sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

O funâmbulo, o gozo, o além...


                                            O funâmbulo, o gozo, o além...

                                                                                 Rosa Jeni Matz

Nietzsche apresenta o funâmbulo no Prólogo de sua obra Assim falou Zaratustra (Nietzsche 2006). O funâmbulo é um bailarino sobre uma corda, que se equilibra em grande altitude, homem que tenta sobreviver numa profissão de risco, dançando sobre a corda lançada pela “altitude” da metafísica.
O percurso do homem da atualidade reativa o caminho percorrido pelo funâmbulo de Nietzsche. O funâmbulo atual, preso aos valores dominantes, midiáticos, religiosos e econômicos, percorre uma trilha de difícil passagem, tentando se equilibrar numa situação-limite, situação sem nome, experiência que clama por uma palavra. Durante o caminhar do funâmbulo de Nietzsche surge o palhaço, que “passa por cima” do obstáculo, sendo o espírito da gravidade, representante do niilismo. Salta sobre o funâmbulo, que “cai da cena”, perde o equilíbrio, onde tentava sustentar a sua fantasia. Ao alcançar o chão, o funâmbulo se despedaça. Morre nos braços de Zaratustra.
O sujeito enfrenta desafios no novo milênio. Segue, buscando a possibilidade de cortar o além do gozo. Travessia do campo do gozo e a segunda morte.

O funâmbulo de Nietzsche
Após dez anos vivendo sobre a montanha, Zaratustra levanta com a aurora de uma manhã, e decide descer ao encontro dos homens, já que transbordava de sabedoria. Zaratustra, gozo do saber? Mas, a quem falar? Para todos e para ninguém, os universais, pois ao chegar à cidade mais próxima não encontra ouvidos para escutarem a sua grande “nova”, que parte da premissa “Deus morreu”, trazendo para o homem o ensino super-homem, “o homem é algo que deve ser superado”, “o super-homem é o sentido da terra” (Nietzsche 2006, 36). Gozo do homem, sentido da terra. “Sentido da terra” não como fim estabelecido pela metafísica, mas como uma meta, um fito, um destino, onde o homem se torna responsável pela sua vida aqui na terra, onde inventa e cria, alcançando um mar que faz submergir o desprezo do homem. O funâmbulo, após ouvir o discurso de Zaratustra na praça, julga que o discurso se referia a ele, e prepara-se para o trabalho a fazer. Mas, Zaratustra ainda diz ao povo: “O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem – uma corda sobre um abismo” (Nietzsche, 2006, 38). Há o perigo ao transpor o abismo, de vacilar, olhar para trás. O povo ri de Zaratustra, que não é compreendido, representando já este povo o último homem, que interpreta “Deus está morto” como imoralidade, trazendo o tempo do mais desprezível dos homens, tempo que o próprio homem se despreza, este homem que inventou a felicidade, embora piscando o olho.
Então, o funâmbulo sai de uma pequena porta e caminha na corda, que se entende entre duas torres, suspensa sobre o povo. Na metade do seu caminho surge da pequena porta um palhaço, pulando rapidamente atrás do funâmbulo e o pressiona, até que pula por cima dele, soltando um grito diabólico. O funâmbulo assusta-se, cai no vazio, percebendo o triunfo do rival. Cai gravemente ferido, com ossos partidos, mas vivo. Zaratustra se aproxima dele. O funâmbulo diz que desde muito sabia que o Diabo o alcançaria, sendo que Zaratustra retruca negando a existência do Diabo e do inferno (nem o Mal, mas também nem o Bem).
Zaratustra não despreza o funâmbulo, pois este faz do perigo o seu trabalho, e deseja sepultar-lhe com as suas mãos. À noite, Zaratustra parte com o companheiro cadáver, carregando-o às costas, e após alguns desencontros e fome, chega à floresta, adormece, e ao acordar uma nova luz raiava em si, anunciando que precisava de companheiros vivos, para quem possa falar, e não de rebanho, de multidão, de mortos. O seu primeiro companheiro, o funâmbulo, um cadáver, fica enterrado numa árvore oca, protegido contra os lobos. Zaratustra não quer mais se dirigir aos mortos, quer se unir aos criadores, afirmar a vida. Quer afastar o demônio do niilismo, “a causa pela qual todas as coisas caem” (Nietzsche, 2006, 67), o espírito de gravidade. 
O funâmbulo assusta-se, deixa-se se desequilibrar pela arrogância do palhaço, representação remanescente do gênio maligno de Descartes, sendo maligna esta face do mal, que se refere à outra face, a de Deus, apontando para a dualidade Bem e Mal. Metafísica dualista do Bem e do Mal. Nietzsche busca com Zaratustra o para além, o para além do Bem e do Mal, não permanecendo mais na dualidade cartesiana, mente e corpo, e sim, como expressa no discurso Dos desprezadores do corpo “a alma é somente uma palavra para alguma coisa no corpo” (Nietzsche 2006, 60). O para além do Bem e do Mal é uma filosofia que diz: “Eu sou todo corpo e nada além disso” (Nietzsche 2006, 60).

O sentido da Terra como gozo
Hoje, o homem vive situações-limite, sendo muitos os funâmbulos. Estamos em outro milênio, mas observamos como o pensamento de Nietzsche através da fala de Zaratustra, é vigoroso. O espírito religioso impera, a globalização apaga as fronteiras. Muitos querem alcançar novos territórios, mas não conseguem transpor suas próprias fronteiras, barreiras, preconceitos, que contêm antigos valores. Estes homens não aprenderam o sentido da terra.
Para muitos, com o avanço da tecnologia, da mídia, a Terra se tornou achatada! Um disco chato! Lacan tentou apreender o Real pela topologia. Considera importante um analista saber usar uma tesoura. Através do cross-cap (gorro cruzado) mostra a relação do sujeito com o objeto, a fantasia, que o sustenta como sujeito desejante. Após um corte topológico no cross-cap surge uma faixa de Moebius, que representa o sujeito, e um disco chato, o objeto a. O sujeito dividido pelo corte, pela linguagem, está encoberto, sofrendo o eclipse da Terra. A Terra, para a tecnologia, é um objeto chato, e como objeto a, é um campo de gozo. O corpo é lugar de gozo, a Terra se torna campo de gozo. O homem está achatado, monótono, o objeto a cobrindo a sua falta, a sua castração. O solo e o homem se “intergozam”. E, ao se identificar imaginariamente com a Terra achatada, o homem se tornou chato, monótono, coisa.
Fomos levados a copiar modelos imperiosos, apontando para a ausência de identificações simbólicas. O homem retorna ao primado da consciência, à mimesis da consciência, às identificações imaginárias (aÛa’), e o significante Nome-do-Pai se torna obscuro. O simbólico torna-se sombra. Como Heidegger afirmava, o ente escondeu o Ser.

O funâmbulo e o campo entre as duas mortes
O funâmbulo da atualidade tenta atravessar abalado uma corda. Parte de um ponto para atingir um outro ponto. De que ponto ele parte? Para qual ponto ele segue? O homem atual está atravessando o campo das duas mortes descritas por Sade, e apresentadas por Lacan em A ética da Psicanálise (Lacan 1991). Lacan afirma que a segunda morte é evocada pelos heróis de Sade como “o ponto onde o próprio ciclo das transformações naturais se aniquila” (Lacan 1991, 301). Não há mais resto vivo, pois a vida não continua. Sade diz a respeito da Natureza e do crime: “Seria preciso, para ainda melhor servi-la, poder opor-se à regeneração resultante do cadáver que enterramos. O assassinato só tira a primeira vida ao indivíduo que abatemos; seria preciso poder arrancar-lhe a segunda, para ser ainda mais útil à natureza, pois ela quer o aniquilamento: está fora de nosso alcance dar aos nossos assassinatos a extensão que ela deseja” (Lacan 1991, 258).
Lacan articula que surge no enunciado de Sade o ponto de cisão entre o princípio de Nirvana ou de aniquilamento (retorno a um estado de repouso absoluto) e a pulsão de morte. A pulsão de morte se situa num âmbito histórico, na dimensão do que é memorável no sentido freudiano, registrado na cadeia significante, e se articula num nível só definível em função da cadeia significante, numa referência de ordem em relação ao funcionamento da natureza.
Lacan em Kant com Sade diz que a segunda morte “reduplica o desvanecimento do sujeito: do qual ele faz um símbolo, no anseio de que os elementos decompostos de nosso corpo, para não voltarem a se reunir, sejam, eles mesmos aniquilados” (Lacan 1998, 788).
Podemos pensar a segunda morte, morte simbólica, como o tempo do Instante: travessia do homem do estado de natureza à entrada na cultura, pelo acesso à Linguagem. Em Totem e Tabu (Freud 1974) Freud narra esta passagem pelo fim da horda patriarcal, que era constituída por um pai violento e ciumento, que guardava todas as fêmeas para si, e expulsou os filhos na medida que cresciam. Certo dia os irmãos retornaram, mataram e devoraram o pai (refeição totêmica), efetivando a identificação com ele, adquirindo cada um dos irmãos parte de sua força. A refeição totêmica é a “comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas coisas: da organização social, das restrições morais e da religião” (Freud 1974, 170).
Estamos num momento histórico em que observamos a queda da palavra, da linguagem, não ocorrendo espaço para o corte do Simbólico. A segunda morte, neste momento, encontra obstáculos para se efetivar. A fim de que o simbólico possa cunhar o indivíduo é necessária a transformação do estado de barbárie. O falo, significante do desejo, funciona como medida, razão, limite, operador de cunhagem da linguagem, estando velado. Como significado na operação da Metáfora Paterna, o falo aguarda a possibilidade de emergência do Nome-do-Pai, para que este possa apontar onde está o desejo na atualidade.
Pensemos a pulsão de morte. A pulsão é um conceito psicanalítico essencialmente fronteiriço. Uma linha de encontro ou “desencontro” entre o somático e psíquico. Nos termos de Freud Trieb é um “conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida de exigência feita à mente no sentido de trabalhar em conseqüência de sua ligação com o corpo” (Freud 1974, 142). Mente e corpo ligados. Sobre o mistério da ligação do corpo e da mente, Freud busca decifrá-lo através da pulsão, enquanto que Descartes atribui este ponto de ligação à glândula pineal.
O Jornal O Globo diz: “A Terra atravessa uma onda de extinção sem precedentes desde o fim dos dinossauros, segundo a ONU. A cada hora desaparecem três espécies de plantas ou de animais; por dia, 150 são extintas. A culpa da perda global de biodiversidade é da Humanidade. Destruição de habitats, caça e aquecimento global estão entre as principais causas” (O Globo 2007). O homem gozou da Terra. Lucrou do seu produto. Agora, ocorre a extinção deste produto. Mas, como na dialética do senhor e do escravo enunciada por Hegel, surge neste momento o alerta, como mediação, que ativa a mudança de posição na dialética da consciência humana. Esta notícia vai de encontro ao pensamento de Lacan sobre o ponto de cisão entre o princípio de Nirvana, ou de aniquilamento, e a pulsão de morte. O princípio de Nirvana aponta para o ponto de um gozo absoluto. Enquanto a pulsão de morte clama por uma simbolização, mesmo impossível, da morte.
Em Freud, a partir de 1920, o princípio de Nirvana surge como uma tendência radical para conduzir a excitação ao nível zero, referência ao princípio de inércia, buscando evitar qualquer fonte de excitação, o que leva o prazer ao aniquilamento. A pulsão de morte se apresenta como uma erótica fundante, como o eterno retorno da fundação e constituição traumática do sujeito. A experiência traumática, concomitantemente ao transbordamento pulsional, gera excesso contínuo de pulsão, sendo que o psiquismo persegue um domínio impossível, já que a descarga total é a meta final. A pulsão de morte se torna reduto indomável da pulsão, tendência do ser vivo a retornar ao “inorgânico”. Assim, ao lado do princípio do prazer surge um outro princípio, a compulsão à repetição, que funciona como um “eterno retorno” do mesmo, retorno a um ponto de partida, de constituição traumática do sujeito, relacionado à perda primordial. A pulsão de morte, em seu movimento em volta do objeto, objeto perdido em busca do tempo perdido da nomeação, anuncia esta tendência de volta ao inanimado como algo impossível, já que não é natural, tendo o trauma como ponto de partida da trilha inconsciente do sujeito. A ilusão de unidade é rompida.

