domingo, 15 de dezembro de 2024

 Psicanálise das Neuroses de Guerra

                                                                            Rosa Jeni Matz

A Editora Psicanalítica Internacional em 1919 publicou um volume sobre as neuroses de guerra com artigos de Ferenczi, Karl Abraham, Ernest Simmel, Ernest Jones, e com prefácio de Freud.

Histórico:

José Brunner em seu posfácio da edição brasileira comenta que os governos da Áustria-Hungria e da Alemanha treinaram os recrutas para a guerra como objetos, logo presença maciça do gozo do Outro. Este treinamento brutal gerou distúrbios traumáticos, denominados de shell shock (traduzido como um choque de bomba, explosivo ou granada, shell pelo formato de concha que armazena os explosivos), ou “neurose de guerra”, ou “choque de guerra”.

Muitos sintomas surgiram como cegueira, paralisia, alguns homens ficavam mudos ou surdos, presença de distúrbios funcionais como tremores, espasmos, e também angústia, fobia e depressão. Devido ao excesso de recrutas que se afastavam por estes motivos da guerra médicos foram convocados com a finalidade de solucionar estes sintomas para que estes homens retornassem à guerra como dóceis soldados, obedecendo ao Estado.

Hermann Oppenheim, psiquiatra, no final da década de 1880, desenvolveu um modelo somático para a compreensão da doença, que era aplicado aos soldados nos hospitais, afirmava que estes doentes estavam afetados por um comprometimento orgânico do sistema nervoso, shell shock, sendo causado por explosão de bombas e granadas. Já, em 1915, Max Nonne relata num congresso médico em Hamburgo, que os sintomas de neuroses de guerra podiam ser eliminados por sugestão hipnótica, contra a posição de Oppenheim. Com o desenrolar da guerra a posição de Oppenheim foi abandonada, e a doença passou a ser considerada fenômeno puramente mental, principalmente histérico, uma doença da vontade, fraqueza por uma tentativa inconsciente de fugir do dever na doença, neurose de defesa formada pelo instinto de autopreservação do indivíduo.

Estes soldados neuróticos eram vistos como simuladores, fingidores que encenavam a doença para fugir do combate no front, e também de receber pagamentos de pensão. Assim os psiquiatras de guerra tinham a missão de fortalecer a vontade do soldados em retornar à guerra, e de proteger o Estado dos encargos financeiros dos pagamentos de pensões e indenizações após a guerra, as chamadas “histeria de demanda pensionista”.

 Os médicos induziam choque compensatório a fim de curar os soldados de suas patologias, misturavam dor e medo. Fritz Kaufmann, psiquiatra ativo nos hospitais militares alemães chamava este método de “método do ataque surpresa”. Reforçava a volta dos soldados para o front com choques elétricos curtos e dolorosos. O objetivo dos psiquiatras de guerra era o de prevalecer a vontade nacional através da subordinação desses soldados para que se tornassem dóceis, mas raramente isso acontecia, pois os sodados não se tornavam aptos ao combate.

Freud de início se identificou com o exército austro-húngaro, mas depois, no final de 1915, ficou desapontado, ansiando a paz.

Karl Abraham foi voluntário no exército alemão e trabalhou no início da guerra como cirurgião. Inaugurou uma enfermaria para neuroses e doenças mentais na Prússia Oriental, tendo 90 pacientes, permitindo que os pacientes ab-reagissem em vigília, uma psicanálise simplificada para que os pacientes pudessem compreender a origem dos seus sofrimentos.

Sándor Ferenczi foi chefe de uma ala psiquiátrica de um hospital em Budapeste. Em um trabalho apresentado em um congresso científico de 1916, observou 200 casos, onde afirmou que todos os sintomas neuróticos de guerra poderiam ser explicados por categorias psicanalíticas, de acordo com a histeria de conversão ou histeria de angústia.

Ernst Simmel trabalhou com neuróticos de guerra, baseando em sua leitura de Freud, realizando terapia breve, combinando hipnose, conversa analítica e interpretação de sonhos, tratamento catártico, onde o paciente podia atuar sua agressão contra um boneco a fim de liberar sua experiência traumática.

