação à sua falta, ao seu desejo, e verdade do pai como vetor da encarnação da lei no desejo.
O sintoma como efeito da subjetividade materna torna a criança correlata de uma fantasia, que é um enquadre da realidade, onde vai responder à falta na mãe, desviando a mãe de sua verdade própria, e muitas vezes a protegendo. O sintoma do filho tem como fim ocultar uma verdade ameaçadora. Não ocorrendo mediação da função paterna, a criança fica exposta às capturas fantasísticas, imaginárias, tornando-se objeto da mãe, e revelando a verdade deste objeto. A criança ocupa o lugar do objeto a na fantasia.

Fórmula da fantasia
$ ◊ a

A fantasia é fundamental porque articula o sujeito ($) ao objeto (a), objeto causa de desejo, sempre perdido, que escapa, mas que pode ser acionado como tampa da falta, gerando gozo. A fantasia sustenta o desejo.


Guillaume, a criança como objeto de gozo materno

Filme: Les garçons, et Guillaume, à la table (2013), direção de Guilhaume Gallienne.
Título em português: Eu, Mamãe e os Meninos.
“A primeira lembrança que tenho de minha mãe é de quando eu tinha uns quatro ou cinco anos. Ela chamou os filhos para o jantar, dizendo: “Les garçons, et Guillaume, à la table”  (“Meninos e Guillaume, à mesa!”).
Esta “sentença” de sua mãe traça o seu destino, caminho que Guillaume percorre, narrando a sua história.
Guillaume é o desejo do desejo do Outro (Mãe): uma menina. Encarna o desejo da mãe, uma menina. Mais tarde, na vida adulta, busca desvendar o enigma da sua sexualidade, até então enganado por uma suposta homossexualidade, através de encontros confusos e cômicos com homens. Mas, num jantar de uma amiga, uma mulher desperta o seu desejo. Neste momento, neste mesmo jantar, surge a enunciação que o reconhece e o coloca como sujeito em sua vida: “Les filles, Guillaume, à la table” (“As meninas, Guillaume, à mesa”); surpreendendo-o, colocando-o na posição de homem, trazendo assim o significante da diferença sexual, modificando uma alienação a que estava assujeitado.

Em Alocução sobre as psicoses da criança[2], 1968, Lacan afirma: “Toda formação humana tem por essência, e não por acaso, de refrear o gozo”, sendo “o princípio do prazer o freio do gozo”[3]. A mãe de Guillaume, ao tamponar a sua falta pelo filho, torna-o objeto de seu gozo.
Lacan discordou de alguns pós-freudianos que desconheciam a ação do significante na constituição do sujeito na relação dual mãe-criança, e também pelo não estabelecimento do enquadre da fantasia que conjuga sujeito, desejo e gozo. Diz que eles criaram uma fantasia postiça sobre a harmonia instalada no habitat materno.
Lacan formula a expressão “criança generalizada”, lançando uma questão ética, chamando a atenção para o declínio do pai em nossa cultura. Destaca a tendência a objetalização do sujeito, resultando então em irresponsabilidade quanto ao modo de gozo de cada um. A responsabilidade do sujeito adulto fica tomada pelo zênite do gozo (“todos somos crianças”). Assinala que o sintoma somático da criança desvela a não mediação paterna na relação mãe-criança, encarnando a verdade do Outro, sendo um recurso inesgotável para o encobrimento do sintoma parental, e garantindo o desconhecimento da verdade materna ao proteger a mãe.
A criança se torna um objeto familiar, impossibilitada de expressar o seu lugar de sujeito na família, colocando no corpo o gozo excessivo, devido à impossibilidade da cifra da linguagem. Conforme a sua posição nas estruturas: neurótica, perversa e psicótica, a criança pode saturar, ocupar o lugar deste objeto, substituindo a falta específica do desejo da mãe, podendo atestar a culpa (neurose), servindo de fetiche (perversão), ou encarnando a recusa primordial (psicose). O sintoma somático da criança pode ser o representante da culpabilidade inesgotável de seus pais. A criança colocada como fetiche dos pais encobre a castração, renegando a falta, sendo objeto da perversão parental. E, a criança, na psicose, pode ser objeto da rejeição dos pais, não ter sido desejada pela mãe, havendo recusa de seu nascimento.  
É preciso estar atento na clínica com crianças para a seguinte posição ética no dizer de Lacan: “se opor a que seja o corpo da criança que corresponda ao objeto a[4]. Que o corpo real da criança não sirva como objeto do Outro, a criança não pode ser capturada pelos caprichos maternos, como refém da mãe, assim apagando a sua posição de sujeito desejante. O analista de crianças se opõe ao gozo parental. Qualquer criança, no início de sua vida, é colocada no lugar de objeto materno, um objeto que pode ser precioso, mas que também pode ser lixo do Outro. O importante é a possibilidade do movimento advir: partindo inicialmente de objeto, assujeitado, para a posição de sujeito, onde tanto o desejo da criança como o desejo da mãe possam surgir.
O processo de subjetivação, o advento do sujeito, acontece em dois momentos. O primeiro momento é o da alienação, movimento simbólico que introduz a linguagem para a criança. Depois, num segundo momento, ocorre o mecanismo da separação, onde a criança percebe que ela não cobre totalmente a falta da mãe, e a mãe também aponta o seu desejo para outras direções diferentes da criança, mostrando a sua falta. O perigo está quando a criança fica fixada à posição de objeto materno, na alienação, não ocorrendo a possibilidade do mecanismo de separação. O fundamental é a castração materna, é esta mãe ser um ser para o sexo, cortada pelo significante Nome-do-Pai.