O eterno retorno do mesmo

                      O eterno retorno é o pensamento mais arrebatador de Nietzsche. O devir do mundo transcorre para frente e para trás no tempo infinito. Como algo finito, o devir volta-se ao mesmo tempo sobre si, sendo o devir do mundo constante, eterno. Este devir do mundo como devir finito acontece num tempo infinito, não cessando após o esgotamento de suas possibilidades finitas, precisando se repetir no futuro como um devir constante. A totalidade do mundo é finita nas figuras do devir, logo as possibilidades de variação de seu caráter conjunto são finitas, assim o processo do devir atrai para si tudo o que passou, impelindo a mesma série para frente de si, implicando que todo o processo do devir traz a si mesmo de volta, retornando como os mesmos. “O eterno retorno da totalidade do devir do mundo precisa ser um retorno do mesmo” (Heidegger 2007, 285-286).
Nietzsche apresenta o pensamento do eterno retorno pela primeira vez em A Gaia Ciência (Nietzsche 2001) no aforismo 341: “O maior dos pesos” (O peso mais pesado). É o pensamento da repetição do mesmo, da vida como é e foi, onde o indivíduo pode amaldiçoar “o demônio” que comunica este dizer, ou então, viver um instante imenso, incorporando este pensamento como “o maior dos pesos”, pensamento que o transforma, pois pesa sobre os seus atos.
Ao pensar este pensamento mais pesado Nietzsche diz no aforismo 342 que “a tragédia começa” (Incipit trageodia) através do declínio de Zaratustra. Heidegger afirma que pelo pensamento do eterno retorno do mesmo o trágico se torna caráter fundamental do ente. Nietzsche se coloca contra a interpretação aristotélica de encontrar o trágico em dois afetos depressivos: o pavor (medo) e a compaixão. Zaratustra é um espírito heróico, pois vai ao encontro de seu mais elevado sofrimento pelo seu declínio, trazendo a mais elevada esperança. Ele é o mestre do “super-homem” (além-do-homem). Como diz Heidegger, Zaratustra é o primeiro pensador do “pensamento dos pensamentos”. Para Heidegger esta é a sua essência: o pensador propriamente dito do pensamento do eterno retorno do mesmo (Heidegger 2007, 218). 
Em Assim falou Zaratustra (Nietzsche 2006) Nietzsche insere o espírito trágico no interior do ente. Zaratustra é o pensador trágico, afirma o “sim” mais elevado ao “não” mais elevado. No capítulo “Da visão e do enigma”, Parte III, um enigma surge diante de Zaratustra a ser decifrado, impelindo um salto. Zaratustra narra aos marujos a sua ascensão por uma senda da montanha.  E, por este caminho surge o anão, “espírito do peso” que precisa ser superado. Mas, mesmo puxando para baixo, o espírito da gravidade, o anão, ameaça do niilismo que paralisa, não suporta o pensamento abissal de Zaratustra. Para Heidegger a profundidade cresce nesta ascensão, “o abismo torna-se pela primeira vez abismo... ele ganha as alturas” (Heidegger 2007, 227). Ao pensar o abismo Zaratustra vence o anão: “Alto lá, anão!”, falei. “Ou eu ou tu! Mas eu sou mais forte dos dois; - tu não conheces o meu pensamento abismal!” (Nietzsche 2006, 193).  Zaratustra se vê diante de um portal. O portal “Instante”, que traz a imagem do tempo que corre para trás e para frente até a eternidade. Heidegger diz que o tempo é percebido a partir do “instante”, do “agora”, e “o todo diz: o pensamento do eterno retorno do mesmo é articulado agora com o âmbito do tempo e da eternidade” (Heidegger 2007, 227). O portal é a visão, e a partir daí começa a marcha da decifração.
Este ponto do “instante”, que inclui a eternidade, é momento mítico em Freud, pela fundação do sujeito no mito da horda primitiva, através de sua inserção no campo da linguagem. O instante e a eternidade, tempo da busca incessante do objeto perdido.

Antígona e a segunda morte
O trágico é a repetição do mesmo. Em Antígona, tragédia de Sófocles, observamos a repetição do tema do desejo incestuoso em sua origem, dado pela diretriz do destino trágico de seu pai Édipo, que se repete na sua relação com o irmão Polinices, que Antígona deseja “enterrar”. Não aceita a exclusão do sujeito do desejo, buscando num campo “entre duas mortes” encontrar o sentido do limite da segunda morte, ao nomear a morte do seu irmão, como também a sua própria morte. Tentativa impossível de encontro do objeto para sempre perdido, incessante busca para simbolizar a perda deste objeto, pelo movimento de presença/ausência. Ao ser condenada a ser enterrada viva, Antígona sofre uma morte antecipada, morte que invade a vida, e vida invadindo a morte. Pontos de vida e de morte sem limites especificados. Zona que se abre na terra, um abismo. Até, atas, termo que “designa o limite que a vida humana não poderia transpor por muito tempo” (Lacan 1991, 318). A aliança incestuosa vincula Antígona a seu pai e a seu irmão, o seu Até, desgraça e loucura. Para além da Até se passa um tempo curto. Antígona não suporta mais viver, “sua vida não vale a pena ser vivida” (Lacan 1991, 318), não aceita se submeter à “lei” de Creonte, lei sem laço com o desejo. É uma heroína na posição de “na-finda-linha”, zona limite entre a vida e a morte. Antígona caminha em direção à segunda morte, morte simbólica. Insiste na simbolização do cadáver de seu irmão.
Podemos saltar de Antígona para a tragédia urbana. As balas perdidas em nossas cidades apontam para uma situação-limite entre duas mortes. Balas partem de armas sem alvos determinados, atingindo a população urbana inesperadamente. Morte arrombando vidas, e vidas trancadas em casa invadidas pela morte. Esta é a zona do abismo em que vivemos atualmente. Estas balas são objetos a, balas sem rumos, objetos errantes, sem alvo.
As crianças abandonadas em nossas ruas são “restos errantes” que vendem “balas”. Crianças, que embora amamentadas durante muitos meses por suas mães, como assinala Françoise Dolto, depois são entregues à mãe natureza, que mantém a sobrevivência delas, através de alimentos encontrados no lixo, mas que perverte o sentido afirmativo “do seio-vida” (Dolto 1998, 79).
A pulsão de morte contorna o objeto para sempre perdido, denunciando, ao mesmo tempo, o seu desaparecimento, a primeira morte, como também tenta estabelecer um horizonte, o da segunda morte. O movimento é constante e insistente, busca de simbolização, transformando a Coisa, lugar de gozo incestuoso, num resíduo, o desejo, resultado da subtração da necessidade em relação à demanda.

Além do gozo
Caminhamos para o além do gozo.
O princípio de Nirvana, o aniquilamento, ameaça atualmente. A ausência do simbólico faz emergir o aquém da pulsão de morte. O homem gozou da Terra. Explorou a Terra, etapa em travessia. Agora, percebe os danos e os ganhos deste gozo. Há um excesso de gozo. Este excesso no devir do gozo caminha para o surgimento de uma outra configuração do devir na existência humana. A voz do eterno retorno do mesmo clama pelo limite. Os movimentos ecologistas clamam pela pulsão de vida da Terra.
Este espaço–tempo além do gozo se apresenta para ser pensado por nós, os psicanalistas. O território se abala. O Real é o impossível, o inapreensível, o indizível, o impensável. Não cessa de não se escrever. Hoje, está se abrindo uma nova fenda no Real, e através do pensamento abissal o corte pode ser efetuado.
O mal-estar contemporâneo, em alguns casos, aparece na clínica através de pacientes que sofrem do gozo do Outro, sujeitos divididos, alvos dos perversos, que reivindicam a posição efetiva de sujeito, onde se possa falar uma fala plena. O setting analítico se torna lugar para o desejo. A fala vazia impera em nossa cultura. O sujeito do enunciado ganha espaço, sendo que o sujeito da enunciação, do desejo, fica exprimido, dando lugar à angústia e produções psicossomáticas. O desamparo não é só familiar, mas da Terra. O inconsciente tem se manifestado na cultura recente por vivências que apontam para o registro do Real, carecendo da dimensão Simbólica. Logo, inconsciente de difícil acesso. Inconsciente, a meu ver, errante, perto de alguma nova fronteira, como extensão de um saber. Como psicanalistas precisamos pescá-lo, buscá-lo em outras terras, seguir trilhas inexploradas, para que no futuro possamos afirmar: “Resistimos” à banalidade da palavra.
A psicanálise tem função de ato, de corte na contemporaneidade, propondo uma teoria e práxis de “resistência” à banalidade da palavra, pretendendo manter o solo fecundo e vivo no planeta Terra, semeando o desejo que se conecta à lei, para que possa florescer, acontecer um feliz encontro do homem com a Terra. 