No final de 1918, Ernest Jones descreveu que a eficiência dos métodos psicanalíticos no tratamento dos neuróticos de guerra atraiu a atenção de autoridades oficiais, médicos de alta patente do exército, emergindo a fala sobre a criação de clínicas psicanalíticas para o tratamento das neuroses de guerra.

Oficiais da Alemanha e da Áustria-Hungria contribuíram com apoio financeiro para o 5º Congresso Internacional em Psicanálise, realizado em setembro de 1918, em Budapeste O fim da guerra se aproximava.

Ferenczi comenta que as experiências com neuróticos de guerra conduziram neurologistas à psicanálise, sendo um grande momento para a difusão da psicanálise. Psiquiatras abandonavam a etiologia somática, reconhecendo a importância dos impulsos inconscientes.

Abraham enfatiza a natureza narcísica das neuroses de guerra.

Simmel relata os mecanismos psíquicos envolvidos nos sintomas neuróticos, não sendo resultado de artimanhas desonestas egoístas dos soldados, mas sim de processos desconhecidos inconscientes. As tensões eram provocadas por exigências contraditórias da disciplina militar, consciência moral, necessidades emocionais e de sobrevivência física. Fortes sentimentos de angústia, raiva e ressentimento surgiam contra oficiais superiores, gerando conflitos nos soldados devido à lealdade consciente do soldado à sua unidade do exército, provocando culpa e angústia.

Sobre a questão da pensão, soldados que pareciam simular sintomas para receber dinheiro, este não era o motivo principal, servia apenas para a recuperação da autoestima.

No debate do 5º Congresso os psicanalistas eram contra provocar a dor, recomendando apenas palavras como medidas terapêuticas, libertando os neuróticos de guerra das ameaças de violência.

Mas, há uma crítica de Louise Hoffman que os psicanalistas apresentavam uma ambiguidade perante a guerra, pois em geral se abstiveram da política. Freud procurava separar a sua vida privada da pública. Com exceção de Tausk, os psicanalistas colaboraram para que o Estado se apropriasse das práticas psicanalíticas visando a possibilidade da volta dos soldados a guerra no front.

Freud ficou empolgado pelo reconhecimento da psicanálise, e no Congresso de Budapeste evitou comentários sobre o tratamento da neurose de guerra. Segundo alguns Freud não tinha experiência prática.

Mas no artigo Caminhos da terapia psicanalítica (1917-1920), Freud trouxe uma perspectiva de abertura para o futuro da psicanálise, que pode ser considerada uma declaração política:

Então serão construídos sanatórios ou consultórios que empregarão médicos de formação psicanalítica, para que, mediante a análise, sejam mantidos capazes de resistência e de realização homens que de outro modo se entregariam à bebida, mulheres que ameaçam sucumbir sob a carga de privações, crianças que só têm diante de si escolha entre a neurose e o embrutecimento. Esses tratamentos serão gratuitos.

Apresentou a psicoterapia como questão de saúde pública, prática que estava a serviço da individualidade e autonomia dos pacientes, contra o autoritarismo.

Mas, sempre ressaltando que a tarefa do psicanalista seria exclusivamente “tornar consciente o reprimido e pôr a descoberto as resistências”.

Em novembro de 1918 pelo armistício o interesse pela psicanálise diminuiu, pois o exército não precisava mais dela.

No novo governo, o Parlamento austríaco nomeou uma Comissão de Inquérito sobre a Violação do Dever Militar a fim de investigar a atuação dos psiquiatras militares. O alvo principal das investigações foi Julius von Wagner-Jauregg, professor titular da Universidade de Viena e diretor do Hospital Geral de Viena. Freud foi convidado a testemunhar para a Comissão e apresentou um “Parecer sobre o tratamento elétrico dos neuróticos de guerra”. O parecer foi lido num tribunal. Choques elétricos e outros meios horripilantes eram aplicados nos soldados. Freud criticou a brutalidade psiquiátrica vigente, os métodos usados ineficazes, e os seus compromissos políticos com os interesses do Estado.

Referência bibliográfica

Freud et al. Psicanálise das neuroses de guerra. São Paulo: Quina Editora, 2023.