Lacan, ao comentar o objeto transicional de Winnicott  diz que o importante “não é que o objeto transicional preserve a autonomia da criança, mas que a criança sirva ou não de objeto transicional para a mãe”[5]. A estrutura deste objeto é “a de um condensador para o gozo na medida em que, pela regulação do prazer, ele é despojado do corpo”[6]. O “objeto transicional” da criança, como o paninho ou o ursinho, não é o representante nem da criança, nem da mãe, nem da ausência física da mãe, mas representa o significante da falta da mãe (Seminário 4: A relação de objeto), representa o objeto materno. Assim, o falo imaginário da mãe não fica colocado no corpo da criança, seu desejo não se realiza no corpo de seu filho, o que seria extremamente perigoso. O desejo materno permite que a criança possa investir nesse outro objeto. É importante que a criança também seja transicional para a mãe, que apesar de ter sido proveniente do corpo da mãe possa se tornar separada desta. 
Vivemos num momento de novas famílias. Novos arranjos acontecem, embora a família se mantém. O que mudam são os que ocupam estes lugares. Os lugares parentais podem ser ocupados por casais heterossexuais, como também por casais homossexuais como a homopaternidade e a homomaternidade. A questão da criança como sintoma dos pais, desenvolvida por Lacan no final da década de 1960, ainda vigora em nossa cultura atual, também nestas novas famílias, pois o que ele denuncia é o perigo do corpo da criança ser tomado como objeto do gozo do Outro. O importante é a sustentação da falta do objeto, isto é, permitir que o desejo singular de cada membro familiar esteja vivo. Esta é uma questão fundamentalmente ética na clínica psicanalítica de crianças, e nós psicanalistas, temos como tarefa frear o gozo parental e desvelar a verdade do desejo singular, tanto da criança como de seus “pais”, pois o desejo é o melhor remédio contra o gozo.