                       Bibliografia

Dolto, Françoise 1998: Solidão. Trad. I. Benedetti. Martins Fontes, São Paulo.
França, M.I. 1997: Psicanálise, estética e ética do desejo. Perspectiva, São Paulo.
Freud, S. 1974: Totem e Tabu. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Trad. O. Muñiz. Imago, Rio de Janeiro.
Freud, S. 1974: Os instintos e suas vicissitudes. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Trad. Brito, Britto, Oiticica. Imago, Rio de Janeiro.
Globo, O 2007: Três espécies acabam por hora no planeta. Jornal O Globo, Rio de Janeiro.
Héber-Suffrin, Pierre 2003: O “Zaratustra” de Nietzsche. Trad. Lucy Magalhães. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro.
Heidegger, M. 2007: Nietzsche I. Trad. Marco Antonio Casanova.   Forense Universitária, Rio de Janeiro.
Lacan, J. 1991: A ética da Psicanálise. Trad. Antonio Quinet. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro.
Machado, Roberto 1997: Zaratustra, tragédia nietzschiana. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro.
                        Nasio, J.D. 1991: Os olhos de Laura. Trad. P. Ramos. Artes Médicas, Porto Alegre.
Nietzsche, F.W. 2001: A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. Companhia das Letras, São Paulo.
Nietzsche, F.W. 2006: Assim falou Zaratustra. Trad. Mário da Silva.  Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
Rovighi, S.V. 1999: História da Filosofia Moderna. Trad. Bagno, Leite. Edições Loyola, São Paulo.


quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Sobre o discurso melancólico de Lambotte

                     Sobre o discurso melancólico de Lambotte
                    
                                                                    Rosa Jeni Matz

Introdução

Marie-Claude Lambotte aborda a melancolia em O discurso melancólico, partindo de três temas que surgiram em sua experiência clínica: a inibição, a problemática especular e o negativismo. Apoia-se no passo freudiano, que localiza em Neurose e Psicose (1924) a melancolia na categoria de neuroses narcísicas, categoria distinta das neuroses e psicoses. Citando Freud: “A neurose de transferência corresponde ao conflito entre o eu e o isso, a neurose narcísica ao conflito entre o eu e o supereu, a psicose entre o eu e o mundo exterior”.
Lambotte coloca entre parênteses o diagnóstico da melancolia como psicose. Aborda a melancolia através dos sintomas e do tipo de discurso que apresenta, da inibição à falha especular, do negativismo ao desmentido da realidade. Sua pesquisa se dá em três etapas: a primeira parte apresenta fundamentos energéticos da melancolia, centrando-se na dissociação do corpo e do espírito, que remete, por um lado, ao mecanismo de inibição, e por outro lado, à imagem do buraco. Menciona um funcionamento ideal excessivo no melancólico, mas a palavra aí se torna elemento sonoro mais do que consistente, apontando para uma falha de representação, uma insuficiência que impede o sujeito de apreender o objeto exterior sob a impulsão da projeção. O mundo se mostra vazio e desafetivizado ao sujeito, pois o imaginário não pode aí exercer, provando a especificidade originária da organização psíquica melancólica, uma desvitalização ou desrealização do mundo.
A segunda parte se dirige para o registro especular. A autodepreciação dos sujeitos melancólicos conduziu a autora ao estudo deste registro, à formação das instâncias ideais do eu, dirigindo-se a um tempo pré-especular, tempo da gênese da melancolia, que explica a patologia da imagem, a figura da moldura vazia. O modelo dinâmico do estádio do espelho de Lacan aponta para uma dupla identificação: a identificação com a forma da espécie, através do rosto da mãe (ideal do eu), e com o reflexo do espelho (eu ideal). O sujeito melancólico se encontrou com uma moldura vazia, dentro do qual não há imagem, nada. Portanto, “o eu não sou nada” do sujeito melancólico atesta a experiência traumática, significando o colapso da imagem especular e a condenação do destino. Somente pelo olhar do outro pousado em si que a criança pode se descobrir, sendo que na melancolia este olhar atravessou a criança sem a ver, resultando uma fixação na moldura vazia, no ideal do eu inacessível. Este vazio do olhar produz uma busca, por trás das coisas, de uma realidade inerte, uma verdade oculta, mas lá não há nada.  Por trás do espelho se tenta construir o cenário dessa estrutura, como reação primária de defesa de uma catástrofe: “a da desaparição do desejo no outro, já que o outro é quem deveria iniciar o sujeito na dialética do desejo”.
A questão da perda na melancolia dirige-se mais ao modelo original do que ao objeto, inacessível em sua exterioridade, sendo que a perda faz suceder uma identificação defeituosa do eu ideal, que em sua evanescência permanece suspenso confusamente aos traços de um ideal do eu potente. A instância ideal do eu determina a dinâmica melancólica, sendo que o ideal do eu, instância que corresponde à identificação parental e social, recobre quase totalmente o eu ideal, que corresponde à exaltação da singularidade do eu.  Seria uma falta de imagem singular, um “branco”, ou ainda uma “transparência”, utilizando a linguagem dos pacientes. É a falha especular que se apresenta, e com ela o sentimento de vazio, um vazio que parece não ter borda. Na ausência de uma moldura imaginária, que formaria a imagem primeira singular, elabora-se uma moldura simbólica, que dá ao discurso uma especificidade, ocorrendo uma dissociação entre a imagem e a palavra. O sentimento de vazio seria uma ausência de moldura imaginária, sendo que a desrealização no melancólico fica dependente do sentimento de vazio. Como diz um paciente: “sei que o mundo está aí, mas para mim, ele é somente uma cavidade, um vazio. ”Há uma impossibilidade do sujeito melancólico de projetar uma imagem narcísica dos objetos no mundo, pois seu lugar foi recoberto pela rigidez do ideal do eu. O sujeito “sente o “vazio” do mundo como uma desafetação, uma desvitalização, sem que, por isso, perca sua noção e sua estrutura”. As coisas e os seres desinteressariam o indivíduo, como se este não desejasse mais nada.
Diferentemente do esquizofrênico as palavras não regrediram às coisas. O mundo permanece acessível à comunicação formal, mas não interessa ao sujeito. Esta questão do desinteresse nos conduz a erotização, investimento libidinal, processo narcísico que permite ao indivíduo amar o outro através de sua própria imagem, logo aquilo em que o objeto se torna desejável, sendo que no melancólico ocorre um vazio de desejo e um vazio de sentimento.
O sentimento do melancólico de indiferença generalizada pode se relacionar às vicissitudes da pulsão escópica. A criança, na origem se vê em um primeiro olhar, o olhar da mãe, e este lhe fornece uma moldura, em cujos limites se constituem as zonas erógenas e suas projeções libidinais. No melancólico ocorreu um não-desejo, “um olhar que não olha”, e por não tendo encontrado o olhar desejante do Outro se viu reduzido ao nada. A melancolia se caracteriza pela afirmação deste nada que responde à tensão do olhar, à busca do desejo, banindo o investimento do objeto.
A relação com o Outro define a posição do sujeito, conduzindo ao primeiro contato traumático com a exterioridade. A situação da imagem especular se apóia em uma situação pré-especular, onde a exterioridade teria lugar de causa primeira, de modelo traumático, que no melancólico seria um aquém do olhar. Este momento pré-especular esclarece a passagem do auto-erotismo ao narcisismo, onde será situada a falha estrutural do sujeito melancólico, assim como a origem do seu apelo ao vazio que o símbolo “nada” recobre imperfeitamente. Ele chega a distinguir o interior do exterior, mas não pode distinguir neste exterior os objetos de prazer e desprazer, sendo que os primeiros correspondem ao eu-sujeito, e os segundos ao mundo exterior, ocorrendo a indiferenciação generalizada no mundo exterior. Trata-se de uma indiferenciação afetiva, encontrando aí a imagem freudiana da hemorragia interna ou do esvaziamento do eu, que caracteriza a desolação dos afetos e a autocrítica, onde a autocrítica toma o lugar dos afetos.
O negativismo é o modo de defesa do melancólico, diverso do negativismo do psicótico, do esquizofrênico. A atitude do melancólico sugere uma atitude particular de negação, onde o sujeito não nega a realidade perceptiva, e tampouco age como se ela não existisse, reconhecendo seus benefícios para os outros, atribuindo a si a inutilidade de todas as coisas. Este tipo de negativismo é denominado de “renegação de intenção” que incide sobre a intencionalidade da relação do sujeito com o mundo, onde não se nega a existência da coisa, mas nega que ela possa concerni-lo em algo. Lambotte afirma: “Entre o recalque e a foraclusão, o tipo de recusa que o sujeito melancólico opõe à realidade encontrará talvez sua expressão no desmentido, termo que, sem negar a existência da coisa, nega entretanto que ela diga respeito no que quer que seja ao sujeito. E, atrás da negação se perfila a alternativa do melancólico no que esta se deve ao ideal ou à morte, ou seja, ao tudo ou ao nada da desaparição do outro que o sujeito assume sob a figura da falta. Não resta mais que encerrar um tal desenvolvimento, na medida em que o sujeito ignora que continua a viver os efeitos de uma catástrofe à qual não se podem aplicar as categorias da linguagem, e a referência ao destino substitui desde então a experiência do real, na convicção de deter a verdade: a da morte”.
Três temas, três figuras da melancolia: a inibição generalizada e a imagem do buraco, o desfalecimento especular e a imagem da moldura vazia, o negativismo e a imagem do raciocínio circular.

Inibição
Freud afirma em Inibições, Sintomas e Ansiedade (1926), que a inibição é uma restrição normal de uma função, não tendo necessariamente também pode ser um sintoma. Conclui que as inibições são restrições das funções do ego que foram impostas como precaução, ou acarretadas por um empobrecimento de energia. Os estados de depressão podem acarretar inibição geral, como a melancolia.
Exemplo de inibição: “O inexplicável medo de “Little Hans” por cavalos era o sintoma e sua incapacidade de sair à rua era uma inibição, uma restrição que o ego do menino impusera a si mesmo a fim de não despertar o sintoma de ansiedade”.  Freud prossegue, dizendo que o que transformou a reação emocional em neurose foi “a substituição do pai por um cavalo...esse deslocamento, portanto, que tem o direito de ser denominado de sintoma”.
Em Luto e Melancolia (1917) Freud apresenta os traços distintivos da melancolia: desânimo profundo penoso, cessação de interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda e qualquer atividade, diminuição dos sentimentos de auto-estima, expressando auto-recriminação e auto-envilecimento, e culminando em expectativa delirante de punição.
O luto seria uma reação à perda de um ente querido, a uma abstração que ocupou este lugar. A perturbação de auto-estima está ausente no luto.
A melancolia pode se constituir por uma reação à perda de um objeto amado, e também reconhecida por uma perda de natureza mais ideal. O objeto pode não ter morrido, mas perdido enquanto objeto de amor. O paciente sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém. A melancolia estaria relacionada a uma perda objetal retirada da consciência, enquanto no luto nada existe de inconsciente a respeito da perda. No luto, a inibição e a perda de interesse são explicadas pelo trabalho de luto onde o ego é absolvido. Na melancolia a perda desconhecida resultará num trabalho interno semelhante, sendo responsável pela inibição melancólica, embora esta inibição nos parece enigmática, porque não percebemos o que se absorve tão completamente. “No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio, na melancolia é o próprio ego”. O melancólico apresenta uma diminuição da sua auto-estima, degradando-se frente a todos. No quadro clínico da melancolia a insatisfação com o ego constitui por motivos de ordem moral característica marcante. A chave do quadro clínico é que as auto-recriminações são recriminações feitas a um objeto amado, e deslocadas desse objeto para o ego do paciente.
Processo de constituição da melancolia: há uma escolha objetal através da ligação da libido numa determinada pessoa, mas devido a um desapontamento ou uma real desconsideração oriunda da pessoa amada, a relação objetal é destroçada. O resultado não é a retirada da libido desse objeto e o seu deslocamento para um novo objeto, o investimento objetal tem pouco poder de resistência, e é liquidado, sendo que a libido livre não é deslocada para outro objeto, dirige-se para o ego, estabelecendo uma identificação do ego com o objeto abandonado. Assim, a sombra do objeto caiu sobre o ego, sendo que o ego pode ser julgado por um agente especial como se fosse um objeto abandonado. A perda objetal se transforma numa perda do ego e o conflito entre o ego e a pessoa amada numa separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado pela identificação.
Surge uma contradição: forte fixação no objeto amado e o investimento objetal com pouco poder de resistência. Otto Rank afirma que esta escolha objetal tem uma base narcisista: o investimento objetal ao se defrontar com obstáculos retrocede para o narcisismo. A identificação narcisista com o objeto se torna substituta do investimento erótico, e apesar do conflito com a pessoa amada não é necessário renunciar a relação amorosa. Há uma regressão de um tipo de escolha objetal para o narcisismo original. A tendência a adoecer da melancolia reside na predominância de um tipo narcisista de escolha objetal. Seria uma regressão do investimento objetal para a fase oral narcisista da libido. O narcisismo, como referência o mito de Narciso, é o amor que se tem pela imagem de si mesmo. Surge na escolha de objeto dos homossexuais: “tomam-se a si mesmos como objeto sexual, partem do narcisismo e procuram jovens que se pareçam com eles, e a quem possam amar como a mãe os amou a eles”. No Caso Schreber (1911), Freud afirma que o narcisismo seria a fase intermediária entre o auto-erotismo e o amor objetal. “O indivíduo começa por tomar a si mesmo ao seu próprio corpo, como objeto de amor”.
O narcisismo primário é o estado precoce em que a criança investe toda a sua libido em si mesma. Entre 1910-15 Freud coloca esta fase entre o auto-erotismo e o amor do objeto, contemporânea ao aparecimento do ego, a unificação do indivíduo. Na segunda tópica é um primeiro estado de vida, antes da formação do ego, e é suprimida a distinção entre auto-erotismo de narcisismo.
O narcisismo secundário é o retorno da libido ao ego, retirada dos investimentos objetais.
A melancolia toma do luto alguns de seus traços e do processo de regressão outros. A perda do objeto amoroso manifesta a ambivalência, e se o amor pelo objeto se refugiar na identificação narcisista, o ódio entra em ação no objeto substitutivo, o degradando. 
Através da análise da melancolia se observa que o suicídio acontece devido ao retorno do investimento objetal para o ego, tratando-se a si mesmo como objeto, portanto, dirigindo para si mesmo a hostilidade do objeto que se torna mais poderoso que o ego.
A melancolia se comporta como uma ferida aberta atraindo para si a energia proveniente de outras direções, e esvaziando o ego até este se tornar totalmente empobrecido.
Nos Manuscritos E e G das Cartas a Fliess (1895) Freud assinala que a grande tensão ou excitação sexual psíquica, que parece estorvar o psiquismo, cava uma espécie de furo no psiquismo, pelo qual a energia sexual psíquica, a libido, não cessa de escoar. Na melancolia a apresentação (da coisa) inconsciente do objeto foi abandonada pela libido”.
São três as pré-condições da melancolia: perda do objeto, ambivalência, e regressão da libido ao ego, sendo que o último fator é responsável pelo resultado.
Freud afirma em Neurose e Psicose (1924): “A neurose é o resultado de um conflito entre o ego e o id, ao passo que a psicose é o desfecho análogo de um distúrbio semelhante nas relações entre o ego e o mundo externo”.
 Há doenças que se baseiam num conflito entre o ego e o superego. A melancolia é um exemplo deste grupo, denominado de “psiconeuroses narcísicas”. Separa a melancolia das outras psicoses.
Assim, as neuroses de transferência expressam o conflito entre ego e id; as neuroses narcísicas, o conflito entre ego e superego; e as psicoses, o conflito entre ego e o mundo externo.

A catástrofe narcísica

Para Lambotte, a trama causal da melancolia deve ser buscada aquém de uma perda ocasional, nos avatares da formação do eu. Em 1916, em Algumas idéias sobre o desenvolvimento e regressão – etiologia” (conferência XXII), Freud acrescenta um terceiro modelo de regressão referente às neuroses narcísicas: a regressão quanto a organização do eu. Afirma que há dois tipos de regressão encontradas nas neuroses de transferência: o retorno aos objetos que inicialmente foram investidos pela libido, que são de natureza incestuosa (histeria); e o retorno da organização sexual, como um todo, a estádios anteriores, como a neurose obsessiva, onde a regressão da libido se dirige à fase preliminar da organização sádico-anal. Lambotte vai explicitar os fundamentos estruturais da melancolia, que são compreendidos como matriz egóica conflitual e defeituosa do sujeito, e os processos psíquicos resultantes de defesa e sustentação do sujeito.
A fase fálica é o momento do desenvolvimento infantil onde culmina o complexo de castração. 
Lacan apresenta o -φ em relação com a castração. Na castração a falta é no objeto, falta algo à mãe, enquanto é situada no lugar do Outro, o falo falta à mãe. Correspondendo ao desejo, na castração, o – φ é o objeto imaginário, o falo na relação de objeto. O – φ seria o que falta no objeto, e não a falta de objeto. Seria um momento imaginário da falta do objeto imaginário. Imaginário é reconhecer que a mãe tem falo. O – φ é a negativização do falo. Quando opera o falo simbólico Ф (phi maiúsculo) é possível o – φ. Quando a função fálica opera é possível o reconhecimento da castração na mãe, negativizando o falo. O filho deixa de ser o objeto real de satisfação da mãe.
Em a Subversão do sujeito e dialética do desejo (1960), Lacan afirma que o princípio do sacrifício é simbólico, a infinitude do gozo marca uma proibição, que para ser constituída implica um sacrifício, sendo o falo o símbolo. O falo, a imagem do pênis, é negativizado em seu lugar na imagem especular. Isto predestina o falo a dar corpo ao gozo na dialética do desejo.
A fantasia contém o -φ (phi minúsculo), função imaginária da castração, que se insinua no neurótico sob o $ da fantasia. A castração imaginária, sofrida no início pelo neurótico sustenta o seu eu forte.
O esquema ótico pode evidenciar os lugares da falta (-φ), e do resto, o objeto a. Em seu seminário sobre A Angústia (1962), Lacan vai precisar a interação de a e de –φ, manifestações do objeto a como falta, o objeto a sob a forma do -φ. No transvasamento libidinal do ego ao outro, subsiste um resto, o a. Nem todo investimento passa pela imagem especular, há um resto, em tudo que há determinação imaginária, o falo virá em forma de uma falta, de um –φ. O falo é uma reserva operatória, que não é representada no nível do imaginário, apartada da imagem especular. A reserva traduz-se no espelho como –φ. Não participa do imaginário senão sob a forma de falta. O objeto a não aparece no espelho, pois não é especularizável. Não há imagem da falta. No decorrer da transferência da libido narcísica para libido de objeto, no lugar do resto a, surge a falta no outro –φ. A falta no Outro provoca o desejo no sujeito. E, ao contrário, o que falta ao sujeito no lugar do a, sua reserva narcísica suscita o desejo do Outro. No registro imaginário o falo aparece como falta, o –φ. O falo é uma reserva operatória, que não é representada no nível do imaginário, que é cortada da imagem especular. O –φ não entra no imaginário.
Em O mal-estar na cultura (1930) Freud afirma: “O Destino é encarado como um substituto do agente parental. Se um homem é desafortunado, isso significa que não é mais amado por este poder supremo, e ameaçado por esta falta de amor, mais uma vez se curva ao representante paterno em seu superego, representante que, em seus dias de boa sorte, estava pronto a desprezar”.
Lacan, em seu seminário A Angústia (1962-1963), através do estudo de um caso sobre a homossexualidade feminina apresentado por Freud, A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher (1920), comenta o tema da janela - (fênetre – podemos associar com faire naître = fazer nascer), como marcando um limite ilusório desse mundo do reconhecimento, daquele que é denominado de cena. Introduz o niederkommt que aparece no texto analisado por Freud como cair e dar a luz, onde a tentativa de suicídio da jovem faz surgir o desejo inconsciente de ter o filho do pai e a realização de uma autopunição. “A confrontação desse desejo do pai, sobre qual tudo em sua conduta está construído, com essa lei que se presentifica no olhar do pai, é isso pelo qual ela se sente definitivamente identificada, e ao mesmo tempo rejeitada, dejetada fora da cena”. Dá-se o “deixar cair, o deixar-se cair”. Para Lacan, Freud negligenciou neste caso o lugar do pequeno a, pois o objeto a se constitui na relação do sujeito com o Outro, se separando dele como resto.
Esse “deixar cair” (niederkommen lassen) se relaciona com a passagem ao ato. No momento de maior embaraço, a emoção desordenando o movimento, o sujeito se precipita da onde está, do lugar da cena, para fora da cena. A passagem ao ato está na fórmula da fantasia do lado do sujeito, $◊a, onde aparece ao máximo apagado pela barra, o sujeito se deixa cair, em vez de deixar cair o a. Caracteriza-se pela evasão da cena.
Na melancolia, a janela é o limite entre a cena e o mundo, sendo que através do ato do suicídio o sujeito faz retorno à sua exclusão fundamental. Na passagem ao ato o sujeito se identifica em absoluto ao a, ao qual ele se reduz. O melancólico afirma a castração num recobrimento do imaginário e do real, nunca a colocando em dúvida, num negativismo absoluto, dirigindo-se ao real, que não falta nada, que se basta a si mesmo, e “que ele se apressa em atravessar como o primeiro olhar fizera com o seu próprio corpo”, repetindo no suicídio o seu nascimento.                                                                                                                             A afirmação da negaçãoo negativismo apresenta o paradoxo de fornecer ao sujeito o meio de defesa contra as agressões exteriores. “Eu não sou nada”. O negativismo surge na incidência do desfalecimento da constituição especular, mecanismo primário de defesa que a desaparição súbita do Outro em relação ao sujeito desencadeou. Dizer “não” é uma forma de ser contra. O sujeito repele as possibilidades de investimento, afirmando que elas não lhe estão destinadas.
Na falta de uma imagem narcísica, o melancólico encontra o nada que o define. Descobre a verdade da ilusão do eu. Defende-se de uma catástrofe original, recusando qualquer investimento do objeto. O sujeito não nega a realidade perceptiva, reconhece seus benefícios para os outros, atribuindo a si a inutilidade de todas as coisas.
Lacan afirma no seminário A transferência (1960-61) que “o sujeito não pode investir contra nenhum dos traços daquele objeto que não se vê, mas nós analistas ...podemos identificar alguns deles: Nada sou, não sou mais que um lixo”. E prossegue: “não se trata nunca de imagem especular. O melancólico não diz a vocês que tem má aparência, ou uma cara feia, ou que é corcunda, mas sim que é o último dos últimos, que acarreta catástrofes para toda a sua parentela, etc. Em suas auto-acusações, ele está inteiramente no domínio do simbólico. Acrescentem aí o ter: ele está arruinado”. Para Lacan o melancólico está no simbólico, do lado do ser estão as auto-acusações, do lado do ter é a ruína, o ‘eu não sou nada”. O sujeito é destacado da realidade não pela percepção, mas pelos afetos.
Ocorre o suicídio do objeto: “Um remorso, portanto, a propósito de um objeto que entrou, de algum modo, no campo do desejo e que, por sua ação, ou por qualquer risco que ocorreu na aventura, desapareceu”.Mal se introduziu no campo do desejo, na suspensão ao desejo do Outro, o sujeito melancólico se confronta com o desaparecimento do Outro, identificando-se com o nada como o único resto do Outro. O significante “nada” atesta o traço deixado pelo Outro e garante ao sujeito melancólico a sua inscrição na cadeia simbólica, afirmando a castração mais do que a renega. São duas as modalidades do nada melancólico: “eu não sou nada” e “eu sou nada”. “Eu não sou nada” implica que poderia ter sido alguma coisa, enquanto “eu sou nada” caracteriza a sua identidade.
A suspensão de um movimento in statu nascendi arremessa o sujeito na sideração, tendo como defesa primária a este trauma a rejeição de todo investimento à realidade e da realidade. Ignorando que sucumbe aos efeitos da catástrofe original, não resta outro recurso senão apelar para um Destino que ele fornece a onipotência do Pai mítico, e sob o qual se perfila a crueldade de um supereu arcaico. Faz do destino o significante da castração, aquele que deveria sempre faltar, dando a castração uma origem mítica, impedindo-o de dar uma origem pessoal. No lugar faltoso, que seria ocupado pelo acaso dos signos, o melancólico coloca o significante destino, tendo como uma das funções manter a coerência do discurso.
“O sujeito melancólico se encontra colocado frente a algo inscrito em negativo, sem significação e sobretudo sem denominação”. Lambotte interroga “se este traço inominável de algo que teria desaparecido depois de ter freqüentado um lugar que o desejo não teve tempo de especificar não teria caído inteiramente neste resto irrepresentável que Lacan designa com o símbolo –φ, espécie de reserva libidinal que não se projeta e que indica, no entanto, a fragilidade da imagem especular e a inconseqüência do Outro ( “Não há Outro do Outro”) “. E, questiona: “Teria ele, pois este traço sem nome, carregado com ele a imagem do melancólico a ponto de que este mais não reconheça seus próprios traços e que não espere mais nada do mundo? “.
Lambotte afirma, baseando-se em Lacan, que este signo –φ, “que se mostra inteiramente operatório para a nossa construção metapsicológica, não se investe na imagem especular; irredutível ao corpo próprio, ele se revira no narcisismo primário...à nível do auto-erotismo, à nível de um gozo autista...permanecendo aí como eventualmente o que intervirá como instrumento na relação com o Outro”. No que se refere ao sujeito melancólico esta reserva libidinal –φ, mais do que nutrir, parece ”ter lançado contra ele todas as fontes e todos os investimentos do sujeito, assim contribuindo para empobrecê-lo sem consideração, até tirar-lhe sua identidade. “Eu não sou nada, não pára de repetir o melancólico, e o nada se escava em proveito dessa reserva sem lugar...suspensa, cuja energia alimenta o negativismo automático do sujeito, sem que ele próprio possa suspendê-lo ou pô-lo em movimento”. Associa este estado com a hemorragia interna das Cartas a Fliess, com o esvaziamento do Luto e Melancolia, sendo que o buraco no psiquismo aponta para esta relação ao Outro, à imagem especular, e à castração. 
O sujeito melancólico busca seus próprios traços no rosto do Outro, a quem concede um modelo ideal (ideal do eu), que o avalia como nada. Este buraco que se escava, na melancolia, ilustra o movimento da energia libidinal que não tem objeto para se ligar, por causa desta primeira morte, o suicídio do objeto. O desaparecimento precoce do objeto teria desviado o melancólico do mundo, e faz surgir a repetição do mesmo traumatismo sob a forma do negativismo, que afirma o inelutável da castração. Impedido do investimento especular, o sujeito permanece num gozo auto-erótico, caracterizado pela falta da imagem de si, quanto pela fixação em pulsões parciais, sendo o negativismo um puro prazer de órgão sob a forma de expulsão. Falta de si = falta da forma completa (auto-erotismo).
No momento da constituição da imagem narcísica o objeto a se destaca, cai, figura este resto, que não cessa de alimentar a tensão do desejo em direção ao Outro, retirando da reserva libidinal -φ, energia para a sua ação. O ponto do desfalecimento melancólico do desenvolvimento do eu, o a, objeto causa de desejo, aparece no melancólico assimilado a um resto. Este resto sem ligação, o nada, pode se confundir com a reserva designada pela letra –φ, local do “turbilhão melancólico e operação de recobrimento”, delineando-se a posição masoquista que o sujeito ocupa frente ao Destino, “a única referência exterior que ele é levado a reconhecer”.
Para o masoquista o desejo do Outro faz a lei, não interrogando a falta que tal desejo deve deixar aparecer, pensa o Outro como modelo absoluto. O sujeito melancólico parece adotar esta atitude, já que se nega, respondendo a ordem do destino, que ocupa o lugar do objeto de desejo desaparecido de seu campo, primitivamente, adquirindo como “única identidade o nada”, o “último papel”, que é o ”refugo que a potência anônima ainda defende e mantém”. Lacan diz que o masoquista aparece na função de dejeto, aparência do a, do jogado ao lixo, sem poder colocar o objeto “alhures”. E onde colocar este a, questiona Lambotte, já que o sujeito retirou seus investimentos do mundo exterior, e a obstrução libidinal não tem onde se fixar? O melancólico por falta de identificação e de imagem narcísica, seria conduzido a perceber o objeto diretamente, isto é, como nada se a “lógica do destino não figurasse uma mediação graças à qual um certo efeito de racionalização e um certo modo de gozo arcaico pode se instalar”. Daí a defesa contra a diluição do eu através do destino, numa lógica da negação/expulsão, acompanhada de um prazer de órgão (satisfação auto-erótica das pulsões parciais – através da excitação de uma zona erógena encontra o seu apaziguamento no próprio lugar em que se produz, ex.: o chupar). O melancólico não teve acesso a “nova ação psíquica” (Freud - Introdução ao Narcisismo), a passagem do auto-erotismo ao narcisismo, como diz Lacan, a esta “nova...Gestalt”.
                                                                   