Maud Mannoni busca no mito familiar a causa, a origem, do sofrimento da criança. Para ela o fundamental é como a criança foi gerada, recebida pelos seus pais e conduzida para a costura de suas pulsões. Antes da criança chegar ao mundo familiar as bases edípicas já estão colocadas. O mito familiar aparece através de “certo feixe de palavras”, discurso que a criança recebe dos pais. Este feixe de palavras alimenta uma repetição sintomática, daí a tese de Mannoni sobre a importância do tratamento psicanalítico dos pais. O problema é os pais, sendo a criança apenas efeito. Durval Checchinato em seu livro Psicanálise de pais: crianças, sintomas dos pais enfatiza a análise dos pais da criança-sintoma, pois a criança responde e está alienada à demanda e desejo do Outro: “Como o filho pode querer desejar se o desejo dos pais, ou de um deles, é tão imperativo, abafador?”[7]
Mannoni, ao se referir à psicose, assinala a emissão de uma palavra mortífera que a criança se defrontou no início de sua vida, que lançou uma maldição sobre a criança. A criança se torna refém dessa palavra de seus pais, impedindo que o seu desejo surja. Assim, a análise dos pais consiste em detectar esta palavra mortífera, significante que aprisiona a criança. Ao se desembaraçar a palavra mortífera dos pais o núcleo patogênico da criança se dissipará, havendo um movimento contrário a impressão da “marca ao nível do corpo”, tendo acesso tanto a criança como os pais ao simbólico. Ocorre aí uma operação de castração, libertando o sujeito ao seu desejo próprio. 
Mannoni enfatiza a importância da análise dos pais devido ao efeito que é a criança como depositário das palavras dos pais, que aprisionam a criança em seu discurso. Por mais que se trate a criança, ela está inserida em seu contexto familiar, e se o feixe das palavras parentais não forem decifradas retornarão constantemente nos sintomas infantis. Ao descobrir o significante devastador do desejo parental, ou de um dos pais, o sintoma da criança se desfaz. 
Questão: Como praticar uma análise de criança sem a análise parental?
Não nos referimos ao acompanhamento dos pais, mas a análise dos pais.
A análise dos pais se torna fundamental e indispensável para o processo de decifração do sintoma infantil.


Bibliografia:
Checchinato, Durval. Psicanálise de pais: crianças, sintomas dos pais. R J: Cia de Freud, 2007.
Lacan, J. A relação de objeto (Seminário 4). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
Lacan, J. Alocução sobre as psicoses da criança. Outros Escritos. R J: Jorge Zahar Ed., 2003.
Lacan, J. Nota sobre a criança. Outros Escritos. R J: Jorge Zahar Ed., 2003.
Filme: Les garçons, et Guillaume, à la table (2013), direção de Guilhaume Gallienne, França/Bélgica, 2013.

Notas

[1] Lacan, J. Outros Escritos. R J: Jorge Zahar Ed., 2003, p.369.
[2] Lacan, J. Outros Escritos. R J: Jorge Zahar Ed., 2003, p.359. 
[3] Ibid., p.362.
[4] Ibid., p.366.
[5] Ibid., p.366.
[6] Ibid., p.368.
[7] Checchinato, Durval. Psicanálise de pais: crianças, sintomas dos pais. R J: Cia de Freud, 2007, p.119.

terça-feira, 24 de março de 2015

Dois lados do amor - The disappearance of Eleanor Rigby

Dois lados do amor - The disappearance of Eleanor Rigby
de Ned Benson, 2014.
Com James McAvoy  e Jessica Chastain.

Eleanor Rigby, inspiração de uma linda e triste canção dos Beatles que trata da solidão humana:
“Ah, look at all the lonely people = Ah ,olhe para todas as pessoas solitárias…”


Este filme apresenta vários temas. Entre eles o do luto não realizado. O casal se amava, mas tragicamente perdem um filho, e nada é falado. Nem o que aconteceu com o filho é divulgado, narrativa cinematográfica da beleza e do horror da tragédia silenciada. O filme mostra o calar sobre o luto e suas conseqüências. Eleanor desaparece, faz uma passagem ao ato, tentando o suicídio. O marido, Conor, também depois do incidente fatal coloca tudo sobre e do filho “dentro do armário”, desaparecimento do filho. Conor a busca, mas ela busca a solidão (lonely people). Apesar do afeto familiar a palavra pouco aparece. Simbólico apagado. Eles se amam ainda? Mais, ainda? O gozo como saída...

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Os complexos familiares em Lacan: complexos de desmame e de intrusão

            Os complexos familiares em Lacan: complexos de desmame e de intrusão
                                                                                            Rosa Jeni Matz