Bibliografia
Dor, J. Introdução à leitura de Lacan. Porto alegre: Editora Artes Médicas Sul, 1992.
Freud, S.. Além do princípio do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
Freud, S.. Artigos sobre Metapsicologia. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1974.
Freud, S.. Inibições, Sintomas e Ansiedade. Rio de Janeiro: Imago,1976.
Freud, S.. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
Kaufmann, P.. Dicionário enciclopédico de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
Lacan. A Angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
Lacan, A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
Lambotte, M.-C.. O discurso melancólico. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1997.
Palacios, S. A. A ética do desejo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1991.

O vazio segundo Pierre Fédida


O vazio segundo Pierre Fédida – uma reflexão

                                                                     
                                                                                  Rosa Jeni Matz

Após a leitura do belíssimo texto de Fédida, “Une parole qui ne remplit rien”, comecei a pensar como poderia me aproximar deste vazio, um vazio tão poético, tão vital. Considerei que precisaria mergulhar em seu texto, no universo do seu estilo, entrar em seu mundo teórico, navegar em seus mares, como também, despir de toda uma roupagem que camuflaria o sentido que o autor busca encontrar para o vazio, para surgir a possibilidade de criar, aqui, um espaço vazio para a fala, a escuta, a escrita. O tecido do texto de Fédida é composto de um estudo metapsicológico (psicanalítico), entremeado à fenomenologia e à poesia. Assim é necessário para penetrar neste universo, semear essas três ferramentas, criando um espaço e tempo outro, para que o vazio possa se instalar.
Pierre Fédida é psicólogo, psicanalista e filósofo. Tem se dedicado ao estudo das questões atuais da depressão. Na sua apreensão do psíquico o tempo é outro, contrário ao da tecnologia, ”este tempo que não passa” (Pontalis), e aí se encontra a relação da depressão com o psíquico. Diante do depressivo, freqüentemente, encontra-se um “fechamento do tempo” no seu terreno psíquico. Há uma parada, imobilidade, fixidez na vivência depressiva, que nos remete a uma das formas mais primitivas do psiquismo, “...este tempo parado  talvez exponha o lugar e espaço, o fundo  em relação ao qual ecoa o tempo da psique. “. Pode ser que este seja o tecido de base que condicione o tempo da psique, formando a dimensão fenomenológica da tópica - o negativo, ou “o palco do acontecer psíquico”. A idéia de aparelho psíquico é coextensiva a uma idéia de depressão, podendo ser a depressão o paradigma da psique em sua totalidade. Ela toca a forma basal, aquilo que se situa no negativo do psiquismo.
Em seu trabalho O agir depressivo formula a seguinte hipótese: “a depressão solicita a fenomenologia em seus atos de compreensão do fundamento temporal da subjetividade“. Conceitos, que hoje aparecem em estudos sobre casos-limite e limites do analisável, como o vazio, o espaço subjetivo, a temporalidade depressiva, podem encontrar na fenomenologia seus fundamentos.
Husserl fundou a fenomenologia. Seria “o retorno às coisas elas próprias”.      Privilegia a concepção da intencionalidade da consciência, a consciência se orienta para as coisas, é “consciência de”, reabilitando o “direito da consciência ao conhecimento de si própria e do mundo”. Está atenta ao “vivido”, substituindo as situações explicativas para o descritivo do “que se passa” da perspectiva daquele que vive uma situação, orientando-se para o concreto, sendo a filosofia do vivido. Husserl confere papel fundamental à subjetividade. Funda uma compreensão racional do mundo, sob a forma de fenomenologia transcendental, ou idealismo do sujeito constituinte, apresentado nas Meditações Cartesianas (1930). Husserl diz que “a consciência ou o ser psíquico é todo o fenômeno que será preciso distinguir da coisa fenomenal que aparece. O fenômeno não é a aparição de qualquer coisa, é o próprio ser do aparecer; nele, “não há qualquer distinção entre aparecer e ser “. O fenômeno é caracterizado por Husserl  como o “vivido “(“a consciência não é experimentada como “aparecendo a si própria “, mas é absolutamente inerente a si própria“).  A “coisa fenomenal “pode ser considerada como aparência, como aparição, ela é visada como coisa. Não é parte do fenômeno, que não é uma coisa , mas é dada no fenômeno com o seu sentido e o seu ser, já que o fenômeno, relativamente à coisa, é esta intenção.  O a priori da fenomenologia husserliana é o vivido, que se dá pela correlação entre os vividos e os objetos visados neles. A consciência não tem interior, está toda no aparecer do vivido, não havendo nem dentro nem fora. A evidência (ato de consciência), ou a intuição, seria a presença, o encontro da própria coisa, “a experiência vivida da verdade”. A evidência é definida por uma estrutura da consciência que “se preenche” na presença atual da coisa que ela visa.  A fenomenologia tem como objeto as essências. A essência é o preenchimento do sentido numa evidência. A essência é “fundada“, não plana acima das coisas reais: “a essência“ vermelho “exige a aparição do “momento” vermelho de uma coisa“;  “a coisa percebida, o indivíduo na sua irredutibilidade de ser, dados na experiência, são portanto o objeto originário da fenomenologia“. Esta reflexão em Husserl se denomina “redução”, seria colocar entre parêntesis, époché, ou “suspensão da tese do mundo”; a redução do mundo à sua imanência, como correlato intencional; seria a destruição do pré-dado na experiência. Revela a indissociável relação de duas “coisas” entre si, pela sua intencionalidade. O sujeito é sujeito para o mundo. O sujeito aparece como espectador de si e do mundo, como fonte e origem do sentido. A subjetividade, como doadora de sentido e sentido do ser é designada como subjetividade transcendental, sendo que a fenomenologia husserliana apresenta-se como um idealismo transcendental. Em Meditações Cartesianas diz que “...o ego transcendental ... contém todas as variantes do meu ego empírico, portanto, este ego como pura possibilidade”. A exploração do eidos do sujeito tem por corolário a do mundo. A subjetividade transcendental aparece como intersubjetividade, na “constituição” dos outros. “O outro é constituído num emparelhamento analógico, desenvolvendo-se contemporaneamente à constituição do meu próprio eu psicofísico, da minha corporeidade. Aparece no meu enquadramento imediato, pelo seu próprio corpo, pelos seus traços, numa “natureza primordial” ainda não objetivada. A sua presença estrutura o meu espaço. Já está  “acolá “ quando eu  estou “aqui “, modo particular de “ apresentação “ da “ própria coisa” ... É a este corpo de outrem que eu atribuo o “alter ego “ na sua dupla face empírica e transcendental. “ O inconsciente, compreendido, fenomenologicamente é “um modo limite da consciência “ (Logique).
Fédida formula a fenomenologia do vazio, relacionada à vivência depressiva, afirmando em O grande enigma do luto: a depressão define-se por “uma posição econômica que diz respeito a uma organização narcísica do vazio (segundo uma determinação própria à inalterabilidade tópica da psique), que se assemelha a uma “simulação” da morte para se proteger da morte” E, prossegue, afirmando que “a psique – ... talvez não seja nada mais do que a  metáfora depressiva do vazio”, e ainda  sobre o vazio :  “o vazio – protótipo depressivo do espaço psíquico. “
Em O agir depressivo afirma que “a depressão é uma figura do corpo. Figura cuja expressividade é desenhada ao vivo na impressão de um rosto, sensível como um espelho, no peso estirado ou tenso dos membros, na visibilidade aguda e dolorosa da pele... Esta figura do corpo assim abandonada à expressividade transparente de um traço é considerada como o limite que define a vigilância de um vazio chamado psique. Estranha  inversão paradoxal, que nos faz escutar que a psique – metáfora primitiva de toda depressão – poderia ser o vazio do qual o corpo é a figura imóvel de transparência.  A impressão é expressiva desde que o corpo desenhe ao vivo  - com toda a massa de sua imobilidade - os incessantes movimentos daquilo que aí se age. E a imobilidade do corpo, como se a ausência fizesse dela o signo de seu lugar, é a posição – talvez mesmo a postura  - de uma situação de vigilância no silêncio de uma noite que se agita.”
Fédida diz que o vazio é como o egoísmo, sendo impossível sair deles.
Considera o vazio como um investimento do eu, o eu investido como órgão. Na hipocondria, o órgão do doente somático está cheio demais, o eu se transforma em egoísta depois de produzir o vazio em torno dele, seria a retirada dos investimentos libidinais, corolário da doença orgânica (Freud). Pelo vazio, estar protegido do trauma? Pelo trauma sair do vazio. Paradoxo. Nomeia o vazio de psíquico, como hipótese do isolamento, da privação sensorial como meio de conservação de si, em estado de perigo. Diz que não devemos pressionar o paciente a sair da depressão: “ ...na verdade ele não tem que sair dela “. O sentimento de vazio, expresso pelo paciente durante a análise, é a experiência psíquica da instância, e da “espera de sentido que pode manter toda a existência em suspenso, como em condição de não- existência. “ Como Winnicott afirma , é um estado passado diverso do trauma, que não pode ser rememorado, correspondendo a  uma organização narcísica primária do eu “antes de começar a se preencher”. O vazio seria “uma condição prévia ao desejo de recolher”. Assim Fédida diz que a descoberta depressiva do vazio durante a análise pode ser o ponto de apoio da cura.
Assim, o vazio não é a morte. Mas, como a morte se garante na representação que dá ao corpo um espaço atemporal. Este espaço é descoberto não pela ausência, mas pelo retraimento, suspensão, da ausência. É o espaço de um corpo (figura lisa e plástica ) sem nenhuma inscrição, virgem.
Ao se referir a Michelle, encontramos o teatro do vazio, após o roubo de seus escritos íntimos dirigidos ao outro imaginário. O vazio se relaciona com o assassinato deste duplo imaginário, que suprime o luto e a nostalgia, “a amnésia do luto do duplo imaginário”.
Fédida questiona: “Seria o vazio a ausência ? ...aquilo que acontece com uma ausência cujo objeto foi perdido. Uma ausência sem ausente? Mas seria ainda ausência essa espera de nada, semelhante a um envelope vazio? A ausência pode existir fora do tempo? “
                 Diz que o luto é uma experiência interna de um tempo que faz crescer o espaço interior, logo o eu não está vazio. O paciente diz que o mundo ficou vazio pela morte, ou separação, do objeto amado. “O trabalho de luto restitui um projeto à projeção – ele abre um tempo“ O vazio está atrás das projeções. A espera protege, reconstitui um limite.  “Vazio, estado de suspensão, de flutuação como uma levitação“, diz uma paciente. O luto como possibilidade de sair do vazio, ou a vergonha. Outro paciente afirma: “o vazio é a vivência do presente que faz obstáculo à ameaça vindoura de um desabamento... e a ameaça do desabamento... é solicitada como constituinte (capaz de dar um conteúdo imaginário ao eu). “Desmoronamento melancólico como sangria do vazio, saída terapêutica da depressão. “O vazio não alimenta qualquer queixa, não se autodeprecia: ele é simplesmente nada e portanto não é nada”.
O vazio aparece como espaço possível de uma clínica, onde o brincar, o jogar, a palavra se instaura no conjunto falar e escutar, espaço onde só o vazio pode engendrar o movimento. Convido a vocês a pensar sobre um jogo, onde a possibilidade de jogar implica na existência de uma casa vazia. Os dados e as pedras são seus acompanhantes neste deslizar, só possível devido as casas vazias. Segundo Deleuze “somente encontramos o paradoxo da casa vazia; porque este é o único lugar que não pode nem deve ser preenchido, mesmo por um elemento simbólico. Deve conservar a perfeição do seu vazio para se deslocar em relação a si mesmo e para circular através dos elementos e das variações de relações. Simbólica, deve ser para si mesmo o seu próprio símbolo e privar-se eternamente da sua própria metade que seria suscetível de a vir ocupar. “
Fédida se refere à instalação do vazio pelo tratamento analítico. Pode ser expresso por metáforas corporais, mas estas metáforas corporais não designam o vazio, pois elas o mantêm no espaço, histérico ou hipocondríaco, de uma representação visual. “O vazio é instalado na sessão pelo intervalo – que chamamos tela – que engaja toda significação espacial do silêncio do analista no próprio interior da palavra do paciente”. Este espaço não é o modelo do continente, símbolo do corpo materno como lugar de regressão e de conter e elaborar as angústias projetadas. Não é o compreender de um continente, de se identificar com o desejo da mãe, e não mais sair do seu corpo, como se o corpo ignorasse o vazio. Continente só pode ser utilizado não como imagem, mas como dimensão da relação da palavra, onde o silêncio se torna o lugar do dito no mover do não dito, a relação da fala com a sua escuta e o que nela se escuta. A análise, analuein, é o duplo movimento recíproco e complementar do desligamento dos fios e do tecer do tecido.
Fédida questiona: “Como a palavra se inscreve no analista? E pode-se realmente falar de inscrição?... Qual é portanto a memória do analista, e o analista, ele pensa?“ Diz que o analista não é o vazio, e se fosse uma cavidade primordial, a imagem só seria a ilusão de querer saber como ele é feito. Ele não é vazio, mas é o vazio que dá corpo ao analista. O corpo do analista pode ser figurado como “uma presença que funda a linguagem no ato de escutar a ausência”.
O corpo na análise se refere ao negativo do vazio. É o contrário de um corpo sem órgão, o vazio poderia ser denominado o negativo do órgão – “inversão paradoxal do protótipo hipocondríaco do órgão genital que pode ser compreendido a partir de uma relação com um corpo sem órgão, ou ainda de um corpo reduzido a ser apenas um órgão. A imaginação corporal do vazio levaria, nessas condições, ao limite extremo de uma representação – espécie de representação que perdeu conteúdo e limite. O vazio seria o protótipo depressivo da psique – o órgão psíquico plenamente investido sem representação”.
Antonin Artaud traz o conceito de corpo sem órgãos, retomado por Deleuze, no sentido de corpo descodificado, onde há anulação dos órgãos, são fluxos descodificados, onde a oposição está em relação ao organismo, a este tipo de organização, que codifica os órgãos. Em A Introdução ao Narcisismo (1914), Freud afirma que “o hipocondríaco retira tanto o interesse quanto a libido - a segunda de forma especialmente acentuada – dos objetos do mundo externo, concentrando ambos no órgão que lhe prende a atenção”. E, continua: ”... o protótipo familiar de um órgão que é dolorosamente delicado, que de alguma forma é alterado e que, contudo, não está doente no sentido comum do termo, é o órgão genital em seus estados de excitação. Nessa condição, ele fica congestionado de sangue entumecido e umectado, sendo a sede de múltiplas sensações”.  A hipocondria poderia fornecer o modelo de um órgão psíquico vazio de representação: ao se falar de doentes somáticos incapazes de fantasmar, apesar de diferenças clínicas, há uma semelhança estrutural com a depressão do vazio, já que o corpo doente seria o objeto de representação para um pensamento vazio.
Nenhuma imagem é possível de falar do analista como continente. Qualquer metaforização espacial é impotente para designar o corpo como tempo. O vazio é o único espaço interior em que o tempo é restituído, “precisamente para que ele seja um espaço e não o vazio”.
As projeções são o não-dito na fala. Fédida afirma que a projeção seria uma restituição reparadora de um duplo numa problemática pessoal de identidade. Evidencia a importância dos mecanismos de identificação projetiva na constituição imaginária do duplo (única garantia de uma identidade), sendo que o vazio é o suporte funcional da projeção. Simone diz: “Sempre tive necessidade de preencher o meu vazio fabricando indefinidamente iguais, semelhantes, outros eu – mesma”. A impulsividade e a impaciência de Simone demonstram a “sua incapacidade de dar lugar em si própria a um vazio que seja tempo e silêncio”. Levanta a hipótese de que “o narcisismo significa-se primitivamente como a morte de um duplo imaginário com a vocação ideal (nos devaneios e fantasias) de ser o mesmo, o semelhante, o idêntico a si... Uma das maiores significações do vazio refere-se à falência da constituição temporal do outro numa relação implicando a ausência“ (itálicos meus). Os processos de identificação projetiva adquirem valor supletivo. Através da projeção ocorreria uma tentativa de restauração paliativa de uma identidade parcial. Assim, pergunta se o falso self seria a forma de atribuição de um duplo projetivo. Articula a temporalização subjetiva (o self) com a descoberta do outro enquanto ausente (organização do espaço interior).
A significação temporal da relação projeção-elaboração: “O dito do não-dito é fundado no analista como capacidade de um espaço interior. ”Esta tomada de consciência por Jacques, se refere a descoberta do que está “atrás do analista como dimensão temporal de uma inscrição: sem representação, a palavra, na análise, não tem memória mas passa por traços que dão ao termo associação o poder de atualizar o inatual do vivido infantil com relação a uma atenção”. E Fédida acrescenta: “e se colocarmos a questão da inscrição, na memória, de suas falas, tal memória atribuída ao analista não poderia nem registrar, nem conservar, sem aprisionar a fala”. O por trás escreve o roteiro de uma cena primária. O atrás para Jacques provoca o retorno de sensações e lembranças passadas. “O atrás é o lugar temporal (imaginário) de constituição (ou de re-constituição) da ausência cuja toda projeção vem a ser compreendida, na própria palavra, pela elaboração que a ausência torna possível.”
 O espaço interior é então a obra de um dito que engaja o légein (dizer e falar), no sentido que Heidegger dá ao fragmento de Heráclito, como “pousar”, ”estender diante” e “recolher”; o dito é obra do tempo para ser ouvido, de uma escuta que faz “da ausência a única pousada possível para uma fala tentando manter-se em seu dito”, de uma palavra com o poder de colher e guardar. O texto de Heidegger é o Logos, e encontramos a seguinte tradução de Carneiro Leão do fragmento 50 de Heráclito : “Auscultando não a mim mas o Logos, é sábio concordar que tudo é um.” Heráclito afirma a unidade de todas as coisas. Heidegger traduz o logos como o ”pousar que recolhe”, o legein como “deixar-estendido-diante-em-conjunto”. O dizer dos mortais realiza-se, desde os primórdios, como pousar. ”Dizer é o ato recolhido que recolhe e que deixa as coisas estendidas uma perto das outras... O escutar é o primeiro o ouvir recolhido... É no legein enquanto homologein que se desdobra, em sua essência, o escutar propriamente dito... O Logos desvela e vela... é em si ao mesmo tempo um desvelar e um velar”. É dizer e escutar, como uma unidade. O logos tem aqui o sentido do que aparece, o que se estende diante de nós, e que também recolhe. Mas, como escutar o logos? Pousando e recolhendo. É através de uma atitude de escuta, sendo que não é ouvir sons, mas poder escutar até o silêncio. A fala não encontraria o poder do seu dizer se escapasse ao silêncio, e ao se abrir a fala encontra, de início, o vazio.