Texto de Lacan de 1938, Os complexos familiares na formação do indivíduo, apresenta temas pertinentes ao início da vida psíquica. Lacan apresenta o complexo do desmame, trazendo curiosas contribuições. O complexo de desmame, o mais primitivo do desenvolvimento psíquico, representa a forma primordial da imago materna (representação inconsciente mental), fixando a relação de amamentação no psiquismo, sob o modo parasitário, devido às exigências das necessidades dos primeiros meses de vida do homem, e funda os sentimentos mais arcaicos e mais estáveis que unem o indivíduo à família. É radicalmente diferente dos instintos, pois é dominado por fatores culturais, embora se aproxime dos instintos, por duas características: apresenta-se em toda espécie humana, sendo genérico; e pela lactação, representando no psiquismo uma função biológica. Mas, é a relação cultural que condiciona o desmame no homem, enquanto nos animais o instinto materno pára de agir quando o fim da amamentação é completado. Muitas vezes o desmame pode ser um trauma psíquico, gerando efeitos, como nas anorexias nervosas, nas toxicomanias pela boca, nas neuroses gástricas. Traumatizante ou não, o desmame deixa no psiquismo humano a marca da relação biológica que ele interrompe. Essa tensão vital é acompanhada por uma crise do psiquismo, a primeira cuja solução tem uma estrutura dialética. Uma tensão vital resolve-se numa intenção mental, que conduz a aceitação ou não do desmame, intenção elementar que não pode ser atribuída a um eu ainda em estado rudimentar. A aceitação ou a recusa não pode ser considerada uma escolha, pois não há ainda um eu para que haja uma afirmação ou negação, e não há contradição, pólos coexistentes e contrários determinam uma atitude ambivalente. Essa ambivalência se resolverá na continuidade do processo dialético, sofrendo destinos diversos.
É a recusa do desmame que funda o positivo do complexo, pois tende a restabelecer a imago da relação de amamentação. O conteúdo dessa imago é dado pelas sensações precoces, mas só adquire forma quando há uma organização mental posterior. Esta etapa é anterior ao advento da forma do objeto, logo estes conteúdos não podem ser representados na consciência, mas surgem como possíveis moldes das experiências psíquicas posteriores. As sensações exteroceptivas, proprioceptivas, e interoceptivas, ainda não estão (depois do décimo segundo mês) suficientemente coordenadas para que ocorra o reconhecimento do corpo próprio, como também, da idéia do que lhe é externo. Mas, algumas sensações exteroceptivas são isoladas como unidades de percepção no início da vida psíquica. São elementos de objetos que correspondem aos primeiros interesses afetivos. A reação de interesse manifestada pela criança diante do rosto humano é muito precoce, desde os primeiros dias, e antes que as coordenações motoras dos olhos estejam concluídas, sendo um fato estrutural. As psicoses reativam a máscara humana de modo inefável, trazendo o arcaísmo de sua significação.
Muito cedo a criança percebe a presença da função materna, sendo que a substituição dessa presença poderá causar danos futuros. A criança apegada ao seio adquire uma satisfação que surge como sinal da máxima plenitude com que pode se satisfazer o desejo humano. As sensações proprioceptivas da sucção e da preensão constituem a base da ambivalência do vivenciado: o ser que absorve é todo absorvido, e o complexo arcaico encontra correspondência no abraço materno. Lacan não fala aí em autoerotismo, como Freud, uma vez que o eu não está constituído, nem de narcisismo, já que não há uma imagem do eu, e nem de erotismo oral, pois a nostalgia do seio nutriente, equívoco da escola psicanalítica, só decorre do complexo de desmame após o seu remanejamento pelo complexo de Édipo. A relação com a realidade em que se baseia a imago materna é de “canibalismo”, canibalismo fusional, inefável, simultaneamente ativo e passivo, sobrevivendo nos jogos e palavras simbólicas, que no mais evoluído amor, recordam “o desejo de larva”.
Essa base não pode ser desligada do caos das sensações interoceptivas de que emerge. A angústia, cujo protótipo surge na asfixia do nascimento, o frio ligado à nudez dos tegumentos, e o “mal-estar labiríntico” para o qual corresponde a satisfação de ser embalado (o acalanto), organizam nesta tríade o tom penoso da vida orgânica, que domina os seis primeiros meses de vida humana, sendo que todos estes mal-estares têm a mesma causa: uma “adaptação” insuficiente à ruptura das condições de ambiente e alimento da vida parasitária intra-uterina.
Devido a dados da fisiologia e da realidade anatômica da não-mielinização dos centros nervosos superiores do recém-nascido (mielinização=formação da baínha mielínica dos nervos durante os primeiros tempos de vida) é impossível fazer do nascimento um trauma psíquico, como alguns psicanalistas afirmam. O atraso na dentição e na marcha, como também na maioria dos aparelhos e funções, determina na criança uma impotência vital total que perdura além dos dois primeiros anos, caráter de exceção em relação aos animais, sendo o homem, então, um animal de nascimento prematuro.
A imago do seio materno domina toda a vida humana. No aleitamento, no abraço e na contemplação da criança, a mãe recebe e satisfaz o mais primitivo de todos os desejos. E, a tolerância da dor do parto pode ser compreendida como uma compensação representativa do primeiro dos fenômenos afetivos a surgir: “a angústia que nasce com a vida”.
Lacan afirma: “Somente a imago que imprime nas profundezas do psiquismo o desmame congênito do homem é capaz de explicar a potência, a riqueza e a duração do sentimento materno. A realização dessa imago na consciência assegura à mulher uma satisfação psíquica privilegiada, enquanto seus efeitos na conduta da mãe poupam a criança do abandono que lhe seria fatal”.
A imago materna é de difícil sublimação, mas deve ser sublimada para que novas relações se introduzam com o grupo social, e se isto não ocorrer, o que é salutar na origem se torna fator de morte. A tendência à morte é vivida pelo homem como objeto de um apetite. Mas, Lacan assinala que Freud a tentou explicar através de uma contradição em seus termos, instinto de morte, cedendo ao preconceito do biólogo, que relaciona tendência a instinto. Lacan diz que a tendência para a morte, que especifica o psiquismo humano, se explica pela razão de que o complexo, unidade funcional do psiquismo, não corresponde a funções vitais, mas à insuficiência congênita dessas funções vitais. Essa tendência psíquica para a morte, sob a forma dada pelo desmame, revela-se nos suicídios “não violentos”, evidenciando a forma oral do complexo: “a greve de fome da anorexia nervosa, o envenenamento lento de certas toxicomanias pela boca, o regime de fome das neuroses gástricas”. A análises desses casos mostra, que em seu abandono à morte, há uma busca do sujeito para o reencontro da imago da mãe.
O abandono das garantias da economia familiar repete o desmame, e somente nesta ocasião, muitas vezes, que o complexo é liquidado. Hegel afirma que o indivíduo que não luta pelo seu reconhecimento fora do grupo familiar nunca atinge a personalidade antes da morte. “A saturação do complexo funda o sentimento materno; sua sublimação contribui para o sentimento familiar”; sua liquidação deixa vestígios para o reconhecimento da imago materna. A sua forma abstrata poderia ser definida como “uma assimilação perfeita da totalidade do ser”, fórmula “meio filosófica” que faz aparecer as nostalgias da humanidade: “a miragem metafísica da harmonia universal, o abismo místico da fusão afetiva, a utopia social de uma tutela totalitária”.
O segundo complexo apresentado no texto é o complexo de intrusão que representa a experiência que a criança realiza quando se reconhece entre irmãos. As condições dessa experiência são variáveis conforme as culturas, extensão do grupo familiar, e conforme o lugar que o acaso confere ao sujeito na ordem de nascimento: a de abastado ou a de usurpador. O ciúme (jalousie) infantil é observado neste período, e Lacan se remete à citação de Santo Agostinho: “Vi com meus próprios olhos, e observei bem um menino tomado de ciúme: ele ainda não falava, mas não conseguia desviar os olhos, sem empalidecer, do amargo espetáculo de seu irmão de leite” (Confissões, I, VII). A estrutura do ciúme infantil esclarece seu papel na gênese da sociabilidade, e do conhecimento humano. O ciúme representa não uma rivalidade vital, mas uma identificação mental. Em crianças entre seis meses e dois anos, confrontados aos pares e sem terceiros, há uma comunicação, que parece reações de rivalidade, como adaptações de posturas e gestos, ocorrendo conformidade em sua alternância, como provocações e respostas, onde se esboça o reconhecimento de um rival, de um “outro” como objeto. Essa reação, que pode parecer precoce, é determinada por uma condição dominante, um limite que não pode ser ultrapassado na distância etária entre os sujeitos, distância de dois meses e meio no primeiro ano do período considerado, e permanece estrito ao se ampliar. As reações mais freqüentes são as da exibição, da sedução e do despotismo. O que se observa não é um conflito entre dois indivíduos, mas um conflito entre duas atitudes opostas e complementares. Cada parceiro confunde a pátria do outro com a sua e se identifica com o outro. Nesse estágio a identificação específica é baseada num sentimento do outro como imaginário. A imagem do outro aí está ligada à estrutura do corpo próprio.