Fédida questiona: ” - Seria conveniente falar do vazio nos moldes do projeto de uma metapsicologia negativa? Já que dele só pode-se dizer o que ele não é ou o que ele não pode ser”.
-         “Seria o vazio o negativo do órgão designado por Freud como protótipo hipocondríaco no modelo do órgão genital?... o vazio como protótipo depressivo do espaço psíquico, o órgão psíquico sem representações”.
-         O vazio poderia adquirir o valor de um conceito, referindo-se ao negativo na teoria. Pode ser reportado a experiências primitivas, como a separação pelo nascimento (vazio como o negativo do corpo materno), o desmame, o afastamento da mãe... O vazio é um estado empírico de uma conservação sem espera, por uma insensibilização às excitações internas e externas, por uma redução das tensões até um equilíbrio inerte, onde a atividade psíquica parece ser subtraída.
     Na clínica, o vazio aparece não só como desinvestimento nas coisas externas, e nos objetos internos de pensamento, mas também como desilusão. O falso self procura mascará-lo, proteger um interior como forma de vazio.
O vazio seria a impossibilidade de um espaço, que possa ser o tempo de espera e de projeto, “o tempo de um corpo que possa elaborar o que é recebido”. Pudor e vergonha representam a temporalização subjetiva de um corpo e a sua história, não encontram lugar no vazio.
A depressão pode ser compreendida, a partir do conceito do vazio, na relação bebê e mãe. O vazio aí aparece, se instala “entre um olhar e o rosto que não responde, entre um corpo de bebê e o gesto materno pensando em outra coisa, de alguma forma ausente, entre si e o outro que permanece fechado ou só devolve uma imagem enganosa – uma imagem na qual o bebê não se reconhece. O vazio vem no lugar desse inter que prefixa a subjetividade e que chamamos intersubjetividade”. É na construção, ou descoberta, do vazio como espaço entre, que o analista e o paciente podem encontrar o intervalo necessário entre dois corpos para a fala e a escuta. Este intervalo é fundamental para a reconstrução de um espelho que reflete a imagem justa. Assim, o vazio pode se escutado como o tempo que foi retirado de um rosto e um gesto abandonados a imagens. “Tudo o que acontece, e sobretudo, que se fala entre uma mãe e seu filho é esse tempo: o vazio é aí espaço. Se o tempo for subtraído, o vazio não pode ser mais espaço: torna-se para a criança a ameaça invasiva de não ser nada, de não-existir. Esse vazio é abstração frígida de um ambiente que se transformou em cenário”. O vazio é encontrado na espera depressiva, adquirindo fundamento metapsicológico, e na prática clínica como constituindo um espaço interior.
Observações retiradas da clínica psicanalítica:
1) O vazio como ruptura da intersubjetividade conduz a fenomenologia. O vazio como protótipo de espaço interior. As Meditações Cartesianas de Husserl, como referência na construção da subjetividade, baseada na intersubjetividade. O vazio decorre de uma problemática do tempo, também relacionada ao corpo em sua formação e desenvolvimento a partir de uma intersubjetividade.
2) “O espaço interior é instalado pela análise neste lugar denominado sessão e pelo intervalo designado pela relação da palavra com seu silêncio. O vazio se abre nesta palavra entendida num silêncio: o que vem a ser dito aí vem do poder de ouvir o que se fala...a palavra se elabora, ao longo do tratamento, como o espaço interior capaz de se estabelecer pelo seu próprio dito”. A análise dos processos transferenciais e contratransferenciais passa pela interpretação do que ocorre no intervalo de falar e escutar. O corpo do analista, a partir de Fédida, pode ser compreendido como uma superfície, a criação de um espaço, onde há lugar para elaborar o falar em relação ao escutar, o lugar da palavra e do silêncio.
3) A posição depressiva (Winnicott atribui a esta posição o desenvolvimento da capacidade de estar só), distinta da depressão, associada ao desmame, é a entrada em cena da ausência. O vazio coloca em xeque a ausência. A posição depressiva é o momento criativo da constituição temporal da ausência, a mobilização do corpo no jogo, o uso pelo corpo da negação, e da exploração da relação intersubjetiva. O vazio se refere a uma depressão arcaica, anterior a posição depressiva, impedindo o acesso à posição depressiva, à uma temporalização subjetiva e intersubjetiva pela ausência (capacidade de ficar só ao lado da mãe). O jogo da presença e da ausência acontece aí. A palavra, como lugar aquém e além do jogo de carretel, será o lugar cênico do jogo da ausência. Se ocorrer uma ameaça de perda, separação, abandono, ela é significada por uma função primária da projeção. “Esta é subentendida por uma parte ativa do rejeitar, do perder do abandonar ou do manipular”. Da  projeção, que assegura a fantasia do vínculo, que Fédida questiona, se o indivíduo teria dificuldade de se separar. A manipulação surgiria numa falha de construção de um espaço lúdico, onde o vazio se instala. A análise pode ser concebida como a construção da posição depressiva, permitindo o paciente depressivo a ela aceder. Escutar é na fala obra de disjunção, que é desligamento , deixando um fio para brincar, comunicar. A disjunção se sustenta, na fala pelo seu escutado, sobre seu  ausente. O silêncio, presente para a fala, nela constitui o tempo da ausência.
A ausência não é o vazio. O vazio é formado pela anulação da ausência, ou de uma ausência sem objeto. O espaço interior é um tempo fundador do poder de dar sentido a escuta pela ausência. O lugar da ausência, como espaço da transferência (espaço do jogo transicional dentro do intervalo) e tempo da repetição, indicada pela atenção flutuante (nada ouvir), possibilita a escuta analítica.
O paciente, fala do vazio, vazio de pensamento, quando há um cessar de excitação auto-erótica. O vazio seria a amnésia de um estado de luto, um luto não elaborado, sem respostas. Vazio comparado a amentia. Freud afirma que “a amência é uma reação a uma perda que a realidade afirma, mas que o ego tem de negar, por achá-la insuportável...o ego rompe sua relação com a realidade; retira as catexias do sistema de percepções, Cs... Com este desvio da realidade, o teste de realidade é posto de lado, as fantasias carregadas de desejo (irreprimidas, inteiramente conscientes) são capazes de exercer pressão avançando para dentro do sistema, sendo ali consideradas como uma realidade melhor”. O luto, que tem relação com o pudor e a vergonha, é a experiência temporal que fundamenta a subjetividade. O vazio seria a amnésia do duplo imaginário, “a amnésia do único ser que provoca perda na infância. A infância se torna objeto de um assassinato, por alguém que é ninguém, que rouba da criança o imaginário do que é semelhante, idêntico a si, suprimindo o luto e a nostalgia. “O duplo imaginário - criança ou anima - era o parceiro ideal do jogo e da palavra”. Fédida questiona: “O analista já teria encontrado o lugar que lhe convém? “
A escuta analítica acontece não para substituir o ausente, nem preencher o vazio do seu lugar, mas para fundar a relação da ausência, que o paciente desconhece. A análise é um intervalo, espaço potencial ou transicional; “folha branca como o silêncio - superfície ainda vazia, mas pronta para receber, colocada entre a criança e o psicoterapeuta. Ou então, entre divã e poltrona – para falar em termos dos móveis -, o intervalo singular dessa estranha intimidade onde os corpos não podem se arrebatar nem tampouco se atacar. Cada um sempre vai embora com seu corpo, no qual permanece sozinho”.
Foucault diz: “Já não se pode pensar senão no vazio do homem desaparecido. Porque esse vazio não institui uma carência, não prescreve uma lacuna a preencher. Ele é, nem mais nem menos, o desdobramento de um espaço onde, enfim, se torna possível pensar de novo”.
Creio, que através da reflexão do vazio é possível abrir um novo espaço para pensar sobre os indivíduos que buscam a psicanálise neste final de 1999, e que serão os pacientes do novo século XXI. Fédida, através desse estudo, nos remete a possibilidade de “conhecer” o vazio, queixa tão freqüente em nossos consultórios, e refletir sobre a possibilidade de que os indivíduos do mundo atual, provavelmente, estão tendo mães, ou funções de mãe, que estão assassinando o duplo imaginário e a potencialização de construção de um espaço para brincar. Como a histeria no século de Freud, a depressão é, hoje, a doença mais freqüente. Será que o problema está mais atrás? Mudanças no comportamento da mulher ocorreram neste final de século, movimentos feministas, crescimento da mulher no mercado de trabalho, acontecimentos contrários a repressão da mulher no início do século XX, das pacientes histéricas tratadas por Freud. A mulher mudou? A pergunta: “o que quer uma mulher?” (questão histérica), pode ser acrescida pelo “atualmente”: “o que quer uma mulher atualmente?” O atual mente? Assinalo mais atrás, no sentido de que o trauma, que instaura o vazio, que Fédida analisa em seu texto, ser mais primitivo, mais originário no desenvolvimento do indivíduo, já que Fédida o coloca anterior a posição depressiva.
                                                                                   