Na situação fraterna primitiva a agressividade se mostra secundária à identificação. A amamentação é para a criança uma neutralização temporária das condições de luta pelo alimento, opondo-se Lacan à idéia darwiniana de que a luta está na origem da vida. O aparecimento do ciúme relacionado com a amamentação, apresentado pela citação de Santo Agostinho, dever ser interpretado prudentemente, pois esta cena pode se apresentar ao sujeito desmamado há muito tempo que não concorre com o irmão, sendo que este fenômeno exige uma identificação com o estado do irmão. Em outros trabalhos, Lacan se refere a esta cena como uma imagem de completude, onde o sujeito que a observa se vê excluído, uma visão totalizante, imaginária, onde o sujeito já esteve neste lugar. A agressividade se sustenta então numa identificação com o outro que é objeto da violência (a agressividade não é primária, é secundária).
Lacan aponta no mal-estar do desmame humano, a origem do desejo de morte, sendo que o masoquismo primário é o momento dialético em que o sujeito assume, por seus primeiros atos lúdicos, a reprodução desse mal-estar, e assim o sublima e o supera (jogo do fort-da de Freud). O sujeito inflige a si mesmo o desmame que sofreu, só que agora triunfa sobre ele, sendo ativo em sua reprodução. A identificação com o irmão fornece a imagem que fixa um dos pólos do masoquismo primário, gerando a violência imaginária do assassinato do irmão, não tendo relação com a luta pela vida. A saída masoquista se situa no ponto de junção entre o imaginário e o simbólico. Freud isolou este masoquismo num jogo de infância, numa criança de dezoito meses. O objeto escolhido, chocalho ou dejeto, ou o carretel em Freud é abolido com prazer, consumando a perda do objeto materno. A imagem do irmão não desmamado só desperta uma agressão por repetir no sujeito a imago da situação materna e com ela o desejo da morte.
A identificação aí citada se refere ao estádio do espelho, que corresponde ao declínio do desmame, ao fim dos seis meses, cuja dominante psíquica é de mal-estar devido ao atraso do crescimento físico, pela prematuração do nascimento, que é a base específica do desmame no homem. O reconhecimento pelo sujeito de sua imagem no espelho é um fenômeno significativo, surge depois dos seis meses e demonstra a realidade desse sujeito, seu valor afetivo é ilusório, quanto a sua imagem, e sua estrutura é o reflexo da forma humana. A percepção da forma do semelhante como unidade mental está ligada a um nível de sociabilidade e inteligência. Neste estágio a discordância tanto das pulsões e das funções é ainda a continuação prolongada da descoordenação dos aparelhos. Daí resulta uma fase que afetiva e mentalmente constitui-se com base numa proprioceptividade que apresenta o corpo como despedaçado, visando uma recolocação do corpo próprio, e a realidade inicialmente submetida a um despedaçamento perceptivo ordena-se refletindo as formas do corpo, que fornecem o modelo de todos os objetos. Há aí uma estrutura arcaica do mundo humano que surge através da análise do inconsciente humano, como as fantasias de desmembramento, de desarticulação do corpo, da imagem do duplo. O restabelecimento da imagem perdida de si mesmo instala-se desde a origem no centro da consciência. É a origem da energia do progresso mental, predominando as funções visuais. A busca da unidade afetiva promove as formas em que o sujeito representa a sua identidade para si mesmo, sendo que a forma mais intuitiva é dada pela imagem especular. O sujeito saúda a unidade mental, reconhece nela o ideal da imago do duplo, e aclama a vitória da imagem salutar. O mundo próprio dessa fase é narcísico, não apenas pelo sentido atribuído por Freud e Abraham, do investimento enérgico da libido no corpo, mas também, como uma estrutura mental que inclui o mito de Narciso, que indica a morte, como insuficiência vital para quem veio a esse mundo; surge a reflexão especular, a imago do duplo central, e a ilusão da imagem, indicando que este mundo não contém o outro.