Bibliografia
Carneiro Leão, E., e Wrublewski, S.. Os Pensadores Originários. Petrópolis: Vozes, 1999.
Châtelet, F.. História da Filosofia. Lisboa: Publicações Dom Quixote,1995.
Fédida, P.. Depressão. SP: Escuta,1999.
Fédida, P. Une parole qui ne remplit rien. Figures du Vide, Nouvelle Revue de Psycanalyse, n.º 11.
Freud, S. Artigos sobre Metapsicologia. Rio de Janeiro: Imago, 1974. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14).
Heidegger, M. Logos. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Lacan e Descartes


 Lacan e Descartes                 
                                                    Rosa Jeni Matz

Jacques Lacan, em Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise, afirma: “O encaminhamento de Freud é cartesiano – no sentido de que parte do fundamento do sujeito da certeza”. A partir desta afirmação, irei refletir sobre estes dois pensadores, Lacan e Descartes, esboçando semelhanças e diferenças entre eles.
Lacan, partindo da análise de um sonho, introduzido por Freud em A Interpretação dos Sonhos, capítulo VII, e da análise de Hamlet, do seu fantasma, o fantasma do pai ideal, demonstra como Freud parte da certeza, tendo a dúvida como apoio de sua certeza.
O sonho é o seguinte (narração de Freud): “Após algumas horas de sono, o pai teve um sonho de que seu filho estava de pé ao lado de seu leito, que o apanhou pelo braço e lhe sussurrou em tom de censura: “Pai, não vê que estou queimando?“ Este pai ficara de vigília ao lado do filho enfermo durante dias e noites, sendo que após a sua morte foi repousar no quarto contíguo, estando o filho acompanhado por um velho, que rezava, e o seu corpo cercado por velas altas. Ao acordar percebeu um clarão no quarto ao lado, sendo que o vigia havia  dormido, e o seu filho estava com um dos braços queimado. Este sonho que pode ser considerado de fácil compreensão, também contém a realização de um desejo. Qual? Primeiro, o sonho tornou o filho vivo, depois percebemos como Lacan diz, que tanto este sonho como o dilema de Hamlet referem-se ao “peso dos pecados do pai”, “... a herança do pai é aquilo que nos designa Kierkegaard, é seu pecado”.
Freud, afirma que “... aquilo de que nos lembramos de um sonho e sobre o que exercitamos a nossa arte interpretativa já foi mutilado pela infidelidade de nossa memória, que parece muito especialmente incapaz de reter um sonho e bem pode ter perdido exatamente as partes mais importantes de seu conteúdo...quando procuramos voltar a atenção para um de nossos sonhos, descobrimo–nos lamentando o fato de que, embora tenhamos sonhado muito mais, não podemos recordar nada, a não ser um fragmento isolado, que ele próprio, é relembrado com uma incerteza peculiar” (itálico meu).
Como Lacan afirma, “... é preciso superar o que conota tudo que seja do conteúdo do inconsciente...o que...macula, põe nódoas no texto de qualquer comunicação de sonho – Não estou certo, tenho dúvidas”.  E, como Freud acentua: “A dúvida sobre se um sonho ou alguns de seus pormenores foram corretamente relatados é mais uma vez um derivativo da censura onírica, da resistência à penetração dos pensamentos oníricos na consciência”. Freud abre uma nota de rodapé para o “mecanismo de dúvida“ no caso Dora, a dúvida na histeria. Prossegue: “Essa resistência não foi exaurida nem mesmo pelos deslocamentos e substituições que ocasionou; ela persiste sob a forma de dúvida presa ao material que foi permitido passar... E, por isso que ao analisar um sonho, insisto em que toda a escala de estimativas de certeza seja abandonada e que a mais débil possibilidade de que algo desta ou daquela sorte possa ter ocorrido no sonho seja tratada como uma certeza completa”.
René Descartes, em 1619, após um dia de intensa atividade intelectual, sonha três sonhos sucessivos que interpreta ”...como símbolos da iluminação que recebera e, ao mesmo tempo, como indicação da missão a que deveria consagrar a vida. Essa missão era a de unificar todos os conhecimentos humanos a partir de bases seguras, construindo um edifício plenamente iluminado pela verdade, por isso mesmo, todo feito de certezas racionais”. Grande parte da obra de Descartes é consagrada a ciência, sendo que a partir desses sonhos de novembro de 1619, procura unificar o vasto campo dos conhecimentos, tendo que antes teria que preparar o terreno “... de modo a que nele não medrasse qualquer dúvida. Só então a árvore da sabedoria poderia expandir-se com pleno viço da certeza”. Procura o desafio da dúvida, buscando combatê-la a qualquer preço. Duvida metodicamente de tudo. Amplia a dúvida ao máximo, tornando-a hiperbólica: “passa a duvidar até mesmo das idéias claras e distintas, que o espírito espontaneamente admite como evidentes. ”Lança a hipótese do malin génie, como se a realidade fosse regida por um gênio maligno, que provocaria erros ao homem quando ele pensa que está acertando. Levanta a questão da objetividade dos conhecimentos científicos. Mas à medida que a dúvida prossegue, a cada caminhada, das idéias obscuras de impressões sensíveis às idéias claras universais, chega-se a uma certeza, “se duvido penso”. Em Meditações, Descartes cita Arquimedes: “Arquimedes,  a fim de tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para outro, não pedia nada mais que não fosse um ponto fixo e certo. Portanto, terei o direito de alimentar grandes esperanças, se for bastante feliz para encontrar apenas uma coisa que seja segura e incontestável”. Continua: “Presumo, então, que todas as coisas que vejo são falsas... Então, o que poderá ser considerado verdadeiro? A proposição “eu sou, eu existo”. Prosseguindo: “Mas o que sou eu, agora que presumo que existe alguém que é espantosamente poderoso e, se me atrevo a dizê-lo malicioso e ardiloso, que emprega todas as suas forças e todo o seu empenho em enganar-me? Entre os atributos da alma, alcança o pensar e verifica que “...o pensamento é um atributo que me pertence; somente ele não pode ser separado de mim. Eu sou, eu existo: isto é certo...eu sou alguma coisa verdadeira e verdadeiramente existente, mas que coisa?... uma coisa que pensa”. Questiona o que é uma coisa que pensa: “é uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente”. Se da máxima incerteza surge uma primeira certeza, “penso”, esta é ainda uma certeza a respeito de própria subjetividade. Nada fica garantido em relação a uma realidade exterior ao pensamento. Surge o Cogito: “Penso, logo existo (Cogito ergo sum)”. A existência do eu depende do pensamento.  O Cogito traz a certeza da existência do eu enquanto ser pensante.
Na Terceira Meditação, Descartes reflete sobre Deus. Baseando-se no princípio de causalidade, prova a existência de Deus: “... só existindo realmente Deus (causa) pode-se explicar a existência de um ser finito e imperfeito – o eu pensante- porém dotado da idéia de infinito e de perfeição (efeito). Essa idéia estaria na mente do homem como “a marca do artista impressa em sua obra“. “Pelo nome de Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente e pela qual eu próprio e todas as coisas que são (se é verdade que há coisas que existem) foram criados e produzidos”. Assim, conclui: “... a certeza e verdade de toda ciência dependem apenas do conhecimento do verdadeiro Deus: de maneira que, antes que eu O conhecesse, não podia saber perfeitamente nenhuma outra coisa. E, agora que O conheço tenho o meio de adquirir uma ciência perfeita...” (Quinta Meditação). Logo, Deus se torna garantia de qualquer subsistência, e fundamento absoluto da objetividade. Assim o meditador passa do conhecimento subjetivo isolado de sua própria existência ao conhecimento do mundo externo, sendo Deus garantia da verdade. Já que o intelecto é criação divina, e Deus é um ser perfeito, logo não pode ser instrumento incerto para discernir a verdade. Em si o intelecto não é perfeito, ignora muitas coisas, mas estas deficiências são meras ausências, sendo que os seus poderes positivos (limitados) são confiáveis, pois têm origem em Deus: “...do simples fato de que Deus não é embusteiro e que, por conseguinte, não permitiu que pudesse haver alguma falsidade nas minhas opiniões, que não me tivesse dado também alguma faculdade capaz de corrigi-la, penso poder concluir com segurança que possuo os meios de conhecê-las com certeza... não resta dúvida de que tudo que a natureza me ensina contém alguma verdade. Porque, por natureza considerada em geral, não entendo agora outra coisa a não ser o próprio Deus, ou a ordem e disposição que Deus estabeleceu nas coisas criadas. E, por minha natureza em particular, não entendo outra coisa senão o encadeamento ou o conjunto de todas as coisas que Deus deu”  (Sexta Meditação).
Lacan demonstra a analogia de Descartes e Freud, dizendo que Freud, partindo dos seus sonhos, duvida, pois acredita que por trás do conteúdo manifesto do sonho um “pensamento está lá, pensamento que é inconsciente, o que quer dizer que se revela como ausente”. E, Lacan prossegue: ”é a este lugar que ele chama, uma vez que lida com outros o eu penso  pelo qual vai revelar-se o sujeito. Em suma, Freud está seguro de que esse pensamento está lá, completamente sozinho de todo o seu eu sou, se assim podemos dizer, - a menos que, este é o salto, alguém pense em seu lugar “.
É aí que Lacan articula a dessimetria entre Freud e Descartes. Não se funda no encaminhamento inicial da certeza inaugural do sujeito, mas “... nesse campo do inconsciente, o sujeito está em casa”. E, por este progresso freudiano, o mundo é modificado “para nós”. A partir da descoberta do inconsciente podemos falar em pensamento inconsciente, lugar da verdade. Onde Lacan conclui: “Descartes não sabia, a não ser que fosse o sujeito de uma certeza e rejeição de todo saber anterior – mas nós, nós sabemos graças a Deus, que o sujeito do inconsciente se manifesta, que isso pensa antes de entrar na certeza”. O correlativo do sujeito para Lacan não é mais da ordem do Outro enganador (gênio maligno), mas da do outro enganado. Isto se observa na experiência de análise, onde o sujeito teme entrar numa pista falsa. E Freud, na análise dos sonhos, diz que é preciso considerar todo o sonho para alcançar o seu conteúdo latente, lugar do pensamento inconsciente. Segundo Lacan, “a diferença do estatuto que dá ao sujeito a dimensão descoberta pelo inconsciente freudiano se prende ao desejo... Tudo que anima, o de que fala toda enunciação, é desejo”.
Assim, tanto Freud como Descartes partem de um método comum para atingir uma certeza. Descartes chega ao Cogito, “penso, logo sou“. Mas, por não conhecer a descoberta freudiana de inconsciente, afirma “... o corpo, por sua própria natureza, sempre divisível e o espírito, totalmente indivisível. Porque, de fato, quando considero meu espírito, ou seja, eu mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa que pensa, não posso aí distinguir partes algumas, mas me concebo como uma coisa única e inteira” (Sexta Meditação – itálico meu). Já Freud, que atribui instâncias ao aparelho psíquico, introduz no pensamento o homem dividido.
Como Lacan afirma: “Não digo que Freud introduz o sujeito no mundo... pois é Descartes quem o faz. Mas direi que Freud se dirige ao sujeito para lhe dizer o seguinte, que é novo – Aqui, no campo do sonho, estás em casa. Wo es war, soll Ich werden”. Lacan contesta a tradução freudiana: ”o eu deve deslocar o isso”, aproximando a fórmula aos pré-socráticos (de difícil interpretação), pois não se trata do eu ( ego) no soll Ich werden, mas do lugar da rede dos significantes, isto é, o sujeito. “Lá onde estava, o Ich - o sujeito deve advir”.
Descartes traz a luz, no século XVII, o mundo da subjetividade. A consciência, no sentido cognitivo, pode ser uma invenção cartesiana, tornando possível considerar a sua obra uma filosofia do eu (ego). Freud, ao descobrir o inconsciente, traz a cena o pensamento inconsciente. Lacan se refere a um sujeito, que é efeito do significante, “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. O inconsciente é a grande descoberta freudiana, que dá o salto para o sujeito do inconsciente.

Bibliografia

Cottingham, J. Dicionário Descartes. RJ: Jorge Zahar 1995.
Descartes, R.. Meditações. In Os Pensadores. SP: Nova Cultural, 1999.
Freud, S.. A Interpretação de Sonhos. RJ: Imago, 1972. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 5).
Lacan, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. RJ: Jorge Zahar, 1996.

Laplanche e Pontalis. Vocabulário da Psicanálise. Santos: Livraria Martins Fontes, 1970.