A percepção da atividade de outrem não é bastante para romper o isolamento afetivo do sujeito. A imagem do semelhante desempenha apenas um papel primário, limitado à função de expressividade, ela desencadeia no sujeito emoções e posturas similares, permitida pela estrutura atual de seus aparelhos. O sujeito ao se sofrer essa sugestão motora ou emocional não se distingue da imagem em si, a imagem só acrescenta a intromissão temporária de uma imagem estrangeira, chamada de intrusão narcísica, que, no entanto, contribuirá pela unidade introduzida pelas tendências na formação do eu. Mas, antes que o eu afirme a sua identidade, ele se confunde com essa imagem que o forma, mas que o aliena. Aí se dá a estrutura ambígua do espetáculo, através de situações de despotismo, sedução e exibição, dando forma às pulsões sadomasoquista e escopofílicas (desejo de ver e ser visto), que são destruidoras do outro. Essa intrusão primordial permite compreender a projeção do eu constituído, que se manifesta como mitomaníaca (tendência mórbida para a mentira), na criança cuja identificação pessoal ainda vacila; transitivista, no paranóico cujo eu regride a um estágio arcaico; e compreensiva, quando é integrada num eu normal.
O eu se constitui junto com o outro no drama do ciúme. Esta é uma discordância que intervém na satisfação espetacular. Implica a introdução de um objeto terceiro, que irá substituir a confusão afetiva e a ambigüidade espetacular pela concorrência de uma situação triangular. O sujeito que enveredou pelo ciúme por identificação, desemboca numa nova alternativa onde é jogado o destino da realidade. Ou ele reencontra o objeto materno e se prende à recusa do real e à destruição do outro, ou é levado a algum outro objeto, acolhe-o sob a forma de conhecimento humano como objeto comunicável, já que a concorrência implica em rivalidade e concordância, reconhecendo o outro com quem trava a luta ou firma o contrato, encontrando o outro e o objeto socializado. O ciúme humano se distingue da rivalidade vital imediata, revelando-se o arquétipo dos sentimentos sociais.
O eu não encontra antes dos três anos a sua constituição essencial.
Os traços essenciais do complexo fraterno são: o papel traumatizante do irmão que se constitui por intrusão, o fato e a época do seu aparecimento determinam a sua significação para o sujeito, a intrusão parte do recém-chegado e infesta o ocupante, sendo que o primogênito desempenha em princípio o papel de paciente. A reação do paciente ao trauma depende do seu desenvolvimento psíquico. Surpreendido pelo intruso no desarvoramento (desorientação) do desmame, o paciente o reativa sem parar ante o espetáculo deste, faz uma regressão, que de acordo com os destinos do eu, pode se revelar uma psicose esquizofrênica ou uma neurose hipocondríaca, ou então, reage pela destruição imaginária do monstro, resultando em impulsos perversos ou numa culpa obsessiva.
Mas, se o intruso sobrevier apenas após o complexo de Édipo, será adotado no plano das identificações parentais, não sendo para o sujeito obstáculo ou o reflexo, mas uma pessoa digna de amor e de ódio. As pulsões agressivas se sublimarão como ternura ou severidade.

O irmão também pode proporcionar o modelo arcaico do eu. O papel do agente cabe aqui ao primogênito, e quanto mais conforme for este modelo ao conjunto das pulsões do sujeito, mais feliz será a síntese do eu. É através do semelhante que o objeto, como também o eu se realiza, quanto mais pode assimilar de seu parceiro, melhor será a sua eficácia futura. Mas, também, o grupo de fratria familiar pode favorecer as mais discordantes identificações do eu. A paranóia manifesta temas de filiação, usurpação e espoliação, sendo que através da estrutura narcísica, temas paranóides de intrusão, do duplo, e transformações delirantes do corpo são revelados. O grupo familiar, reduzido à mãe e a fratria, desenha um complexo psíquico em que a realidade é imaginária, possibilitando eclosões de psicoses, de delírio a dois. Assim, torna-se essencial a introdução do terceiro para a constituição do sujeito em suas relações sociais. 

Bibliografia:
Lacan, J. Os complexos familiares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.